Jeanne d'Arc e o ideal céltico ~
(I de IV)
Ó terra de granito esmaltada de carvalhos!
Uma noite, o Espírito de J. Michelet,
precedendo e anunciando o de Jeanne d'Arc,
dirigiu-nos estas palavras, no decorrer de uma das nossas reuniões de estudo:
“Jeanne adquiriu nas suas existências anteriores o
sentimento dos grandes deveres que teria de cumprir. Encontrámo-nos muitas
vezes nesses longínquos tempos. O laço que desde então se estabeleceu
entre nós a atrai. Ela vos inspirará, do mesmo modo pelo qual me inspirou a
mim. O meu livro não foi mais do que um eco da sua paixão pela França e pela
verdade. Vai agora descer, para vos transmitir uma parcela da verdade divina.”
Jeanne, como todas as almas que connosco percorrem o ciclo
imenso da evolução, contou numerosas existências na Terra. Algumas foram
brilhantes, vividas sobre os degraus de um trono; outras obscuras; todas,
porém, de resultados fecundos para o seu próprio adiantamento e benéficas para
os seus semelhantes.
As primeiras transcorreram durante o período céltico, no
país de Armor. Lá é que a sua personalidade se impregnou dessa
natureza particular, feita de ideal, de intrepidez e de mística poesia, que a
caracteriza no décimo quinto século.
Desde a infância em Domremy, aprazia-lhe frequentar os
lugares onde se celebraram os ritos druídicos: os bosques de carvalho,
testemunhas das antigas evocações das almas, as fontes sagradas, os monumentos
de pedras brutas, esparsas aqui e ali, nos arredores da aldeia. Gostava de
adentrar-se na espessa floresta, para lhe escutar as harmonias, quando,
sacudindo-a, o vento a fazia vibrar qual harpa gigantesca. Com o olhar de
vidente, distinguia, por sob as abóbadas verdejantes, as misteriosas sombras
dos que presidiam àquelas evocações e aos sacrifícios. Entre os seus guias
invisíveis, poder-se-ia deparar com os Espíritos protectores das Gálias, os
mesmos que em todas as eras prestaram assistência aos filhos de Artur e
de Merlin e
dão aos que lutam por uma causa nobre a vontade e o amor que conduzem à
vitória.
Feneceu nas ramagens o visco, nos lares apagou-se a chama
sagrada; mas, no coração de Jeanne,
vívida estará sempre a fé nas vidas inextinguíveis e nos mundos superiores. Os
historiadores, que lhe souberam analisar e compreender o carácter, reconheceram
nele os influxos de uma dupla corrente – céltica e cristã, cuja
origem ela própria nos indicará em breve. Henri
Martin, notadamente, a acentuou nas páginas de sua História. Em
primeiro lugar, ele assinala, nos seguintes termos, as lembranças deixadas
pelos Celtas,
ainda vivas no tempo da heroína:
“Próximo da casa de Jeanne d'Arc passava
uma vereda que, atravessando tufos de groselheiras, subia o outeiro a cujo
cimo, coberto de mata, era dado o nome de Bois Chesnu. A meia
encosta, debaixo de grande faia isolada, borbotava uma fonte, objecto de culto
tradicional. Nas suas águas claras, desde tempos imemoráveis, buscavam a cura
os enfermos que a febre atormentava... Seres misteriosos, anteriores entre nós
ao cristianismo e
que os camponeses nunca assentiram em confundir com os espíritos infernais da
legenda cristã, os génios das águas, das pedras e dos bosques, as senhoras
fadas, frequentavam a cristalina fonte e a faia secular, que se
chamava o Belo Maio. Ao entrar a primavera, vinham as donzelas
dançar em baixo da árvore de Maio, “bela como os lírios” e
pendurar-lhe nos galhos, em honra das fadas Celtas, grinaldas
que desapareciam durante a noite, segundo era voz geral”. (i)
Descreve em seguida as impressões da virgem Lorena:
“As duas grandes correntes que se haviam juntado para dar
nascimento à poesia cavalheiresca, a do sentimento céltico e a do sentimento
cristão, misturaram-se de novo para formar essa alma predestinada. A jovem
pastora umas vezes sonha ao pé da árvore de Maio, ou sob os robles,
doutas, passa horas esquecidas no fundo da pequenina igreja, em êxtase diante
das santas imagens que resplandecem nas vidraças... Quanto às fadas,
ela nunca as viu ao luar, descrevendo os círculos de suas danças, em volta
do Belo Maio. A sua madrinha, porém, outrora as encontrara e Jeanne julga
perceber de quando em quando formas imprecisas, nos vapores do crepúsculo:
gemem vozes à tarde nos ramos dos carvalhos; as fadas já não dançam – choram:
é o lamento da velha Gália que expira!”. (ii)
Finalmente, falando do processo de Ruão, diz ainda o mesmo
autor: (iii)
“Jeanne soube opor o livre génio gaulês ao clero romano,
que intentava pronunciar-se em definitivo sobre a existência da França. Por
seu intermédio, o génio místico reivindica os direitos da personalidade humana,
com a mesma força que o génio filosófico; a mesma alma, a grande alma
da Gália,
desabrochada no Santuário do Carvalho, brota igualmente no livre-arbítrio de
Lérins e do Paracleto, na soberana independência da inspiração de Jeanne d'Arc
e no Eu de Descartes.”
A própria Jeanne,
confirmando esses modos de ver, assim se exprimia numa mensagem que ditou em
Paris, no ano de 1898: (iv)
“Remontemos, por instantes, ao curso das idades,
a fim de aprenderdes o caminho que percorri, preparando-me para transpor a
etapa dolorosa que conheceis.
“Múltiplas foram as existências que
contribuíram para o meu progresso espiritual. Decorreram na velha Armorica,
debaixo do zimbório dos grandes robles seculares, cobertos do
visco sagrado. Foi lá que, lentamente, me encaminhei para o estudo das
leis do Espírito e para o culto da pátria.
“Oh! entre todas, benditas as horas em que o bardo, com os seus
cantares alegres, nos fazia palpitar os corações e nos abria os olhos para a
luz, permitindo-nos entrever as maravilhas do infinito! Ensinava-nos
então que o passar da morte à ressurreição gloriosa do Espírito, no espaço,
representa uma simples transformação, sombria, ou luminosa, conforme o homem se
conduziu nesse mundo: ou seguindo a estrada da justiça e do amor, ou deixando-se
dominar pelas forças avassaladoras da matéria. Fazia-nos compreender as
leis da solidariedade e da abnegação; instruía-nos sobre o que era a prece,
dizendo: “Orar é triunfar; a prece é o motor de que o pensamento se
serve, para estimular as faculdades do Espírito, as quais, no espaço,
constituem a sua ferramenta. A prece é o ímã poderoso
do qual se desprende o fluido magnético espiritual, que, não só pode aliviar e
curar, como também descerra ao Espírito horizontes sem fim e lhe dá azo de
satisfazer ao desejo de conhecer e aproximar-se continuamente da fonte divina,
donde emanam todas as coisas. A prece é o fio condutor que põe a criatura em
relação com o Criador e com os seus missionários.”
“Um dia, compenetrada dessas verdades, adormeci e tive a
seguinte visão: Assisti, primeiramente, a muitos combates, oh!
impossível de serem evitados por efeito do livre-arbítrio de
cada um; mas, sobretudo, por motivo do amor ao ouro e à dominação, os dois
flagelos da Humanidade. Depois, descortinei claramente a grandeza
futura da França e o seu papel de civilizadora no porvir. Deliberei
consagrar-me muito particularmente a essa obra.
“Logo me vi rodeada de uma multidão simpática, que na maior
parte chorava e deplorava a minha perda. Em seguida, o veneno, o cadafalso, a
fogueira passam vagarosamente por diante de mim. Senti as labaredas
devorando-me as carnes e desmaiei!... Vozes amigas chamaram-me à vida e me
disseram: “Espera! A falange celeste que tem por missão velar sobre
esse globo te escolheu para secundá-la nos seus trabalhos e assim acelerar o
teu progresso espiritual. Mortifica a tua carne, a fim de que as
suas leis não possam ser obstáculo ao teu Espírito. A provação será curta,
porém rude. Ora e a força te será dada: colherás da tua obra todas as bênçãos
nos tempos vindouros. Assegurarás a vitória da fé arrazoada contra
o erro e a superstição. Prepara-te para fazer em tudo a vontade do Senhor, a
fim de que, chegada a ocasião, tenhas adquirido bastante energia moral para
resistir aos homens e obedecer a Deus! Seguindo estes conselhos, os
mensageiros do céu virão a ti, ouvirás as suas vozes, eles te guiarão e
aconselharão; podes ficar tranquila, não te hão de abandonar!”
“Como descrever o supremo anelo que se apoderou de mim!
Senti o aguilhão do amor penetrar todo o meu ser. Já não tive outro objectivo
que não fosse trabalhar pela libertação espiritual deste país abençoado, em que
acabava de saborear o pão da vida e de beber pela taça dos fortes. Essa visão
foi para a minha alma um celestial viático.”
/...
(i) Henri
Martin – Histoire de France, t. VI, páginas 138 e 193.
(ii) Ibidem, pág. 140.
(iii) Ibidem, t. VI, pág. 302.
(iv) Ver: Revue Seientifique et Morale du Spiritisme,
Janeiro de 1898.
Léon Denis, Jeanne d’Arc Médium, Segunda Parte – As missões de
Jeanne d'Arc, XVI Jeanne d’Arc e o ideal céltico (I de IV) 1º fragmento desta
obra.
(imagem de contextualização: L'Annonciation, óleo sobre painel
(1901), de Edgard Maxence)
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