Páscoa da ressurreição
O pavor maior da morte provém da ideia de solidão e escuridão. Mas os teólogos acharam que isso era pouco e oficializaram as lendas remotas do Inferno, do Purgatório e do Limbo, a que não escapam nem mesmo as crianças mortas sem baptismo. De tal maneira se aumentaram os motivos do pavor da morte, que ela chegou a significar desonra e vergonha. Para os judeus, a morte se tornou a própria impureza. Os túmulos e os cemitérios foram considerados impuros. Os cenotáfios, túmulos vazios construídos em honra aos profetas, mostram bem essa aversão à morte. Como podiam eles aceitar um Messias que vinha da Galileia dos Gentios, onde o Palácio de Herodes fora construído sobre terra de cemitérios? Como aceitar esse Messias que morreu na cruz, vencido pelos romanos impuros, que arrancara Lázaro da sepultura (já cheirando mal) e o fizera seu companheiro nas lides sagradas do messianismo?
Ainda nos nossos dias o respeito aos mortos está envolvido
numa forma velada de repulsa e depreciação. A morte transforma o homem em
cadáver, risca-o do número dos vivos, tira-lhe todas as possibilidades de acção
e, portanto, de significação no meio humano. “O morto está morto”, dizem os
materialistas e o populacho ignaro. O Papa Paulo VI declarou, e
a imprensa mundial divulgou por toda a parte, que “existe uma vida após a
morte, mas não sabemos como ela é”. Isso quer dizer que a própria Igreja nada
sabe da morte, a não ser que morremos. A ideia cristã da morte, sustentada e
defendida pelas diversas igrejas, é simplesmente aterradora. Os pecadores ao morrer
se vêem diante de um Tribunal Divino que os condena a suplícios eternos. Os
santos e os beatos não escapam às condenações, não obstante a misericórdia de
Deus, que não sabemos como pode ser misericordioso com tanta impiedade. As
próprias crianças inocentes, que não tiveram tempo de pecar, vão para o Limbo
misterioso e sombrio pela simples falta do baptismo. Os criminosos broncos,
ignorantes e todo o grosso da espécie humana são atirados nas garras de
Satanás, um anjo decaído que só não encarna o mal porque não deve ter carne. Mas
com dinheiro e a adoração interesseira a Deus essas almas podem ser perdoadas,
de maneira que só para os pobres não há salvação, mas para os ricos o Céu se
abre ao impacto dos tedéuns sumptuosos, das missas cantadas e
das gordas contribuições para a Igreja. Nunca se viu soberano mais venal e
tribunal mais injusto. A depreciação da morte gerou o desabrido comércio dos
traficantes do perdão e da indulgência divina. O vil dinheiro das roubalheiras
e injustiças terrenas consegue furar a Justiça Divina, de maneira que o
desprestígio dos mortos chega ao máximo da vergonha. A felicidade eterna
depende do recheio dos cofres deixados na Terra.
Diante de tudo isso, o conceito da morte se azinhavra nas
mãos dos cambistas da simonia, esvazia-se na descrença total, transforma-se no
conceito do nada, que Kant definiu
como conceito vazio. O morto apodrece enterrado, perdeu a riqueza da vida,
virou pasto de vermes e a sua misteriosa salvação depende das condições
financeiras da família terrena. O morto é um fraco, um falido e um condenado,
inteiramente dependente dos vivos na Terra.
O povo não compreende bem todo esse quadro de misérias em
que os teólogos envolveram a morte, mas sente o nojo e o medo da morte, introjetados
em sua consciência pela farsa dos poderes divinos que o ameaçam desde o berço
ao túmulo e ao além-túmulo. Não é de admirar que os pais e as mães, os parentes
dos mortos se apavorem e se desesperem diante do facto irremissível da morte.
Jesus ensinou e provou que
a morte se resolve na Páscoa da ressurreição, que ninguém morre,
que todos temos o corpo espiritual e vivemos no além-túmulo como vivos mais
vivos que os encarnados. Paulo de Tarso proclamou
que o corpo espiritual é o corpo da ressurreição (cap. 12 da primeira Epístola
aos Coríntios), mas a permanente imagem de Cristo crucificado, das procissões
absurdas do Senhor Morto, – heresia clamorosa –, as cerimónias da Via-Sacra e
as imagens aterradoras do Inferno Cristão – mais impiedoso e brutal do que os
Infernos do Paganismo – marcados a fogo na mente humana através de dois
milénios, esmagam e envilecem a alma supersticiosa dos homens.
Não é de admirar que os teólogos actuais, divididos em
várias correntes de sofistas cristãos moderníssimos, estejam hoje proclamando,
com uma alegria leviana de debilóides, a Morte de Deus e o estabelecimento do
Cristianismo Ateu. Para esses novos teólogos, o Cadáver de Deus foi enterrado
pelo Louco de Nietsche,
criação fantástica e infeliz do pobre filósofo que morreu louco.
O clero cristão, tanto católico como protestante, tanto do
Ocidente como do Oriente, perdeu a capacidade de socorrer e consolar os que se
desesperam com a morte de pessoas amadas. Os seus instrumentos de consolação
perderam a eficiência antiga, que se apoiava no obscurantismo das populações
permanentemente ameaçadas pela Ira de Deus. A Igreja, Mãe da Sabedoria Infusa,
recebida do Céu como graça especial concedida aos eleitos, confessa que nada
sabe sobre a vida espiritual e só aconselha aos fiéis as práticas antiquadas
das rezas e cerimónias pagas, para que os mortos queridos sejam beneficiados no
outro Mundo ao tinir das moedas terrenas. O Messias espantou a chicote os
animais do Templo que deviam ser comprados para o sacrifício redentor no altar
simoníaco e derrubou as mesas dos cambistas, que trocavam no Templo as moedas
gregas e romanas pelas moedas sagradas dos magnatas dispenseiros da
misericórdia divina. O episódio esclarecedor foi suplantado na mente popular
pelo impacto esmagador das ameaças celestiais contra os descrentes, esses
rebeldes demoníacos. Em vão Cristo ensinou que as moedas
de César só valem na Terra. Há dois mil anos essas moedas impuras vêm sendo
aceitas por Deus para o resgate das almas condenadas. Quem pode, em sã
consciência, acreditar hoje em dia numa Justiça Divina que funciona com o mesmo
combustível da Justiça Terrena? Os sacerdotes foram treinados a falar com voz
empostada, melíflua e fingida, para, à semelhança da voz das antigas
sereias, embalar o povo nas ilusões de um amor venal e sem piedade. Voz doce e
gestos compassivos não conseguem mais, em nossos dias, do que irritar as
pessoas de bom senso. O Cristo Consolador foi traído pelos
agentes da misericórdia divina que desceu ao banco das pechinchas, no comércio
impuro das consolações fáceis. Os homens preferem jogar no lixo as suas almas,
que Deus e o Diabo disputam não se sabe porquê.
/…
José Herculano Pires – Educação para a Morte,
Educação para a Morte 1, 2º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O caranguejo, pintura de William-Adolphe
Bouguereau)
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