Mas Allan Kardec não fala “por ouvir dizer”, ele nunca foi
um homem levado pela imaginação: foi um observador rigoroso. E é através da
mais pura dialéctica que nos explica a razão dessas vagas aspirações.
“Se a questão do homem espiritual permaneceu até aos nossos
dias em forma de teoria, é porque nos faltaram os meios directos de observação,
para constatar o estado do mundo material e, o campo ficou aberto às concepções
do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e
não pôde aplicar o método experimental, errou de sistema em sistema, no tocante
ao mecanismo do Universo e à formação da Terra. Deu-se na ordem moral o mesmo
que na ordem física; para determinar as ideias faltou-nos o elemento essencial:
o conhecimento das leis do princípio espiritual. Esse conhecimento estava
reservado à nossa época, como o das leis da matéria foi obra dos dois últimos
séculos. Até ao presente, o estudo do princípio espiritual, compreendido na
Metafísica, tem sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo é
inteiramente experimental.”
Chegados a este ponto, defrontamo-nos com o aspecto mais
crítico da hora presente. De um lado, temos em marcha, com indiscutível
eficácia, a aplicação do método dialéctico à história, à política, à sociologia
etc., como a mais alta conquista do espírito no terreno prático e
objectivo. Do outro, o abuso, que perdura, do método empírico, nas
questões espirituais, com as consequentes explorações e deformações da
realidade. E no meio, lutando entre as duas correntes, ambas poderosas, o
Espiritismo, que não pode trair a realidade espiritual, para endossar a
aplicação materialista da dialéctica e, não pode trair a sua própria natureza
dialéctica, para apoiar o empirismo da prática espiritual. O resultado,
infelizmente, é o que vemos: ele também, o Espiritismo, deformando-se,
no aspecto sectário e místico de uma nova religião, ou na
estrutura fria e materialista da simples observação metapsíquica.
Todo o esforço do homem moderno tem de convergir
para a superação dessa tremenda crise do conhecimento. E a superação
somente se tornará possível com a compreensão dos verdadeiros princípios do
Espiritismo como doutrina dialéctica, por isso mesmo capaz de aplicar à
história, à política, à sociologia, à economia, à arte, os seus métodos de
análise, de observação, de pesquisa, sem se perder na mística de
confessionário, nem se confundir com o tumulto dos comícios subversivos. Além
do misoneísmo das religiões, do reformismo do socialismo político-liberal e da
violência do materialismo-dialéctico, o Espiritismo indicará ao homem o
caminho seguro das transformações substanciais da vida social, ou perderá a sua
razão de ser. Como esta última hipótese não nos parece possível, o
mais certo é que a história nos esteja empurrando, segundo observa Humberto
Mariotti, apesar da incapacidade geral e desoladora dos
espíritas de hoje, na direcção do Espiritismo Dialéctico,
verdadeira síntese do conhecimento, com que nos acena Allan Kardec.
Humberto Mariotti afirma que “a realidade visível” da
acção espírita no mundo se traduz no cultural e, “mais do que em qualquer outra
parte, no bibliográfico”, faltando-lhe, entretanto, entrosar-se “no processo
histórico da humanidade”. Esse entrosamento faz-se pela penetração nas massas
através do seu aspecto “ingénuo”, de seita religiosa. Mas, se não
houver, neste momento, a acção da alavanca da filosofia espírita, salvando
o Espiritismo da “ingenuidade popular” e transformando-o, já não em simples
crença, mas em conhecimento, o processo natural desse entrosamento pode ser
desvirtuado, pelo trabalho de sapa das forças contrárias.
Aos espíritas, portanto, cabe o dever indeclinável de lutar
para que esse entrosamento se realize. A bibliografia espírita – “quiçá
insuperável pela de qualquer outro movimento filosófico” – deve descer
das estantes e penetrar nas massas, não para se submeter à “ingenuidade”
destas, mas para orientá-las no sentido da sua libertação moral,
espiritual, intelectual e social. Para tanto, é necessário um
novo trabalho de elaboração, de aglutinação, de sistematização do conhecimento
espírita, na forma de compêndios culturais e de manuais populares.
O aspecto religioso ou “ingénuo” do Espiritismo salvou-o da
indiferença e da hostilidade conjugada de todas as forças dominantes dos
séculos XIX e XX, escondendo-o no coração do povo, onde ele
viveu e progrediu em silêncio e, permitindo, ao mesmo tempo, o trabalho
cultural dos intelectuais espíritas. Temos hoje uma população espírita no
mundo e, temos uma cultura espírita. Mas não temos a sociedade nem a
civilização espíritas, como observa Mariotti e, nem mesmo a necessária
e prévia ligação entre as massas espíritas e a cultura espírita, para a
criação daquelas. Estamos, porém, no caminho dialéctico do desenvolvimento
de uma nova civilização e, se compreendermos isso, lutando para alcançar o
futuro, chegaremos lá.
Humberto Mariotti fez uma concessão de boa-vontade ao
“pensar naturalista” quando deu ao seu livro o título de Dialéctica e
Metapsíquica. Porque o título verdadeiro do volume seria o de Espiritismo
e Dialéctica. Evitou assim assustar a lebre na beira
da estrada. Não se iludam, porém, os espíritas, mormente os espíritas
brasileiros, tão afeitos a deixar de lado o que foge ao aspecto religioso da
doutrina. As páginas de Mariotti não se referem apenas a uma
controvérsia filosófica entre as duas doutrinas que lhe formam o título
eventual. Elas são, pelo contrário, um brado de alerta e
um convite sério à meditação e ao estudo. Principalmente ao estudo da
natureza dialéctica do Espiritismo e das possibilidades imediatas da sua
aplicação ao mundo – para transformá-lo.
/…
José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Da
especulação à experimentação, 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O Apóstolo de Verdade, José
Herculano Pires)
Sem comentários:
Enviar um comentário