ALUCINAÇÃO E CRIME (IV)
Horas avançadas, Girólamo caminhava pela alcova, agitado, em
trajes de dormir.
O punhal afiado brilhava aos reflexos do luar que por vezes
penetrava no quarto, colocado sobre delicada arca de cânfora trabalhada.
Pensava, em tumulto íntimo, na agressão que deveria
perpetrar e que culminaria no homicídio múltiplo.
Repentinamente, percebeu-se recordando o pai adoptivo,
recém-falecido e surda revolta lhe assomou à mente. Como se se sentisse
realizado em poder vingar-se da antipatia natural que ambos nutriam
reciprocamente, monologava: “Esta é a hora do meu desforço. Estás morto,
miserável! Tudo me pertencerá, logo mais. E agora, Senhor di Bicci di M.?”
O pensamento em desalinho martelava, repetia, disparava
dardos de ódio que buscavam o alvo…
Conquanto a enfermidade o vitimasse com rapidez, o duque sabia
que se acercava da porta da Imortalidade. No íntimo, acalentava, quase
desejoso, poder dar o grande passo, que o colocaria ao lado da esposa
idolatrada. Homem lutador, não cultivara, todavia, os sentimentos da fé,
deixando o problema da religião ao sacerdote que mantinha no palácio para
cuidar das responsabilidades da alma, como se outrem pudesse responder pelos
deveres espirituais que a cada um nós cabe, no cômputo da existência
planetária. Ignorando totalmente as realidades espirituais, sentia a desvitalização
orgânica e a paralisia cerebral, compreendendo ser a aproximação da morte,
vencido de angústia pelo destino dos filhos e de Lúcia, que ficariam a sós, num
mundo de ódios e vinganças qual aquele, apesar dos cuidados que tivera na
distribuição dos bens.
Mesmo após estarem paradas as carnes pela morte e ser o seu
espírito sacudido por diversos delíquios, experimentava sensações estranhas. A
morte não lhe dominou o raciocínio. Seria aquilo morrer?! – pensou. Somente,
então, recordou-se de que nunca dera atenção a tão importante questão da vida.
Acompanhou, sem compreender, o velório, as exéquias, os prantos e a cerimónia
final, com os sentidos atordoados, desconexos, observando o que se passava, sem
inteirar-se totalmente da realidade. Sim – pensava –, deveria ter morrido, pois
que não conseguia comunicar-se com as pessoas presentes, e todos aqueles
apetrechos lutuosos traduziam o desaparecimento do senhor da herdade, como era
tradição. Ele, porém, continuava a viver, experimentando as dominadoras sensações
de sempre. Que era, porém, a morte? Não podia examinar o palpitante assunto
naquele instante. A dor visitava-o, a fraqueza que o imobilizara no corpo
continuava a sua acção nos departamentos diversos do seu ser, tonturas
constantes e frio cortante venciam-no lentamente. Desejou andar, traduzir as
aflições do momento, agasalhar-se, e não pôde. Estava ligado aos despojos
orgânicos que, sem saber precisar como, conduziram-no ao esquife e ao
mausoléu...
Encontrava-se em agonias longas, com dificuldade respiratória,
quando pareceu escutar soturna voz que o chamava com veemência, exercendo,
sobre a sua mente, desconhecido poder. Padecimentos mais fortes assaltaram-no,
qual se uma chibata habilmente manipulada o açoitasse. Incapaz de compreender
quanto se passava, foi subitamente arrastado da capela mortuária, em que jazia
o corpo, por estranho sortilégio, aos aposentos de Girólamo e pôde, então,
identificar o sobrinho, cujos dentes rilhados pronunciavam-lhe o
nome, blasfemando, irado, venal…
A pobre entidade, ainda esmagada pelas sensações e emoções
do túmulo, em recomeço difícil, recordou a surda antipatia que sempre lhe
inspirara o moço e, sentindo-se alvo do ódio do ingrato, começou a revidar,
desavisado, esquecido da situação nova, quando observou que o jovem se acercou
da arca, sacou do punhal reluzente e avançou pelo longo corredor em trevas, na
direcção da ampla alcova das crianças e de Lúcia.
Sentindo-se aniquilar pelo horror que dele se apossava, o
Espírito perturbado em si mesmo seguiu-o e, em superlativa amência, acompanhou
o trágico desfecho da insanidade.
Girólamo, tomando um travesseiro de plumas leves, acercou-se
do leito de Grazziella e asfixiou-a impiedoso, enquanto a menina, adormecida e
impossibilitada de respirar, debatia-se sem forças até à parada total dos
movimentos, qual ave fraca e inocente nas garras odientas do abatedor. Concluía
a primeira etapa, o homicida repetiu a experiência com as demais crianças, após
o que se acercou de Lúcia, dominado por infeliz e desconcertante vindita,
apunhalando-a repetidas vezes, enquanto gritava, totalmente louco…
A jovem nem sequer despertou do torpor que a venceu. Emitiu
surdos ruídos e desfaleceu, moribunda, e logo morta, atirada ao solo pelo
implacável tirano.
Aos gritos do moço, os servos acorreram, trazendo
archotes, e depararam com a cena funesta, indescritível. O moço, banhado pelo
sangue da vítima, apontava-a morta, enquanto bradava:
– Fui obrigado a matá-la. Surpreendi a infame asfixiando as
crianças, meus primos, com o travesseiro, naturalmente para ficar herdeira
única. Não resisti, e apunhalei-a quanto pude!
“Nada há mais que fazer. Está morta; estão todos mortos! A
assassina, serpe venenosa que se nutriu do leite que a vitalizou, terminou por
picar o seio no qual se alimentava. Vingança, vingança!”
Ante os brados dos servidores, desesperados,
estupidificados, o palácio se transformou imediatamente num pandemónio
terrível.
Girólamo despachou servos na direcção de Siena, para que as
autoridades fossem notificadas da tragédia inominável e viessem tomar conta dos
acontecimentos chocastes.
A manhã surgiu na densa neblina, enquanto o palácio do
Senhor di Bicci di M. enlutava-se outra vez, no curso da mesma semana, agora
sob o estigma de inconcebível catástrofe.
O Espírito do duque, face ao infortúnio,
desfaleceu ali mesmo, no recinto da desgraça, vencido por inexplicável dor.
Simultaneamente, a sombra augusta da duquesa,
em prece, acompanhava, comovida, o desenrolar do drama, buscando receber nos
braços os espíritos colhidos ao império da Lei de Causa e Efeito. Acolitada por
Emissários do amor, oferecia assistência a Lúcia e aos filhos, que chegavam à
vida nova em circunstâncias trágicas, porém libertados dos cruéis liames com a
retaguarda. Infelizmente, e porque se vinculasse pelo revide mórbido a
Girólamo, não pôde ser amparado com a mesma segurança o duque,
dolorosamente esmagado pelas agonias que o desequilibravam.
/…
VICTOR HUGO, Espírito "PÁRIAS EM REDENÇÃO" – LIVRO
PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (4 de 4), 7º fragmento da obra. Texto
mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’Âme de la
Florêt_1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
Sem comentários:
Enviar um comentário