Milagres e a ciência moderna (II)
Para ilustrar o quão gradualmente o natural envolve o
miraculoso e o quão facilmente as nossas crenças são determinadas por ideias
preconcebidas, mais que por evidências, considerem-se alguns casos.
Há 40 anos apareceu no London Medical Times o relato de uma
experiência sobre quatro russos que foram condenados à morte. Fizeram-nos
dormir, sem que o soubessem, num leito onde pessoas morreram de cólera
epidémica, mas nenhum deles ficou doente. Depois disso, foi-lhes dito que eles iam
dormir em camas de pacientes de cólera, mas foram colocados em camas
perfeitamente limpas e saudáveis. Então, três deles ficaram infectados com a
doença na sua forma maligna e morreram num intervalo de quadro horas.
Cerca de 200 anos atrás, Valentine Greatrak curou
pessoas de diversas doenças tocando-as com as suas mãos. O reverendo doutor R.
Dean, num relato de suas observações pessoais, informa:
Estive três semanas junto com ele no meu Lord Conway (i) e o vi colocar as suas mãos sobre (estimo)
mil pessoas: e realmente há algo nele mais que o comum, mas estou convencido de
que não era miraculoso. Eu vi a surdez ser curada pelo seu toque, feridas
dolorosas de muitos meses cicatrizarem-se em alguns dias, obstruções, e
constipações serem removidas, e nódulos cancerosos no peito serem dissolvidos.
Esmagadoras são as evidências destas curas, detalhadas por
testemunhas oculares de grande carácter e capacidade, mas não podem ser
apresentadas aqui.
Destes dois casos, o primeiro será geralmente acreditado e o
segundo, desacreditado. O primeiro é supostamente um efeito natural da
"imaginação", o segundo é geralmente tomado como sendo de natureza
milagrosa. Para se atribuir qualquer efeito físico atribuído à imaginação,
basta apresentar os factos e ocultar a nossa completa ignorância das causas ou
das leis que os governam. E, para sustentar que é possível não haver nenhum
poder curativo no contacto repetido com um ser humano constituído de forma
peculiar -, quando a analogia dos factos admitidos do mesmerismo prova
quão poderosos e curiosos são os efeitos de um ser humano sobre o outro -,
parece haver um grande grau de presunção na nossa actual e quase
completa ignorância da relação da mente com o corpo.
Mas contrapomos que é apenas a classe menos importante dos
milagres que pode ser possivelmente explicada desta maneira. Em muitos casos
diz-se ter sido a matéria morta dotada com força e movimento, ou ter sido
subitamente aumentada imensamente em peso e volume; diz-se que coisas não
terrestres apareceram na terra e que o progresso ordenado dos grandes fenómenos
da natureza foi subitamente interrompido. Uma característica da maioria dos
milagres desta classe reputada é que eles pareceram implicar a acção de
outro poder e inteligência que os dos indivíduos aos quais tal poder miraculoso
é vulgarmente atribuído. Um dos mais comuns e bem atestados destes
fenómenos é o movimento de vários corpos sólidos na presença de muitas
testemunhas, sem qualquer causa descoberta. Ao lerem-se os relatos destas
ocorrências por testemunhas oculares, um pequeno detalhe pontual frequentemente
ocorre: um objecto parece ser atirado ou cair subitamente, ou ainda cai
suavemente e sem barulho. Este ponto curioso é encontrado em antigos
julgamentos de feitiçaria, assim como nos mais modernos fenómenos de casas
assombradas ou do espiritualismo, e é notavelmente sugestivo que os
objectos estão sendo carregados por um agente invisível. Para submeter tais
coisas inteligíveis ou possíveis para o ponto de vista da ciência moderna, nós
precisamos, contudo, poder valer-nos da suposição de que seres inteligentes
possam existir, serem capazes de agir na matéria, embora eles mesmos sejam
directamente incognoscíveis pelos nossos sentidos.
Que seres inteligentes possam existir à nossa volta,
imperceptíveis, durante toda a nossa vida, e ainda serem capazes de fazer
conhecida a sua presença actuando na matéria sob certas condições, será
inconcebível para alguns e posto em dúvida por muitos mais. Mas nos aventuramos
a dizer que nenhuma especulação da ciência moderna irá condenar a sua
possibilidade. A dificuldade que esta concepção apresenta será de natureza
completamente diversa daquela que ofusca a nossa crença na possibilidade dos
milagres, quando definidos como uma contravenção daquelas grandes leis naturais
que a moderna ciência tende a declarar imutáveis e absolutas. (ii) A existência de seres sencientes
incognoscíveis pelos nossos sentidos não irá violar estas leis mais que a
descoberta da natureza real dos Protozoa, aqueles
organismos gelatinosos e sem estrutura que exibem muitos dos fenómenos
superiores da vida animal sem qualquer diferenciação de partes ou
especialização de órgãos que as funções necessárias a vida animal parecem
requerer. A existência de tais intelectos que vão além do humano, se
provada, iria apenas adicionar uma outra e mais notável ilustração de quão
pequena é a porção do grande cosmos que os nossos sentidos nos permitem
conhecer. Provavelmente, mesmo os cépticos sobre o assunto do sobrenatural,
como Hume ou Strauss, não iriam condenar a concepção de tais inteligências ou a
possibilidade abstracta de sua existência. Eles iriam talvez dizer: - Nós não
temos suficientes provas do facto; a dificuldade de conceber o seu modo de
existência é grande; o homem mais inteligente passa a sua vida inteira
em total ignorância de qualquer dessas inteligências invisíveis: esta é a
crença que prevalece entre os ignorantes e supersticiosos. Como filósofos, não
podemos condenar a possibilidade do que se postula, mas precisamos ter a mais
clara e satisfatória prova antes que possamos considerá-la como um facto.
Mas pode argumentar-se que, ainda que tais seres existam,
eles podem ser constituídos apenas de formas mais difusas e subtis da matéria.
Como, então, eles poderiam actuar sobre corpos ponderáveis, como produziriam
efeitos em tudo comparáveis àqueles que constituem os milagres tão conhecidos?
As pessoas que assim objectam devem ser lembradas de que todas as mais
poderosas e universais forças da natureza são agora atribuídas a
insignificantes vibrações de uma forma de matéria quase que infinitamente
atenuada e que, por meio das maiores generalizações da ciência
moderna, os mais variados fenómenos naturais foram trazidos para estas forças
recônditas. Luz, calor, electricidade, magnetismo, e provavelmente vitalidade e
gravitação, são considerados e são mais que "modos de
movimento" de um espaço preenchido pelo éter; e não há uma simples
manifestação de força ou desenvolvimento da beleza que não seja o derivado de
um ou outro deles. Toda a superfície do globo foi modelada e remodelada,
montanhas foram transformadas em planícies e planícies foram sulcadas e
enrugadas em montanhas e vales, tudo isto por meio do poder das
vibrações de calor etéreo colocadas em provimento pelo sol. Veios metálicos
e cristais rutilantes incandesceram sob milhas de rocha e montanhas foram formadas
por um conjunto distinto de forças desenvolvidas por vibrações do mesmo éter.
Toda a erva e flor que resplandecem na superfície da terra devem o seu poder de
crescimento e vida àquelas vibrações que chamamos de calor e luz, enquanto em
animais e no homem os poderes daquele maravilhoso telégrafo, cuja bateria é o
cérebro e cujos fios são os nervos, são provavelmente devidos à
manifestação de um ainda totalmente distinto "modo de movimento" no
mesmo éter difuso em todas as coisas. Em alguns casos podemos perceber os
efeitos destas forças recônditas ainda mais directamente. Vemos um ímã, sem
contacto ou impacto de qualquer matéria concebível pela nossa imaginação, como
capaz de exercer força, superando a gravidade e a inércia, elevando e movendo
corpos sólidos. Observamos a electricidade na forma de uma luz que passa pelas
fendas do carvalho sólido, irradiando-se do alto de torres e campanários
elevados ou destruindo homens e feras, algumas vezes sem um corte. E estas
manifestações de força são produzidas por uma forma de matéria tão impalpável
que apenas pelos seus efeitos ela nos é conhecida. Com tais fenómenos em todos
os lugares à nossa volta, nós devemos admitir que, se inteligências
feitas do que podemos denominar uma natureza etérea existem realmente, não
temos razão para negar que elas utilizem essas forças etéreas que são a fonte
inesgotável que origina toda a força, todo o movimento e toda a vida na Terra.
Os nossos limitados sentidos e intelecto nos permitem receber impressões delas
e traçar algumas das variadas manifestações do movimento etéreo sob fases tão
distintas como a luz, o calor, a electricidade e a gravidade; mas nenhum
pensador irá por um instante sequer, afirmar que não são factíveis outros
possíveis modos de acção deste elemento primordial. Para uma raça de cegos, o
quão completamente inconcebível seria a faculdade da visão, o quão
absolutamente desconhecido é a existência da luz e a sua miríade de
manifestações de forma, cor e beleza. Sem este único sentido, o nosso
conhecimento da natureza e do universo não seria uma milésima parte do que é.
Por sua ausência, o nosso intelecto se tornaria diminuto, nós não poderíamos
dizer até onde se conhece; e nós deveríamos crer que a nossa natureza moral não
poderia nunca ser amplamente desenvolvida sem ele e que dificilmente teríamos
atingido a dignidade e a supremacia do ser humano. Ainda é possível, e
talvez provável, que haja modos de sensação superiores aos nossos, como a
visão o é ao toque e ao ouvido. No próximo capítulo, consideraremos o assunto
das mais recentes descobertas do assim chamado sobrenaturalismo, baseados neste
ponto de vista.
/…
(i) Nota do tradutor: jardim irlandês de interesse histórico.
(ii) Nota do Tradutor: Esta opinião acerca da ciência comum no século XIX
não é mais partilhada no nosso século em função das descobertas da microfísica,
que mostra limites às leis de Newton. Mesmo os epistemológos que argumentam em
defesa da unicidade da ciência aceitam o argumento de que o conhecimento
científico é falível ante a mostra de evidências contrárias.
Alfred
Russel Wallace, O Aspecto Científico do Sobrenatural, II
Milagres e a ciência moderna 2 de 2, 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt, detalhe | 1898,
tempera e folha de ouro sobre painel, de Edgard Maxence)
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