I Posição do Problema ~
(VI de VI)
A exposição precedente já deixou adivinhar, sem
dúvida, a táctica do ateísmo contemporâneo.
Ele não é fruto directo do estudo científico, mas procura
insinuar-se com essa aparência. É evidente a ilusão, nesses filósofos, pois
sabemos que há entre eles uns tantos conceitos verdadeiros. É, à força de
quererem conjugar à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no
cérebro essa união clandestina. Essas teorias não podem invocar a seu
favor qualquer das grandes provas científicas da nossa época e, não obstante,
dão-se como resultantes de todo o moderno trabalho científico.
Isso repetem e, é com essa hermenêutica que abusam dos
ignorantes e da juventude desprecavida e entusiasta, tendendo a lhes
fazer crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram por descobrir e
demonstrar que não há Deus nem alma. São eles que fazem a Ciência.
Dir-se-ia, depois de os ouvir, não haver nada para além deles. Os
grandes homens da antiguidade e da Idade Média, tanto como os modernos, são
fantasmas e, toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo pretensamente
científico.
Torna-se necessário que a imaginação popular não se deixe iludir por
simples jogo de palavras, que valem mais, às vezes, por verdadeira
comédia. Importa que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com
conhecimento de causa e adquiram a certeza de que os factos científicos,
perquiridos sem prevenção, não comportam as conclusões dogmáticas que lhes
querem impor.
Vista de perto, a pedra angular a grande
custo lançada pelo materialismo contemporâneo, deixa entrever,
não passar de velho e carcomido tronco de madeira podre que no fundo, os
partidários do sistema já não estão seguros do seu cepticismo do que o estariam
os calvos discípulos de Heráclito ou
de Epicuro.
Ainda que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu sistema não
passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances
científicos.
E uma vez que são eles próprios a declarar que toda a hipótese
deve ser banida da Ciência, não há como deixarmos de começar por esse
banimento.
Realmente, com que direito fazem da força atributo da matéria?
Com que direito afirmam que a força está submetida à matéria, que
lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos inertes,
mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fundado é o nosso direito de
inverter-lhes a proposição, derrubando-lhes o edifício pela base.
Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo que o
discrime se coloca nestes termos fundamentais: é a matéria que domina a força,
ou antes esta que domina aquela?
Trata-se de discutir e escolher uma ou a outra, ou, para falar com
mais exactidão – trata-se de observar a Natureza e optar depois.
E, uma vez que os honrados campeões da matéria afirmam, com tanta
segurança, o primeiro enunciado, começamos por revoga-lo em dúvida e
propondo a alegação contrária.
No rosto desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta:
A força rege ou é regida pela matéria? É este o dilema que os
factos por si mesmos devem resolver.
O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira demonstração
de soberania da força e da ilusão dos materialistas.
Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas, às
leis que as governam e, destas, ainda, ao seu misterioso autor.
A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e os
ouvidos de alguns ínfimos seres humanos se recusam a escutá-los. A
mecânica celeste lança, ousadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de
um parasita desses orbes desdenha a grandeza da sua arquitectura.
A luz, o calor, a electricidade, pontos invisíveis
projectados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movimento,
a actividade, a vida, a radiação do esplendor e da beleza e, as imbeles
criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um parasita desses orbes
desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É loucura ou é tolice? É
orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de tão estranha aberração?
Porque a força vital, álacre e fecunda, palpita no Sol como na borboleta que
morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como na primaveril violeta?
– porque a vida magnificante doura as messes de Julho e os cabelos
encaracolados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? –
porque negar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque
envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar, tristemente,
a luz imaculada que desce dos céus?
Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante da vida,
devemos considerar o esboço material do Universo, começando por demonstrar a
soberania da força no desenhar desse mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em
duas partes: o Céu e a Terra, para estabelecer em primeiro lugar, por leis
astronómicas e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria,
esta nunca deixou de ser escrava servil, universalmente dominada pela energia que
a rege. Esta divisão não deve sugerir, de modo algum, a velha comparação do céu
com a Terra, que bem sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor
absoluto, o céu é tudo e a Terra não é nada. A Terra é um átomo imperceptível,
perdido no seio do infinito; o céu a envolve no ilimitado e a integra na
população astral, sem excepção nem privilégio particular.
Reunir os dois vocábulos, é como dizer: que os Alpes são uma pedrinha e,
o Oceano uma gota d’água e o Saará um grão de areia. É comparar o todo a um
mínimo do mesmo todo.
Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão, que só
se justifica por dar maior clareza ao assunto. Para nós, terráqueos, este globo
é alguma coisa, assim como para a minúscula lagarta, que aflora numa folha,
esta folha algo vale, mau grado à sua insignificância no conjunto da pradaria.
A nossa esfera de observação divide-se também, naturalmente, em duas
partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso mundo.
Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a
matéria está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa inerte, cega,
morta, composta de elementos incapazes de se dirigirem por si sós; que não agem
nem pensam por impulsos próprios e que, nas sendas invisíveis do espaço, tanto
como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em átomos, dirige as
moléculas e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece o plano, a
vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor.
/…
(Referências: – Papel da Ciência na sociedade moderna. – Sua
potência e grandeza. – Seus limites e tendências a ultrapassá-los. – As
ciências não podem dar nenhuma definição de Deus. – Processo geral do ateísmo
contemporâneo. – Objecções à existência divina, inferidas da imutabilidade das
leis e da íntima união entre a força e a matéria. – Ilusão dos que afirmam ou
negam. – Erros de raciocínio. – A questão geral resume-se em estabelecer as
relações recíprocas da força e da substância.)
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Primeira Parte, A Força e a Matéria / I - Posição do Problema (VI de VI), 10º
fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895,
pintura de James Jebusa Shannon)
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