terça-feira, 10 de outubro de 2017

literatura do além-túmulo ~

Capítulo I

Entre as numerosas formas que revestem as manifestações mediúnicas de natureza inteligente, não nos devemos esquecer das que consistem na produção de obras literárias, às vezes bem volumosas, ditadas psicograficamente por entidades que dizem ser espíritos de mortos.

 Há necessidade de notar que grande número dessas produções mediúnicas não resistem a uma análise crítica, mesmo a mais superficial, de tal modo é evidente serem apenas o produto de uma elaboração onírico-subconsciente, de natureza grosseira e mais ou menos incoerente, com personalizações sonambúlicas que se formaram por sugestão ou auto-sugestão.

Essas personificações devem, em toda a parte, nesses casos, ter origem nos recursos do talento e da instrução própria às personalidades conscientes de que provêm, com a consequência de que as obras literárias dos supostos espíritos que julgam comunicar-se são, algumas vezes, tão rudimentares, que traem a sua origem, sem que se possa ter a menor dúvida a esse respeito.

Não é menos verdade que, ao lado dos pseudo-médiuns, encontram-se médiuns autênticos, por intermédio dos quais se obtêm, às vezes, obras literárias de grande mérito, que levam a uma reflexão séria e não podem ser atribuídas a uma elaboração subconsciente da cultura geral, muito limitada, que se reconhece nos médiuns que, materialmente, as escreveram. É então necessário deduzir logicamente daí que essas produções provenham de intervenções estranhas aos médiuns, tanto mais se se consideram não somente as provas que se deduzem da forma, estilo, técnica individual da obra literária e também da identificação de escrita, como outras provas não menos importantes.

Essas provas consistem, sobretudo, em indicações pessoais ignoradas de todos os assistentes e das quais se verifica, em seguida, a veracidade; em citações não menos verídicas e desconhecidas de todos, com referência a elementos históricos, geográficos, topográficos, filológicos, de natureza complexa e quase sempre rara, enfim, em descrições minuciosas, coloridas e vivas, de meios e costumes referentes a povos bem antigos, circunstâncias que não poderiam ser esquecidas pela hipótese cómoda da emergência subconsciente de noções adquiridas e, em seguida, esquecidas (criptomnesia).

Proponho-me, neste estudo, analisar as principais manifestações desse género, principalmente porque foram obtidos, ultimamente, ditados mediúnicos que revestem alto valor teórico, num sentido nitidamente espírita.

O que se obteve, no passado, nessa categoria de manifestações, só tem rara importância teórica; de qualquer forma, não me absterei de dizer algumas palavras a respeito delas.

Começo por um caso de transição referente a uma célebre obra literária. Tudo o que se pode dizer a seu respeito é que não é fácil considerar se as modalidades, pelas quais veio à luz, devem ser atribuídas a intervenções estranhas à médium ou bem a um estado de superexcitação psíquica, bastante frequente nas “crises de inspiração”, às quais são sujeitas as mentalidades geniais. Em todo o caso, trata-se de um facto interessante e instrutivo, dadas a notoriedade da autora e a influência considerável que a obra literária em questão exerceu sobre acontecimentos históricos e sociais de uma grande nação.

Quero referir-me à célebre escritora sra. Harriet Beecher-Stowe e ao seu bem conhecido romance A Cabana do Pai Tomás, o qual muito contribuiu para a abolição da escravatura nos Estados Unidos da América.

O meio familiar em que viveu Harriet Beecher-Stowe pode ser considerado como favorável a intervenções espirituais.

O prof. James Robertson assim fala na Light (1904, pág. 338):

“O marido, prof. Stowe, era médium vidente. Ele viu muitas vezes, à sua volta, fantasmas de defuntos, de maneira tão nítida e natural que por vezes lhe era difícil discernir os espíritos “encarnados” dos “desencarnados”.”

Quanto à sra. Beecher-Stowe, ela era também grande sensitiva, “sujeita a crises frequentes de depressão nervosa com fases de ausência psíquica”. Ela acolhera com entusiasmo o movimento espírita que se iniciara na América, havia alguns anos.

Relativamente ao seu grande romance A Cabana do Pai Tomás, extraio da Light (1898, pág. 96) as seguintes informações:

“A sra. Howard, amiga íntima da sra. Beecher-Stowe, forneceu essas curiosas indicações relativamente às modalidades nas quais o famoso romance foi escrito. As duas amigas estavam em viagem e pararam em Hartford para passarem a noite em casa da sra. Perkins, irmã da sra. Stowe. Elas dormiram no mesmo quarto. A sra. Howard despiu-se imediatamente e ficou, do seu leito, observando a sua amiga ocupada em pentear, automaticamente, os seus cabelos anelados, deixando transparecer no seu rosto intensa concentração mental. Nesse ponto, a narradora continua assim:

Finalmente Harriet pareceu sair desse estado e disse-me:

– Recebi, nesta manhã, cartas de meu irmão Henry que se mostra bastante preocupado a meu respeito. Ele teme que todos esses elogios, que toda esta notoriedade que se criou em torno de meu nome, produzam o efeito de provocar em mim uma chama de orgulho que possa prejudicar a minha alma de cristã.

Dizendo isto, pousou o pente, exclamando:

– O meu irmão é, incontestavelmente, uma bela alma, porém ele não se preocuparia tanto com esse caso se soubesse que esse livro não foi escrito por mim.

– Como – perguntei eu, estupefacta –, não foi você quem escreveu A Cabana do Pai Tomás?

– Não – respondeu ela –, não fiz outra coisa senão tomar nota do que via.

– Que está a dizer? Então você nunca foi aos Estados do Sul?

– É verdade, todas as cenas do meu romance, uma após as outra, se me desenrolaram diante dos olhos e eu descrevi o que via.

Perguntei ainda:

– Pelo menos você regulou a sequência dos acontecimentos.

– De modo nenhum – respondeu-me ela –; a sua filha Annie me censura por ter feito morrer Evangelina. Ora, isso não foi por minha culpa; não podia impedi-lo. Senti-o mais do que todos os leitores; foi como se a morte tivesse atingido uma pessoa de minha família. Quando a morte de Evangelina se deu, fiquei tão abatida que não pude retomar a pena por mais de duas semanas.

Perguntei-lhe então:

– E sabia que o pobre pai Tomás devia, por sua vez, morrer?

– Sim – respondeu-me ela –, isso eu o sabia desde o princípio, porém ignorava de que morte iria morrer. Quando cheguei a esse ponto do romance, não tive mais visões durante algum tempo.”

Em outro número da mesma revista, (1918, pág. 325), relatou-se o seguinte episódio sobre o mesmo assunto:

“Certa tarde, a sra. Beecher-Stowe passeava sozinha, como de hábito, no parque. O capitão X. viu-a, aproximou-se dela e, descobrindo-se respeitosamente, disse-lhe: Na minha mocidade, li também com intensa emoção A Cabana do Pai Tomás. Permiti-me apertar a mão da autora do célebre romance. A escritora, septuagenária, estendeu-lhe a mão, notando, entretanto, vivamente:

– Não fui eu quem o escreveu.

– Como, não foi a senhora? – perguntou o capitão, surpreso –. Quem o escreveu então?
Ela respondeu:

– Deus o escreveu. Foi Ele quem ma ditou.”

Na primeira das duas passagens acima, que acabo de citar, nota-se uma emergência espontânea da subconsciência da autora, consistindo em visões cinematográficas que traçam a acção do romance, o que oferece grandes analogias com as modalidades da cerebração donde saíram romances de outros autores de génio, tais como Dickens e Balzac. Estes últimos, por sua vez, viam desfilar, subjectivamente, as cenas e os personagens que tinham imaginado. A diferença entre as suas visões e as da sra. Beecher-Stowe parece, então, consistir nesta última circunstância: eles assistiam ao desenvolvimento de acontecimentos que a sua imaginação consciente tinha criado, ao passo que a sra. Beecher-Stowe assistia, passivamente, ao desenrolar de eventos que não tinha criado e que estavam, muitas vezes, em oposição absoluta à sua vontade, pois que, por ela, não teria feito morrer duas santas personagens do seu romance.

Esta circunstância é importante e parece fazer distinguir as visões subjectivas, comuns aos escritores de génio, das tidas pela sra. Beecher-Stowe, da mesma maneira que as “objectivações de tipos”, estereotipadas e automatizadas, que se obtêm pela sugestão hipnótica, não apresentam nada de comum com as personalidades mediúnicas, independentes e livres, que se manifestam por intermédio de verdadeiros médiuns.

A presunção de que não se tratava de visões puramente subjectivas adquire mais eficácia ainda graças à segunda das duas passagens já citadas, na qual a sra. Beecher-Stowe declara, explicitamente, ter transcrito o seu romance como ele lhe fora ditado, o que prova que a célebre autora era médium escrevente, circunstância que se encontra confirmada por factos assinalados na sua biografia, segundo os quais ela era sujeita a “fases de ausência psíquica” que eram, com toda a verosimilhança, estados superficiais de transe.

Noutro ponto de vista, faço notar que a exclamação da sra. Beecher-Stowe: “Deus o escreveu”, subentende que o ditado mediúnico se realizou sob forma anónima, isto é, que o agente espiritual operante ocultava a própria individualidade, limitando-se, ao que parece, a cumprir na Terra a missão de que se encarregara: a de contribuir, eficazmente, graças a uma narrativa emocionante e pungente, para a obra humanitária da redenção de uma raça oprimida.

Julguei poder tirar do caso a conclusão que venho de narrar. Todavia, não insisto nela, considerando que estas induções não são suficientes para concluir a favor da origem realmente espírita do romance em questão.

É necessário, todavia, notar que as bases sobre as quais repousam as induções a favor de uma explicação puramente subjectiva dos estados da alma por que passou a autora, quando trabalhava no seu grande romance, parecem bem mais fracas, quando são analisadas, que as da interpretação espírita dos mesmos factos.

/... 


Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo, Capítulo I – A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher-Stowe. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

Sem comentários:

Enviar um comentário