ALUCINAÇÃO E CRIME ~
O ofício fúnebre, terminado o longo velório, tem início na
manhã cinzenta, quebrada por violentas descargas da tempestade que estruge,
intérmina. Plangem sinos de finados e, por momentos, as atenções se concentram
na figura do Bispo, paramentado, que dá início ao réquiem. Diante do altar
improvisado, a figura do Crucificado, em prata e ouro, imóvel, pregada em
madeira preciosa da região, brilha ante o fulgor dos círios acesos em
abundância. O coro, vindo especialmente da Catedral de Siena,
entoa um cantochão. Incenso, mirra e nardo embalsamam o ambiente, de modo
tocante.
No meio as exéquias, o Bispo pronuncia o sermão laudatório
da personalidade do extinto, lamentando não lhe ter podido aplicar a
extrema-unção, no termo da jornada carnal. Exora, todavia, socorro ao Senhor
da Vida e da Morte, enquanto lhe encomenda o corpo,
seguindo os tradicionais rituais da Igreja Romana. O sacrifício da missa de
corpo presente prossegue. As vozes se alteiam ou murmuram, cantando. Soluços
discretos irrompem dos sentimentos do povo humilde das redondezas, que ali se
aglutina para render as últimas homenagens ao seu benfeitor. Nuvens de fumo se
levantam, perfumadas, agitadas por turíbulos prateados e com brasas vivas.
A pequena distância, oculta discretamente e enlutada, Lúcia,
de joelhos, soluça, dominada por fortes emoções. Repassam pelo seu pensamento
todos os lances da sua vida no palácio que a acolheu. Os seus pais entregaram-na
pequena à família da Senhora duquesa, a fim de que fosse preparada
para dama de companhia. Ali recebera todo o carinho, cultivara os dotes do
sentimento e as suas mãos se exercitaram na arte dos bordados e tecelagens, em
que se fizera mestra. Os gobelins por ela tecidos ao lado da
Senhora Ângela enriqueciam diversas peças do imponente lar.
À lembrança da benfeitora, porém, teve a impressão de que se
lhe dilatavam as pupilas e estranhos sentimentos lhe assomaram ao espírito
inquieto. Latejaram-lhe as artérias nas têmporas, suor glacial inundou-a e
frequente tremor se lhe apossou das carnes. Teve a sensação de que ia morrer.
Um vágado inesperado fê-la cair sobre as lajes de pedra. Servidores apressados
conduziram-na, inconsciente, ao quarto de dormir, colocando-a sobre o leito
fofo e macio. Odores fortes foram aplicados às narinas; resinas perfumadas
foram friccionadas nos pulsos e na testa… Ofegante, de peito descompassado,
continuou vencida pelos choques nervosos que a sacudiam. Chamado o médico, este
aplicou, a muito custo, a ingestão de medicamento calmante, solicitando a todos
que a deixassem assistida apenas por uma das suas amigas-camareiras, de modo a
que pudesse repousar…
Entrementes, ao experimentar a cabeça atordoada, e quando
perdia o equilíbrio das próprias forças, sentiu-se flutuar no ar, fora do
corpo, divagando, numa visão entre névoas claras, a veneranda figura da duquesa,
que lhe alongava as mãos generosas, albergando-a no seio maternal. A forma
diáfana recordava as telas clássicas da pintura renascentista, em que matronas
de luz faziam evocar a Senhora de Nazaré, Mãe do Sublime Crucificado. As
lágrimas brotaram-lhe abundantes e, vencida pela felicidade do reencontro
inesperado, naquela esfera desconhecida, teve a impressão de que se libertara
do pesado fardo da carne, demandando às gloriosas regiões celestes. Desejou
falar, dizer todas as inquietudes e os anseios que lhe rebentavam no coração
sensível, a saudade imensa e destruidora, os últimos acontecimentos e os
presságios que a martirizavam… Não pôde fazê-lo. A expressão de quase
angelitude da senhora terminou por apaziguar-lhe as tempestades interiores. O
sorriso triste que lhe ornava a face e a inefável luz que se derramava de toda
ela, envolta em auréola resplendente, tocaram o espírito da servidora fiel.
– Confia, minha filha, – murmurou a visão espiritual, quase
sorridente – e não desfaleças! Levanta o espírito abatido e ergue-te acima das
vicissitudes do caminho. Lutar é sofrer, e ninguém conseguirá felicidade sem o
largo património das lágrimas e renúncias…
“Todos nascemos e morremos para renascer, rectificando numa
existência as imperfeições noutra contraídas. O curso incessante das vidas
forma o rio da santificação que desagua no oceano da Eternidade.
“Pesados cúmulos se associam hoje sobre o tecto do nosso
lar, exigindo-nos inomináveis agonias e demorados sofrimentos. É, todavia,
necessário que nos submetamos aos desígnios divinos. Nenhum de nós está
esquecido das Leis Excelsas. Embora nos encontremos aparentemente abandonados,
fracos de forças, desempenhando árduas tarefas que nos exigem imensa colheita
de dor, Espíritos angelicais e benfeitores, em nome do Soberano Pai, nos
acompanham e ajudam. Não te desesperes nem te desgovernes emocionalmente.
“Velhas dívidas do passado remoto, que recuam ao século
XIII, nos atam indelevelmente uns aos outros, exigindo regaste. Não nos
reencontramos por caprichos do Destino. O Destino, conforme todos apregoam, não
existe. Ele seria a negação de Deus, das leis de mérito e débito. O que
consideramos Destino é o resultado de muitas actividades que culminam num
momento, para nós inesperado, mas que, para os arquitectos da Vida, está adrede
programado. Amores, adversários, felicidade e desdita são peças da rede da vida
imperecível, atando e desatando as suas teias incessantemente, até ao instante
da libertação definitiva de todo o sofrer. E o repetir de amargas experiências
são oportunidades de que desfrutamos para nos alçarmos às regiões da ventura,
que não se podem definir nem descrever por enquanto, por limitação da linguagem
humana e por impossibilidades de entendimento da humana capacidade.
“Ainda não tive a ventura de acolher nos meus braços
saudosos o companheiro, por enquanto em processo de libertação. Amarrado a
injustificável angústia, que a nossa separação física momentaneamente causou,
ele vinculou-se fortemente ao corpo transitório, esquecendo-se das paisagens
fulgurantes da Imortalidade, de que nos falam as valiosas lições do Evangelho e
que a Religião, embora velando-as com imagens pesadas e pouco reais, nos
apresenta, indicando rumos.
“A morte, por isso mesmo, não é o fim. E a vida, que dela se
desenlaça, não migra para os ajustes imediatos sob a assistência severa do
Senhor, que nos recebe para punir ou premiar. Cada um morre como
viveu e viverá conforme foi recebido pela morte. Imprescindível,
pois, viver de modo a poder enfrentar a vida que a todos nos aguarda, quando a
cortina de sombras se levanta, deixando aparecer a madrugada da Imortalidade.”
Uma pausa refrescante silenciou a mensageira espiritual.
Lúcia, deslumbrada, continuou de olhar cintlilante, fixo na
face de luz e ouro da Senhora di Bicci di M. O orvalho das lágrimas nos seus
olhos pareciam brilhantes finos, engastados nos cílios negros e longos. Após o
silêncio expressivo, o semblante da Senhora duquesa nublou-se
rapidamente, e ela falou, como se antecipasse no tempo e no espaço os
acontecimentos de dor e luto que logo mais adviriam, convocando a moça ao
testemunho...
/…
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO
PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (1 de 4), 4º fragmento da obra. Texto
mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898,
tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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