ALUCINAÇÃO E CRIME (III)
A noite avançava lavada e varrida pelas chuvas e ventos, que
desabavam abundantes, e o moço revira-se impaciente no leito, desassossegado. A
avançadas horas, deixou-se abater por torpor dominante e, assaltado por
esquisito pesadelo, sentiu-se amarrado ao leito, experimentando os sentidos
psíquicos exaltados. Foi dominado pela sensação desusada de que, embora caído
pesadamente sobre a cama, podia locomover-se no quarto em brumas espessas,
entre as quais, direcção estóica e hierática, como sempre o fora. Agitando-se penosamente
e desejando evadir-se do desagradável e insólito fenómeno que o avassalava,
compreendeu-se vencido ante aquela que lhe fora mãe espiritual dedicada e cujo
amor ele estava prestes a desrespeitar, por meio de hediondo crime. A entidade
acercou-se dele e, traduzindo inconfundível melancolia na voz, marcada por
acento de doída angustia, inquiriu:
– Que pretendes, Girólamo? Assim retribuis, através do crime
nefário que premeditas, o calor da afeição pura e da dedicação que recebeste
deste lar? Substituíste por ácido o sangue que pulsa nas tuas veias para,
enlouquecido, te comprometeres por penosos séculos de infeliz peregrinação
ressarcidora? Susta o golpe, antes que o golpe te vença, sem que consigas
aniquilar-te a ti mesmo. Ninguém tem o direito de erguer a mão, que se
torna sacrílega quando investe contra a vida de outrem. Mesmo diante do revel,
a nós não nos pertence o direito de destruir, e sim Àquele que o produz, e que
se utiliza de recursos que nos escapam, para equilibrar tudo, no padrão da Sua
Sabedoria. Estaca, e modifica a intenção! Ignoras que a vida não cessa e que
nós outros, os que antecipamos na jornada do túmulo, vivemos?!
Desfigurado pela visita inusitada, o moço, em febre, arguiu,
desafiadoramente:
– Deliro, oh! Deus. Enlouqueço! Ninguém volta da morte. Você
está morta, titia! Deixe-me em paz, antes que me estourem os miolos avassalados
por demónios perversos. Não pode ser você. Deve ser algum
enviado das geenas, para aniquilar-me.
– Não, filho, sou eu mesma, quem retorna. É a voz da minha
alma que te fala hoje, como fizera ontem, despertando as mínimas expressões de
consciência, de dignidade, na tua razão, obnubilada pela ambição ignóbil que te
vence. Morri, mas não fiquei destruída. Não encontrei o céu de repouso ou o
inferno de desdita. Deparei-me com a vida estuante, colocada pela Excelsa
Misericórdia Divina ao alcance dos que Lhe respeitam as leis. A vida aqui é a
razão da vida daí. Ressurgimos do portal de cinzas da sepultura com as asas de
anjos ou os pesados grilhões atros, resultantes das nossas atitudes na Terra,
que nos alçam a regiões de paz inefável ou nos conduzem a abismos de dores
demoradamente remissíveis, até a consciência ferida no seu mais fundo sentir
experimente a necessidade de tudo recomeçar e refazer… Somos os construtores da
nossa ventura como também do nosso infortúnio. Por isso, reprime o passo e
detém-te, antes que seja tarde demais.
– Agora já é tarde demais! O ódio que me arde na alma
destruir-me-á antes que eu possa recuar. Tenho que cumprir esse destino…
– O destino nos pertence. A cada instante estamos a
elaborá-lo, modificando-o ou estabelecendo-o através do que pensamos, do que
dizemos, do que fazemos. Cada um consegue o que cultiva, quanto acontece ao
agricultor que recolhe a resposta da terra através do grão que lhe atira na
cova. Susta o vil pensamento e reflecte. Por que te voltas contra a inocência
de Lúcia e a pureza das crianças? Que te fizeram, revel? O ódio que lhes
devotas são as farpas da inveja e do despautério do teu espírito ingrato.
Volta-te para Deus e escuta a insuperável mensagem de amor do Seu Filho Jesus.
Escolhe: agora, ou será tarde demais, realmente. Esquece a sandice e não serás
esquecido pela Justiça Celeste. Este é o momento da tua redenção: pára! Ignoras
as realidades da vida: do ontem e do amanhã…
– Não posso, não posso. É muito tarde para mim. Tudo está
pronto. Não posso, nem desejo recuar…
– Eu lamento, por ti e por outrem que não está em condições
de perguntar-te e de amar-te. Na minha imensa, incomparável dor, eu te perdoo e
choro por ti e por alguém mais. No entanto, ouve-me, Girólamo, é tempo. Foge,
viaja, sai desta casa, evade-te ainda hoje, buscando renovação noutros sítios e
retorna depois. Serás sempre bem recebido. Terás o de que necessitas, o que
ambicionas, porém, por outros meios. Vai em busca da paz, enquanto luze a
oportunidade, pelo amor de Deus eu te rogo, meu filho!
Tresloucado, espírito em alucinação, o moço gritou:
– Nunca! Agora irei até ao fim, até à minha total desgraça
ou ventura. Não pararei!
– Atingirás, sim, a desgraça. Deus tenha piedade de ti! Eu
te perdoo, filho. Perdoe-nos Senhor a todos nós!
A emissária espiritual levou a nívea mão ao peito levemente
ofegante e lágrimas silenciosas, longas, lhe escorreram pela face venerada. Um
olhar de indizível dor foi endereçado ao moço, conduzido pela teimosa
incoerência de raciocínios e, embora distendendo, logo após, os braços para
recolhê-lo outra vez no seio sofrido, Girólamo, como se libertasse do
magnetismo que o retinha preso, atirou-se na direcção do corpo que se debatia
em desespero no leito e despertou gritando, de olhar esgazeado, suado,
aturdido…
Ergueu-se de um salto, apoiou-se à janela, abriu-a e aspirou
o ar húmido e frio da noite para recobrar a lucidez e coordenar as ideias
assaltadas pela quase demência.
Transcorridos alguns minutos, aumentando a luz no quarto,
entregou-se aos sombrios pensamentos já habituais, enquanto ruminava com a desconcertante visão,
que parecia persegui-lo, embora desperto. Sentia-se assistido pela tia;
conquanto não a pudesse ver naquele instante, percebia-se por ela visitado.
Deixou repentinamente a alcova, desceu ao patamar da parte térrea, abriu a
porta de entrada, procurando, sem saber exatamente o quê, meios de
reencontrar-se. A chuva torrencial, porém, prosseguia. Em derredor da herdade,
os rios transbordavam, as estradas estavam quase intransponíveis…
Em inquisição crescente, aguardou a madrugada e o dia
brumoso raiou. O cansaço venceu-o com a chegada da manhã, quando, então, se
recolheu por algumas horas, em pesado e tormentoso sono.
Levantou-se tarde e não compareceu à refeição matinal.
Amainada a tormenta, deambulou a esmo pela terra encharcada
e ao retornar, com a alma em frangalhos, foi recebido pela vigilante Assunta,
que o aguardava ansiosamente.
Higienizando-se tomou caldo quente e reparador, que a serva
lhe trouxe. Amolentado de carácter, deixou-se arrastar pelas paixões
absorventes e cuidou, com a consócia, do crime em delineamento, sobre todos os
detalhes da tragédia que logo mais seria consumada. Buscou repousar, enquanto
Assunta, que guardara o soporífico que ele lhe entregara, desceu à cozinha.
Naquela noite, Assunta oferecera-se a Lúcia para cuidar do
repasto das crianças, prontificando-se a ajudá-las a se recolherem ao leito,
informando que também lhe traria a refeição, contanto que descansasse das
últimas e longas fadigas.
Embora pressentindo a borrasca que a ameaçava, Lúcia,
exaurida pelo cansaço, aceitou a oferenda da mulher pusilânime e se quedou em
leve recreio com os pequenos órfãos.
Após servir a refeição frugal, Assunta trouxe imensa bandeja
de prata com chávenas e bule de chá fumegante, bolinhos de milho, leite e
açúcar. Antes, porém, adicionara forte quantidade de pó sonífero, que se
misturara ao chá, e, sorridente, serviu às vítimas em potencial, que ignorando
a trama cruel, se deixaram conduzir inermes pela má e injusta adversária
gratuita. Transcorridos poucos minutos, e não podendo vencer a moleza e o sono
que de todos se apossou, recolheram-se aos leitos, vestidos conforme se
encontravam.
A astuta comparsa de Girólamo trocou os trajes das crianças,
que ressonavam sob o peso do produto forte, e as depôs nas respetivas camas.
Lúcia, porém, foi arrastada, como se encontrava, para o lado do cataló da
menina Grazziella, ali ficando adormecida, enquanto a relutância que oferecera
ao invencível mal-estar. Isto feito, Assunta cerrou a porta, deu ciência a
Girólamo de toda a ocorrência e demandou, por sua vez, o próprio dormitório.
A noite, embora ameaçadora, não se encontrava sacudida pelas
chuvas nem pelos ventos da véspera. Uma lua fria e triste espiava entre nuvens
carregadas. O relâmpago aparecia de longe em longe e a voz do trovão chegava
cansada e rouca aos cenários dos próximos e tristes acontecimentos.
Horas avançadas, Girólamo caminhava pela alcova, agitado, em
trajes de dormir.
O punhal afiado brilhava aos reflexos do luar que por vezes
penetrava no quarto, colocado sobre delidada arca de cânfora trabalhada.
/...
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO
PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (3 de 4), 6º fragmento da obra. Texto
mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
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