segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Corpo fluídico | agénere ou aparição tangível ~


Capítulo Terceiro 

INSTALANDO-SE, AFINAL 

Na intenção de formalizar a obra roustainguista como integrante da Doutrina Espírita, os Autores se cercam de argumentos e citações separadas a dedo. E mais, não deixam passar uma oportunidade sequer em que o nome Roustaing possa ser citado de maneira positiva. 

No volume terceiro da obra "Allan Kardec" está concentrado o principal esforço pró-Roustaing. Um documento, por exemplo, datado de 1904, serve de pretexto para que ele seja citado. É que naquela ocasião se reuniram no Rio de Janeiro espíritas de diversos pontos do Brasil. No final, aprovaram aquilo que se chamou "Bases da Organização Espírita" em decorrência de uma proposta da Federação Espírita Brasileira. As Bases resumiam os esforços que seriam envidados no sentido de criar, nos diversos Estados brasileiros, sociedades moldadas na própria FEB. Depois de se referir às obras "O Livro dos Médiuns" e "O Livro dos Espíritos", diz: "Em todas essas agremiações o programa consistirá (...) c) para a parte moral, no estudo dos Evangelhos, adoptando "O Evangelho segundo o Espiritismo" os que assim o entenderem, ou "Os Quatro Evangelhos" ou "Revelação da Revelação", dada a J.- B. Roustaing os que o preferirem, em todos esses estudos permitindo-se sempre a permuta de opiniões, para perfeito entendimento das questões tratadas". O certo é que, já na época, grandes discussões eram travadas nos meios espíritas brasileiros a propósito da obra de Roustaing. Na reunião de 1904 não deverá ter sido fácil um consenso em torno do programa citado, exactamente por causa do livro "Quatro Evangelhos" defendido pela FEB e contestado por grupos de outros Estados. O "Livro do Centenário", editado pela FEB e que trata da reunião de 1904, diz que "na reunião dos delegados... foram aprovadas, depois de discussão e ligeira rectificação em alguns pontos do projecto original, apresentado pela directoria da Federação, as... Bases da Organização Espírita". Certamente o termo "ligeira rectificação" não deve expressar bem o que houve. A Federação, interessada na expansão do movimento espírita através da fundação de novas sociedades, mas igualmente interessada em fazer crescer o número daqueles que estudariam as obras de Roustaing, com certeza encontrou, como ainda hoje ocorre, resistências muito fortes, o que gerou intranquilidade. Daí a procura de uma fórmula que evitasse a cisão completa, fórmula que muito bem pode ter sido a de deixar que os próprios espíritas decidissem o que estudar. Paliativa, mas não a melhor, sabiam os antiroustainguistas, porque antes de tudo se deve estudar Kardec

Mais adiante, ainda no volume terceiro, os Autores fazem a citação do livro "Universo e Vida", a fim de fundamentar a sua argumentação relativa à obra "A Génese". Ora, "Universo e Vida", livro de origem mediúnica (?), é declaradamente roustainguista. Teve como prefaciador o próprio Sr. Francisco Thiesen, co-autor de "Allan Kardec" e, foi editado pela FEB. Não é obra aceite por boa parte da crítica espírita. Recebeu a contestação de um dos mais ilustres escritores - Hermínio C. Miranda - através de um bem fundamentado trabalho publicado na imprensa espírita (i). Hermínio o criticou a partir do nome do autor espiritual, Áureo. E a obra, realmente, apresenta pontos de vista que não encontram respaldo em nenhuma parte da codificação. Veja-se, para exemplificar, a citação a seguir (ii)

"Os Cristos, Espíritos Puríssimos, não encarnam. Não têm mais nenhuma afinidade essencial com qualquer tipo de matéria, que é o mais baixo estágio da energia universal. Para eles matéria é lama fecunda, que não desprezam, sobre a qual indirectamente trabalham através dos seus prepostos, na sublime mordomia da Vida, mas coisa com que não podem associar-se contextualmente, muito menos em íntimas ligações genéticas. Eles podem ir a qualquer parte dos Universos e actuar onde lhes ordene a Vontade Todo-Poderosa de Deus Pai; podem mesmo mostrar-se visualmente, por imenso sacrifício de amor, a seres inferiores e materializados, indo até ao extremo de submeter-se ao quase-aniquilamento de tangibilizar-se à vista e ao tacto de habitantes de mundos inferiores, como a Terra; mas não podem encarnar, ligar-se biologicamente a um ovo de organismo animal, em processo absolutamente incompatível com a sua natureza e tecnicamente irrealizável." 

Eis aí uma opinião tola da inteira responsabilidade de quem a formulou, como diria Kardec. Além disso, ela se contradiz a si mesma. Não se compreende como pode o Espírito Superior estar incompatibilizado de se ligar à carne, por ser ela "lama". O que confere superioridade é exactamente o facto de poder viver experiências sem as quedas naturais aos Espíritos imperfeitos. Dizer que os Cristos não encarnam é falar sem provas. Kardec, após conviver com uma grande equipe constituída por Espíritos da mais alta envergadura, entendeu exactamente o contrário ao referir-se a Jesus. 

Veja-se esta outra transcrição (iii)

"Há, porém, agéneres e agéneres. Tais seres são, por definição, criaturas fisiologicamente não geradas como o normal dos encarnados. Noutras palavras, seres que se mostram materializados aos olhos humanos, às vezes por longos períodos, que são sempre interrompidos, necessariamente, por variáveis interregnos de tempo. Em casos especiais, a frequência com que aparecem dá uma poderosa impressão de continuidade." 

Aqui não parece ser um Espírito quem fala, mas um encarnado. A definição de não gerado dada aos agéneres partiu da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, na época dirigida por Kardec. O Autor usa a mesma definição, quando poderia tê-la ampliado até. O que ele não explica, porém, é a questão do agénere de longo período de materialização. Para Kardec, a longa duração não excedia de algumas horas. E para o Autor de "Universo e Vida"? Bem, com certeza a sua longa duração ultrapassa a alguns anos, pois só assim se pode conciliar o Cristo agénere... 

Veja-se mais (iv)

"O Cristo-Jesus, Senhor da Verdade e da Inteireza, foi o único Espírito absolutamente completo, com todas as suas faculdades plenamente desenvolvidas e, em perfeito funcionamento, que se materializou totalmente na Terra, assumindo por inteiro a biologia e a morfologia de um Homem, com tudo o que compõe um organismo humano, sem faltar absolutamente nada, personificando o modelo físico e espiritual, perfeito por excelência, do Homo sapiens, na futura e mais elevada conformação biomentofísica que atingirá quando chegar ao seu mais alto grau de evolução terrestre. Foi por essa razão que Jesus se intitulou, com a mais plena verdade e a mais inteira justiça, O FILHO DO HOMEM. Não o fez por mera força de expressão; disse uma soleníssima verdade, da mais extraordinária significação, pois como Homem Ideal, perfeito e íntegro, ninguém teve, com ele, neste mundo, todos os sentidos a funcionar em grau máximo. A sua percepção, mesmo se quiséssemos vê-la do exclusivo ponto de vista da organização psicossomática humana, atingiu o mais alto nível, que outro ser humano, ou de aparência humana, jamais conseguiu." 

Efectivamente, um Cristo privilegiado. É só o que se pode concluir do trecho acima. Um Cristo protagonista do mais espectacular parto de toda a história da humanidade, ou seja, não chegou pelas vias naturais, mas foi detentor do mais perfeito corpo humano, "sem faltar absolutamente nada", em suma o verdadeiro "modelo físico e espiritual". Quanta inveja esta revelação não há de causar aos melhores cientistas que se esfalfam nos seus laboratórios para desvendar os mistérios da vida humana e, de repente, aparece um cristo-roustanguista com o mais surpreendente corpo! 

O pior, porém, é o que vem a seguir. Uma crítica directa e impiedosa a Kardec e a todos os que seguiram a sua opinião. 

"Completamente irreal e terrivelmente injusto é, pois, o argumento de embuste, largamente usado pelos que não compreendem a absoluta impossibilidade da encarnação comum de um Ser Crístico e só conseguem ver uma grosseira pantomima na capacidade de sofrer de um agénere. A verdade, como vemos, é bem outra, incomparavelmente bela, justa, santa, lógica e real; a realidade do sublime amor daquele que é, de facto, o Caminho, a Verdade e a Vida." 

Viu-se como fora preciso criar um agénere distinto, perfeito, tão humano como qualquer encarnado, para explicar que o Cristo sofreu, que não cometeu nenhuma farsa. Eis o absurdo! Mais lógico, mais simples que tudo isso seria nascer pelas vias naturais! Dizer que o agénere sofre com as dores físicas é fechar os olhos à própria realidade do agénere. Então, para fugir a isto inventa-se o agénere do agénere! Eis aí um atalho mais longo que a estrada, por onde se enveredam (e se perdem, não há dúvida...) os infelizes mistificadores. 

Hermínio C. Miranda, já citado, na sua crítica a "Universo e Vida", intitulada "Razões para uma discordância", transcreve e comenta o seguinte trecho: "Já nem queremos insistir no que representa uma redução de radiações gama (que o Cristo teria feito para se materializar na Terra), de 0,0001 milimícrons de comprimento de onda e frequência da ordem 1021 por segundo, a radiações percebíveis pelo olho humano, de 0,8 mícrons a 0,4 mícrons de comprimento de onda e frequência de cerca de 5.1014 por segundo". 

Comenta Hermínio: "Certamente, por causa dos meus escassos conhecimentos de Física isso não me diz nada e nada acrescenta ao Cristo que vejo na serena filosofia do amor nos Evangelhos. Como também não posso entender o tremendo risco que representa para nós, encarnados, a presença de um Espírito Crístico. Segundo depreendo do texto de "Universo e Vida" (pág. 111), qualquer "organismo celular de matéria densa" está sujeito a desintegrar-se "instantaneamente à mais branda vibração bioeletromagnética de um ser daquela categoria". 

A coisa não pára aí. Hermínio estranha, entre outras coisas, a longa adjectivação com que o Autor distingue Maria, mãe de Jesus. E diz: "Lamento informar que também não me agrada a maneira pela qual é tratada a figura de Maria, a despeito dos retumbantes adjectivos escolhidos para exaltá-la. Ou mais precisamente, por isso mesmo. Habituado a uma veneração respeitosa e a uma filial ternura por esse amado Espírito, não a vejo como "base ectoplásmica" ou "ponto de referência e de equilíbrio de todos os processos espirituais, eletromagnéticos e quimiofísicos" destinados a possibilitar "a Presença Crística" na Terra. Os títulos são estes: Virgem Excelsa, Rainha dos Anjos, Santa das Santas, Estrela Divina do Universo das Grandes Almas, a Grande Mãe, a Grande Advogada, Grande Protectora, Augusta Senhora do Mundo ... ". 

Hermínio arremata: "Tenho as minhas dúvidas de que o suave Espírito da Senhora se sinta bem com toda essa exaltação adjectiva..." 

Agora – muito importante – as conclusões de Hermínio C. Miranda sobre "Universo e Vida", no seu todo: "Lamento, pois, declarar que discordo das ideias e conceitos expressos em "Universo e Vida". Não sei mesmo se as dificuldades alegadas quando de sua captação mediúnica resultaram da actuação dos "aborrecidos da luz" ou de companheiros esclarecidos que desejavam alertar os que nele trabalhavam para as suas incongruências e fantasias"

Ora, uma obra que pretende ter o porte do mais profundo trabalho sobre Allan Kardec, como a de Zêus Wantuil e Francisco Thiesen, torna-se altamente suspeita quando recorre a fontes do género "Universo e Vida". 

É certo, porém, que nem os próprios roustainguistas se entendem com relação à sua doutrina. Veja-se o que diz Luciano dos Anjos (adepto declarado de Roustaing): 

"Lendo, recentemente, o livro "Universo e Vida", do Espírito Áureo, para o qual me fora solicitado um prefácio que não fiz, deparei outra vez com esse tipo de erro. Oportunamente, comentarei essa obra. Por enquanto, adianto que o Autor, dizendo-se adepto das ideias de Roustaing, sem dúvida não as entendeu, pois há erros incríveis de interpretação". 

/... 
(i) "Jornal Espírita", outubro de 1980, páginas 9/10. 
(ii) Capítulo VII, página 110. 
(iii) Idem, página 115. 
(iv) Idem, ibidem, página 116. 


Wilson GarciaO Corpo Fluídico, Capítulo Terceiro – INSTALANDO-SE, AFINAL, 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sem Título, pintura de Josefina Robirosa

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