Desde que o confrade Hernani Guimarães Andrade publicou o seu livro, A
Teoria Corpuscular do Espírito, vimos sendo consultados por pessoas que não
sabem como encarar a obra. Num texto que aparece nas orelhas do volume, o
Professor Victor Magaldi refere-se à teoria, como sendo uma “verdadeira
revolução no Neo-Espiritismo”. No primeiro capítulo, o autor declara que o
Espiritismo precisa progredir, superar os velhos conceitos mecanicistas do
século passado e, que “os adeptos da doutrina devem ter a coragem de voltar
atrás, se preciso for; reformar conceitos velhos; sacudir o pó da suposição
para descobrir a realidade soterrada; abrir mão do dogmatismo comodista e
ignorante, que se aferra à forma e esquece o espírito”.
Todas essas coisas preocupam os adeptos, não comodistas
nem ignorantes, mas ciosos da pureza da doutrina. Quer o confrade
Guimarães Andrade reformar o Espiritismo? A que se refere o confrade Victor
Magaldi, quando proclama a existência de uma revolução do “Neo-Espiritismo”?
Isso existe? Existe um Neo-Espiritismo e, no seu seio já se processa uma
revolução? Por outro lado, a terminologia doutrinária estará mesmo
superada, será arcaica, necessitará de revisão? Estaremos em condições de
enfrentar essa tarefa? Disporá o autor do livro de meios e recursos para
sacudir a poeira dos conceitos kardecistas e revelar uma possível realidade
oculta?
Confessamos que era nosso intento, desde a publicação
de A Teoria Corpuscular do Espírito, escrever sobre essa obra.
Mas, encontrando esses mesmos problemas referidos pelos leitores, resolvemos
estudar o livro com tempo e vagar, não aventurando a respeito nenhuma opinião.
Além disso, o autor anuncia outros volumes, que completarão a sua teoria.
Diante porém, da insistência dos leitores e amigos e, uma vez que já aparece
até mesmo a ideia, em certos núcleos, de tratar do problema da “Nova
nomenclatura espírita” (por analogia certamente com a “Nova nomenclatura
gramatical”), resolvemos tratar do assunto.
A nossa atitude é a mesma dos leitores. Estamos com um pé
atrás. Conhecemos o confrade Guimarães Andrade, sabemos ser uma pessoa honesta
e sincera, mas desconfiamos dos rumos da sua imaginação, no campo
doutrinário. Primeiramente, não vemos razões para o ataque à terminologia
kardecista. Ela é tão válida hoje como há cem anos. A própria negação do
“conceito mecanicista de éter” precisa ser examinada. E isso por
dois motivos: porque o debate sobre o problema do éter espacial ainda não
está encerrado, na própria Física; e porque o éter do Espiritismo não
corresponde exactamente, mas apenas analogamente, ao da Física. O mesmo
acontece com os conceitos de “fluido” e de “vibração”. Allan Kardec não
formulou uma teoria científica, da mesma maneira por que Jesus não criou um
sistema filosófico. A revisão dos conceitos doutrinários, na base das
falíveis teorias científicas modernas, equivale, em nosso ver, a uma revisão
dos conceitos evangélicos, na base dos sistemas filosóficos instáveis do nosso
tempo.
Em segundo lugar, a tentativa de criar uma teoria
científico-espírita, como quer o autor, parece-nos prematura. As suas
dificuldades começam ao procurarmos situar o Espiritismo no quadro das
ciências. Allan Kardec acentuou que o Espiritismo deve evoluir
com as ciências, mas esclareceu também que a natureza científica do
Espiritismo não é a mesma das ciências da matéria. Foi mais longe,
ao negar às ciências qualquer competência para se pronunciar sobre as questões
espíritas e, afirmou taxativamente que: “O Espiritismo não é da alçada da
ciência”. (Cap. VII da “Introdução ao Estudo da Doutrina
Espírita”). Quando ele trata, pois, da Ciência Espírita, não o faz em termos de
ciência material, mas esclarece mesmo que o objecto e os métodos de
ambas são diferentes.
Ora, o que o confrade Guimarães Andrade pretende fazer, é
exactamente o que Allan Kardec condenou. Ou seja, para usarmos as
expressões textuais do codificador: “sujeitar (o Espiritismo) aos processos
ordinários de investigação, estabelecendo analogias que não existem”. O
mesmo aconteceu com a Psicologia, quando Wundt, Fechner, Binet e
outros quiseram reduzi-la a processos de mensuração física. O mesmo
com a Sociologia, inicialmente chamada “Física Social”, mais tarde ligada à
Biologia e, hoje liberta dessas inadequações conceptuais e metodológicas. O
Espiritismo não pode sujeitar-se a esses processos de moldagem. No próprio
campo da Filosofia, os Espíritos e o próprio Kardec fizeram questão de
esclarecer que ele devia desenvolver-se “livre dos prejuízos do espírito de
sistema”.
Ainda agora, ao esclarecer a utilização de conceitos da
ciência moderna, no seu livro Mecanismos da Mediunidade, André Luiz adverte: “As notas dessa natureza, neste
volume, tomadas naturalmente ao acervo de informações e deduções dos estudiosos
da actualidade terrestre, valem aqui por vestimenta necessária, mas
transitória, da explicação espírita da mediunidade, que é, no presente
livro, o corpo de ideias a ser apresentado”. Aplicando essa explicação ao
caso de O Livro dos Espíritos, compreenderemos que o que nos
interessa no seu texto não é a vestimenta, mas a substância, não é a
terminologia, mas “o corpo de ideias”.
A tentativa do confrade Guimarães Andrade deve ser encarada,
pois, com o cuidado que Allan Kardec recomendava sempre, para todas as
inovações. Procuremos conter os entusiastas, que já pretendem erigir o
autor em reformador doutrinário. O próprio Ernesto Bozzano chegou a propor uma teoria do
Éter-Deus, para explicar de maneira física o Ser Supremo, o que era evidentemente
absurdo e não teve aceitação. Fazer avançar o Espiritismo não é
subjugá-lo a conceitos da ciência material, mas dar-lhe maior desenvolvimento
espiritual na nossa compreensão. E trabalhar assim, espiritualmente,
para apressar aquele momento, previsto por Allan Kardec,
em que “os sábios se renderão à evidência”. Serão eles, então, os que
terão de modificar os seus conceitos, sacudindo a poeira das suas hipóteses
instáveis.
/…
José Herculano Pires, A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria
Corpuscular do Espírito. Actualização do Espiritismo, 11º fragmento
desta obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras
de Grãos, pintura a óleo por Jean-François
Millet)
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