Apresentação ~ por Hermínio C. Miranda ~
Este livro é um clássico, uma referência, na longa busca de
melhor entendimento do ser humano e das leis que regem a sua interacção com as
pessoas, os fenómenos e eventos que se desdobram à sua volta, mas principalmente
“dentro” daquilo que nos acostumamos a chamar de mente. Em suma, a sua
interacção com a vida, nisso incluído, obviamente, o universo em que vive.
Foi a partir dele, ainda na década de 60 do século passado,
que encetei os estudos que me levariam à elaboração de A Memória e o
Tempo, na segunda metade da década de 70 e publicado no início dos anos 80.
Garimpei o original francês que deu origem a esta tradução,
num sebo, como de tantas outras vezes, em momento feliz, por se tratar de
edição raríssima de 1911.
Logo na primeira leitura, senti considerável impacto. Quanto
mais o lia, relia e aprofundava a meditação sobre o seu conteúdo, mais
impressionado ficava. Agradava-me a abordagem sensata e inteligente do
autor, emoldurada por inesperada humildade intelectual de um cientista
daquele porte.
De Rochas se punha como atento e curioso pesquisador, disposto
a aprender com os factos, em vez de tentar enquadrá-los em rígido contexto
de modelos preconcebidos, atitude comum àquele tempo, como ainda hoje, de parte
dos que não se sentem encorajados e nem preparados para mudar e, por
conseguinte, a progredir galgando patamares mais elevados de conhecimento.
A sua postura era, pois, despreconceituosa e atenta, mas
aberta.
Outra coisa: o ilustrado coronel, engenheiro e conde não
pretendeu considerar as suas reflexões como última palavra a ser religiosamente
acatada pelos que o lessem. Ao contrário, atribuiu ao seu trabalho a modesta
condição de um conjunto de documentos preliminares para estudo da
questão, ao indicar a necessidade de pesquisas mais amplas e profundas que
dessem continuidade à sua tarefa.
O seu livro, contudo, é muito mais que uma dissertação
primária.
De Rochas relata as suas experiências, oferece conclusões
sobre o que testemunhou e levanta aspectos inusitados da mente para os quais
ainda não dispunha de explicações que satisfizessem os seus critérios pessoais,
ainda que apontando em determinada direcção. Em outras palavras, não
dogmatiza.
Ademais, ao empreender os seus estudos entre o final do
século 19 e o início do século 20, não partiu de premissas propostas
pelo espiritismo, cuja doutrina se achava, àquela época, bastante difundida
ali mesmo, na França.
De início, estranhei esse procedimento. Hoje entendo-o como
opção válida e medida de prudência destinada a preservar a isenção
necessária ao trabalho em que se empenhava. Se ele partisse de conceitos
doutrinários espíritas, caracterizando-se como militante do movimento que se
expandia, os seus estudos ficariam certamente expostos à rejeição liminar por
parte das correntes intelectuais da época, dominadas por pensadores de formação
nitidamente materialista ou positivista – como ocorreu e ocorreria a tantos
outros mais tarde.
Em nota de rodapé, ele explica que não cuidava
especificamente de espiritismo, por entender que disso se ocupavam outros
estudiosos. Sem ignorar ou negar os postulados espíritas –
alude com respeito e admiração à obra de Léon Denis, por exemplo –, limitava-se
a aspectos científicos que, directa ou indirectamente acabaram resultando
em valioso suporte à inteligente doutrina dos espíritos.
Realmente, ao estampar na reencarnação a marca
autenticadora da ciência, o seu estudo, mesmo preliminar, como ele o
entendia, legitimava a realidade espiritual, tal como figura nos livros básicos
de Allan Kardec.
Tenho insistido reiteradamente nos meus escritos em que essa
realidade, fundamental ao entendimento da vida, é insusceptível de
esquartejamento. Estamos aqui diante de um bloco inteiriço de conceitos
solidamente colados uns nos outros.
No meu entender, a reencarnação é o cimento que
mantém inseparáveis tais componentes. E que, demonstrada – como está há
muito – a legitimidade da reencarnação, os demais aspectos exigem automática
integração no modelo em que não se admite ignorar, no mínimo, a preexistência e
a sobrevivência do ser à morte corporal.
Por outro lado, de Rochas pôs em evidência relevantes
aspectos colaterais, como a lei de causa e efeito e, portanto, o mecanismo da
evolução do ser rumo à perfeição e, ligado a esse conceito, sublinhando-o de
modo subtil, mas dramático, a verdade subjacente de um claro componente
ético necessário ao funcionamento daquele mecanismo. Deixou, ainda,
informações do mesmo nível de importância acerca das faculdades mediúnicas e,
portanto, do intercâmbio entre “vivos” e “mortos”. Nota-se, no desenrolar das
suas experiências, a presença de entidades desencarnadas, bem como a evidência
de um “espaço” cósmico invisível aos nossos sentidos habituais, “onde”
vivem, sofrem, amam, odeiam, aprendem e se reciclam os seres espirituais
entre uma vida e outra na Terra.
Disto se conclui que, a despeito de não se caracterizar como
texto doutrinário espírita, o seu valioso trabalho oferece firme
suporte aos ensinamentos e conteúdos dos livros básicos da
Codificação.
Além disso, de Rochas deixou significativa contribuição ao estudo
da própria memória, na sua interacção com o tempo. Conceitos como o de
inconsciente – que começavam a emergir na época –, encontram nos seus
trabalhos, tanto quanto na doutrina dos espíritos, encaixes precisos e espaço
próprios, como procurei demonstrar em Alquimia da Mente.
Que eu saiba, foi ele quem primeiro colocou de
maneira transparente a possibilidade de explorações no futuro, tanto quanto no
passado do ser humano. Aparentemente inconclusivas, as suas
“progressões” (mergulho na memória futura) deixaram vestígios importantes de
uma realidade que somente cerca de um século mais tarde seria retomada para
mais profundas explorações, como se pode conferir nos escritos da doutora Helen
Wambach e de outros estudiosos como Chet Snow.
Por tudo isso, os textos de de Rochas – e este livro não é o
único a solicitar a nossa atenção – merecem atenção, respeito e
admiração.
Parabéns à Lachâtre por resgatar mais este importante
depoimento científico de um injusto e demorado esquecimento.
/...
Albert de Rochas, As
Vidas Sucessivas – Apresentação, por Hermínio C. Miranda | Outubro de 2002, 4º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em
acrílico de Costa Brites)
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