A Força e a Matéria;
I Posição do Problema (II)
I Posição do Problema (II)
Há umas tantas questões profundas que, no curso da vida
humana, nas horas de silêncio e solidão, se nos apresentam como outros tantos
pontos de interrogação, inquietantes e misteriosos.
Tais os problemas da existência da alma, do seu destino futuro,
da existência de Deus e das suas relações com a Criação.
Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e dominam na
sua imensidade, pois sentimos que nos aguardam, e na ignorância deles não
poderemos razoavelmente alienar um tal ou qual temor do desconhecido.
Assim é que, já o dizia Pascal, um desses
problemas – o da mortalidade da alma – é tão importante, que é preciso haver
perdido toda a consciência para ficar indiferente ao conhecimento de si mesmo.
O mesmo se poderá dizer quanto à existência de Deus. Quando meditamos
essas verdades, ou apenas na possibilidade da sua existência, elas nos aparecem
sob o aspecto tão grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas
inteligentes, seres racionais, pensantes, entregar-se a uma vida inteira a
interesses transitórios, sem se abstraírem uma por outra vez da sua apatia para
atender a essas interrogativas preciosas.
Se é verdade, qual o temos observado, que há neste
mundo homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude desses
problemas, menos não é que eles nos inspiram verdadeira piedade. Aqueles
que, no entanto, mais agravam a brutalidade da indiferença e, de caso pensado,
desdenham alçar-se ao nível destes assuntos importantes, preferindo-lhes os
doces gozos da vida material, esses, – declaramo-lo alto e a bom som – nós os
deixamos sem pesar, entregues à sua inércia, para considerá-los fora da esfera
intelectual.
O problema da existência de Deus é primacial a todos. Nem
por outro motivo é que, contra ele, se apontam as principais, as mais possantes
baterias do Materialismo que
nos propomos combater. Pretende-se provar, com a ciência positiva, a
inexistência de Deus e que uma tal hipótese não passa de aberração da
inteligência humana. Um grande número de homens sérios, convencidos do
valor desses pretensos raciocínios científicos, enfileiraram-se à volta desses
inovadores reincidentes, engrossando desmesuradamente as hostes materialistas,
primeiro na Alemanha e depois na França, na Inglaterra, na Suíça e na própria
Itália.
Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos,
quantos se apoiam em testemunhos da ciência experimental para concluir que Deus
não existe, cometem a mais grave inconsequência.
Acusando-os dessa errónea, haveremos de justificar-nos,
ainda que os incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens
eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da ciência experimental que
vimos combatê-los.
Deixamos de lado toda a ciência especulativa e colocamo-nos,
exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.
Não pensamos como Demócrito que,
vazar os olhos, para evitar as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio
de cultivar frutuosamente a Filosofia e, muito pelo contrário, permanecemos
firmes na esfera da observação e da experiência.
Nessa posição, declaramos que, por um lado, não se prende
imediatamente à existência de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos a
aplicar ao problema os actuais conhecimentos científicos, longe de
conduzirem à negativa, afirmam eles a inteligência e sabedoria das leis da
Natureza.
A elevação para Deus, mediante o estudo científico da
Natureza, nos mantém em situação equidistante dos dois extremos, isto é: – dos
que negam e dos que se permitem definir, simploriamente, a causa suprema como
se houvessem sido admitidos ao seu concelho. Assim, com as mesmas armas,
combatemos duas potências opostas: – o materialismo e a ilusão religiosa.
Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num Deus
infantil, quanto negar uma causa primária.
Em vão se nos objectará não podermos afirmar a existência de
uma entidade que não conhecemos. Acautelemo-nos de presunções que tais. Certo,
não conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Também
não conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. Tampouco,
conhecemos a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície da
Terra.
“Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann –
que tenha uma exacta noção do Ser supremo. As minhas opiniões, faladas ou
escritas, resumem-se nisto: Deus é incompreensível e o homem não tem a seu
respeito mais que uma noção vaga e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e
nós com ela, somos de tal modo penetrados pela Divindade que dela nos
sustentamos, nela vivemos, respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em
conformidade com leis eternas, perante as quais representamos um papel activo e
passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com
o bolo, sem pensar em quem o fez, o pássaro belisca a cereja, sem imaginar como
a esta se formou. Que sabemos de Deus? E que significa, em suma, essa íntima
intuição que temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a exemplo dos turcos, eu
lhe desse cem nomes, ficaria infinitamente abaixo da verdade, tantos são os
seus inumeráveis atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos Deus, se manifesta
não só no homem como no âmbito de uma Natureza rica e potente quanto nos
grandes acontecimentos mundiais, a ideia que dele se faz é, evidentemente,
exígua.”
A ideia que os antepassados formavam de Deus, em todas as
épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente
adquirido pela Humanidade. Tal como o saber humano, essa ideia é
variável e deve, necessariamente, progredir, pois, seja como for, cada uma das
noções que constituem o património da inteligência deve seguir a par com o
progresso geral, sob pena de ficar distanciada.
/…
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 2 de 6, 6º
fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)
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