A filosofia de Victor Hugo,
assente na preexistência das almas, leva-nos a pensar em Platão, que
percebeu na antiguidade, com profunda percepção espiritual, esse mundo novo que
aflora na consciência do Ser. Esse mundo interior que se apresenta
imperativamente, sem respeitar o conhecimento clássico do homem propõe à
filosofia uma das mais intrincadas perguntas: Existe no "tempo
actual" do Ser "outro tempo" existencial?
Todo o desenvolvimento da filosofia ocidental se produziu
através de um "tempo único" do Ser, ou seja, de um tempo que vai do
nascimento à morte. Aceitou-se que o homem é uma personalidade, mas vazia por
dentro e, esta suposição anulou o que o Ser representa como entidade profunda,
fazendo dela uma peça compacta e insensível. Esta concepção mecânica do homem
causou até uma negação do que o subconsciente representa como abertura do Ser
para o mundo exterior. Pois o reconhecimento do subconsciente significou sempre
para a nova psicologia a prova de uma dupla natureza do Ser, de um mundo
desconhecido cujas raízes se encontram numa provável natureza pré-ôntica da
existência.
As reminiscências experimentadas por Platão, ou
pelo homem em todos os tempos, são factos que evidenciam as diversas
capas psíquicas que conformam o seu mundo interior. Ter, pois,
reminiscências é como se o Ser estivesse situado num poço de fundo
incomensurável. As emoções, sensações e ideias espontâneas que se registam
no ar constituem aflorações misteriosas que, para alcançar uma explicação
possível, obrigam a pensar em "reservas" subconscientes adquiridas
não se sabe por que meios.
O chamado "mistério do homem" tem a sua principal
base nesses estados psíquicos inexplicáveis. De facto, o mistério do
homem surge do homem mesmo e não das suas enigmáticas origens
biológicas. O mistério é uma presença que se opõe ao homem considerado
como pura natureza, o que indicaria que é "algo" ainda indefinido e
que se revela contra toda a "naturalidade" que queiram
assinalar. No Ser existe um inconsciente misterioso, que paira sobre o
consciente racional com o fim de libertá-lo das trevas do não ser. Deste
modo, a existência pura se rebela contra a existência impura, ou seja, contra a
que se compraz em soltar-se nos abismos do nada.
O conceito de um homem-máquina é um obstáculo para
penetrar na natureza supranormal do Ser. Os fenómenos psíquicos que
através do Homem se registam estão indicando que a inteligência normal não
é toda a inteligência, senão que possui outras dimensões ou substratos que,
como misteriosos relâmpagos se apresentam à "razão actual" do Ser
para ampliá-la ao aparecer inesperadamente. A intuição, a inspiração, os
estados místicos, são factos que não poderiam produzir-se se o homem
fosse uma máquina ou uma só peça material. A materialidade do
homem se opõe a toda a supranormalidade do Ser. Um homem-corpo
só vive de acordo com os seus estados fisiológicos; nele não se
produziriam fenómenos psíquicos de nenhuma ordem. O psiquismo,
pois, não é de ordem nervosa; o psíquico se origina nas profundidades
desconhecidas da personalidade, das quais Platão extraiu
as suas célebres reminiscências ontológicas.
As reminiscências platónicas, tão célebres já no campo da
filosofia, acentuam-se nos tempos modernos, o que daria uma ideia acerca de uma
nova evolução da sensibilidade humana, da qual Victor Hugo foi
genial expoente. Ou seja, o homem tem a transbordar os seus cinco sentidos
para afirmar-se a si mesmo outra forma sensível com que captar o seu
mundo interior e circundante. Pois bem, isso denotaria que o Ser
verdadeiro está acima do Ser físico e que existe nele um ente
extra-sensorial cuja existência transborda as limitações do tempo presente.
A filosofia do Ser se veria obrigada a reconhecer no
homem uma essência que se vincula com uma natureza imaterial, que
estabeleceria uma relação com o tempo passado, um tempo presente e um tempo
futuro, ou seja, três tipos de "tempo" que gravitariam dinamicamente
nas profundidades do Ser.
Destes três tempos emergiram os imperativos espirituais que
fizeram ver a Platão o verdadeiro mundo da personalidade humana. Esta
concepção do tempo nos levaria a reconhecer um tempo físico e um tempo metafísico. O
Ser, desde a sua verdadeira natureza essencial, resultaria um constante devir
efectuado através de um tempo mortal e outro imortal, o que relacionaria um
processo dialéctico infinito. O homem pensa, mas supõe que é um Ser limitado ao
seu tempo individual. Ignora que nele existe um tempo espiritual que
o faz independente de acidentes aniquiladores. O Ser sente como que
uma distância, algo que regressa de outro Ser que já foi e nesta circunstância
surge com ele "outra personalidade" que trata de circunstanciar-se
com o seu presente, criando no seu mundo moral estados harmónicos ou
contraditórios. O Ser se desdobra ao aparecer sob a influência de um ente
que regressa de alguma parte, o que determina nele essa instabilidade moral tão
frequente no mundo moderno.
Victor Hugo captou o seu Ser passado mediante a sua
genial criação poética, mas o que o fez compreender melhor a sua
natureza imortal e palingenésica foi o fenómeno mediúnico, cuja origem noumenal surge desse mesmo mundo onde subjazem as
reminiscências espirituais percebidas por Platão.
/…
Humberto Mariotti, Victor Hugo Espírita, Actualidade
Ontológica das Reminiscências Platónicas, 11º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca,
pintura de Anne-Louis
GIRODET-TRIOSON)
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