domingo, 30 de março de 2014

Se mais não houvesse em nós que matéria ~

A VIDA É IMORTAL |

O estudo do Universo conduz-nos ao estudo da alma, à investigação do princípio que nos anima e dirige os actos.

Já o dissemos: a inteligência não pode provir da matéria. A Fisiologia ensina-nos que as diferentes partes do corpo humano renovam-se num lapso de tempo que não vai além de alguns meses. Sob a acção de duas grandes correntes vitais, produz-se em nós uma troca perpétua de moléculas. Aquelas que desaparecem do organismo são substituídas, uma a uma, por outras, provenientes da alimentação. Desde as substâncias moles do cérebro até às partes mais duras da estrutura óssea, tudo no nosso ser físico está submetido a continuas mutações. O corpo dissolve-se e, numerosas vezes durante a vida, reforma-se. Entretanto, apesar dessas transformações constantes, através das modificações do corpo material, ficamos sempre a mesma pessoa. A matéria do cérebro pode renovar-se, mas o pensamento é sempre idêntico a si mesmo e com ele subsiste a memória, a recordação de um passado de que não participou o corpo actual. Há, pois, em nós um princípio distinto da matéria, uma força indivisível que persiste e se mantém entre essas perpétuas substituições.

Sabemos que, por si mesma, não pode a matéria organizar-se e produzir a vida. Desprovida de unidade, ela desagrega-se e divide-se ao infinito. Em nós, ao contrário, todas as faculdades, todas as potências intelectuais e morais se agrupam numa unidade central que as abraça, liga e esclarece, e esta unidade é a consciência, a personalidade, o Eu, ou, por outra, a Alma.

A alma é o princípio da vida, a causa da sensação; é a força invisível, indissolúvel que rege o nosso organismo e mantém o acordo entre todas as partes do nosso ser. (i) Nada de comum têm as faculdades da alma com a matéria. A inteligência, a razão, o discernimento, a vontade, não poderiam ser confundidos com o sangue das nossas veias ou com a carne do nosso corpo. O mesmo sucede com a consciência, esse privilégio que temos para medir os nossos actos, para discernir o bem do mal. Essa linguagem íntima, que se dirige a todo o homem, ao mais humilde ou ao mais elevado, essa voz cujos murmúrios podem perturbar o estrondo das maiores glórias nada tem de material.

(i) Isto por meio de um fluido vital que lhe serve de veículo para a transmissão das suas ordens aos órgãos. Voltaremos mais adiante a esse terceiro elemento chamado “perispírito”, que sobrevive à morte e que acompanha a alma nas suas peregrinações.

Correntes contrárias agitam-se em nós. Os apetites, os desejos ardentes chocam-se de encontro à razão e ao sentimento do dever. Ora, se mais não fôssemos do que matéria, não conheceríamos essas lutas, esses combates; e entregar-nos-íamos, sem mágoa, sem remorso, às nossas tendências naturais. Mas, ao contrário, a nossa vontade está em conflito frequente com os nossos instintos. Por meio dela podemos escapar às influências da matéria, domá-la, transformá-la em instrumento dócil. Não se têm visto homens nascidos nas mais precárias condições vencerem todos os obstáculos, a pobreza, as enfermidades, os defeitos e chegarem à primeira classe pelos seus esforços enérgicos e perseverantes? Não se vê a superioridade da alma sobre o corpo afirmar-se, de maneira ainda mais positiva, no espectáculo dos grandes sacrifícios e das dedicações históricas? Ninguém ignora como os mártires do dever, da verdade revelada prematuramente, como todos aqueles que, pelo bem da Humanidade, têm sido perseguidos, supliciados, levados ao patíbulopuderam, no meio das torturas, às portas da morte, dominar a matéria e, em nome de uma grande causa, impor silêncio aos gritos da carne dilacerada!

Se mais não houvesse em nós que matéria, não veríamos, quando o corpo está mergulhado no sono, o Espírito continuar a viver e a agir sem auxílio algum dos nossos cinco sentidos, e assim mostrar que uma actividade incessante é a condição própria da sua natureza. A lucidez magnética, a visão à distância sem o socorro dos olhos, a previsão de factos, a penetração do pensamento são outras tantas provas evidentes da existência da alma.

Assim, pois, fraco ou poderoso, ignorante ou esclarecido, somos um Espírito; regemos este corpo que mais não é, sob nossa direcção, do que um servidor, um simples instrumento. Esse Espírito que somos é livre e perfectível, por conseguinte, responsável. Pode, à vontade, melhorar-se, transformar-se e inclinar-se para o bem.

Confuso em uns, luminoso em outros, um ideal esclarece o caminho. Quanto mais elevado é esse ideal, tanto mais úteis e gloriosas são as obras que inspira. Feliz a alma que, na sua marcha, é sustentada por um nobre entusiasmo: amor da verdade e da Justiça, amor da pátria e da Humanidade! A sua ascensão será rápida, a sua passagem por este mundo deixará traços profundos, sulcos de onde colherá uma messe bendita.

Estabelecida a existência da alma, o problema da imortalidade impõe-se desde logo. É essa uma questão da maior importância, porque a imortalidade é a única sanção que se oferece à lei moral, a única concepção que satisfaz as nossas ideias de Justiça e responde às mais altas esperanças da Humanidade.

Se como entidade espiritual nos mantemos e persistimos através da perpétua renovação das moléculas e transformação do nosso corpo material, a desassociação e o desaparecimento final também não poderiam atingir-nos na nossa existência.

Vimos que coisa alguma se aniquila no Universo. Quando a Química nos ensina que nenhum átomo se perde, quando a Física nos demonstra que nenhuma força se dissipa, como acreditar que esta unidade prodigiosa em que se resumem todas as potências intelectuais, que este eu consciente, em que a vida se desprende das cadeias da fatalidade, possa dissolver-se e aniquilar-se? Não só a lógica e a moral, mas também os próprios factos – como estabeleceremos adiante –, factos de ordem sensível, simultaneamente fisiológicos e psíquicos, tudo concorre, mostrando a persistência do ser consciente depois da morte, para nos provar que além do túmulo a alma se encontra qual ela própria se fez pelos seus actos e trabalhos, no curso da existência terrestre.

Se a morte fosse a última palavra de todas as coisas, se os nossos destinos se limitassem a esta vida fugitiva, teríamos aspirações para um estado melhor, de que nada, na Terra, nada do que é matéria pode dar-nos a ideia? Teríamos essa sede de conhecer, de saber, que coisa alguma pode saciar? Se tudo cessasse no túmulo, por quê essas necessidades, esses sonhos, essas tendências inexplicáveis? Esse grito poderoso do ser humano, que retumba através dos séculos, essas esperanças infinitas, esses impulsos irresistíveis para o progresso e para a luz mais não seriam, pois, que atributos de uma sombra passageira, de uma agregação de moléculas apenas formadas e logo esvaídas? Que será então a vida terrestre, tão curta que, mesmo na sua maior duração, não nos permite atingir os limites da Ciência; tão cheia de impotência, de amargor, de desilusão, que nela nada nos satisfaz inteiramente; onde, depois de acreditar termos conseguido o objecto dos nossos desejos insaciáveis, nos deixamos arrastar para um alvo, sempre cada vez mais longínquo, mais inacessível? A persistência que temos em perseguir, apesar das decepções, um ideal que não é deste mundo, uma felicidade que nos foge sempre, é uma indicação firme de que há mais alguma coisa além da vida presente. A Natureza não poderia dar ao ser aspirações e esperanças irrealizáveis. As necessidades infinitas da alma reclamam forçosamente uma vida sem limites.

/...



LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Segunda – Os Grandes Problemas – A Vida Imortal.
(imagem de ilustração: A fiandeira, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

Sem comentários:

Enviar um comentário