(II de III)
De retorno, na sege especial, Assunta meditava quanto ao próprio
destino.
As circunstâncias precipitaram-se e ela, repentinamente, se vira
envolvida por densa treva interior, que a amargurava agora.
É certo que não sentia o clamor do remorso convocando-a a outra atitude
mental, por enquanto. Todavia, quando recordava as personagens assassinadas, um
estranho arrepio a fazia gelar. As crianças se lhe entregaram confiantemente e
aqueles haviam sido dias de dor no palácio. As suas mãos, sim, aquelas mãos bem
talhadas e mimosas adicionaram o entorpecente ao chá,
preparando o caminho para o malfeitor. Acontecia, porém, que o bandido era o
homem amado. Que não faria por ele!? Amava-o até à loucura, apesar de saber que
ele não a amava. Por estranho sortilégio, sabia-se apenas um meio de exploração
para o prazer, utilizado por Girólamo.
E reflectia, enquanto a carruagem vencia as
estradas tortuosas, lamacentas e mal cuidadas: amava o rapaz há mais de um ano
e a ele se entregara, desde então. Por que somente agora essa volúpia a
desgraçara? Ele nunca lhe prometera fidelidade nem matrimónio e ela pouco se
importara com as consequências. Ante o aceno de uma ventura, sim, impossível,
ela fora capaz de trair aqueles aos quais muito devia e
acumpliciar-se num hediondo assassínio, em que a sua amiga e as crianças
pequeninas foram vítimas indefesas!
Recordando os dias que precediam a trágica
acção, as lágrimas lhe saltaram dos olhos, desmesuradamente, pôs a mão
espalmada sobre o peito ofegante, comprimindo a efígie de delicada madona, uma
desconhecida sensação de horror e culpa que lhe estrangulava a
garganta, quase impedindo a respiração, que se tornou entrecortada e difícil.
– Assassina! – pareceu escutar de momento.
Seria a consciência atormentada? Era má, sem
dúvida, no entanto, era também jovem e inexperiente, e se deixara vencer pela
impiedade do rapaz cruel. Recordou-se do amante que lhe impunha essa fuga,
exactamente a ela que também era vítima e, num relance, veio-lhe a ideia
fuzilante de que o companheiro desejava libertar-se dela, para, então, gozar. Por
que Girólamo a desposaria, havendo tantas mulheres ricas, formosas e, sendo ele
contumaz explorador? Sacudida por essa lembrança violenta, a mágoa e o receio
foram substituídos pelo ódio, que lhe irrompeu em catadupa.
Desejou retornar, enfrentar o verdugo da sua paz e intimidá-lo, fazendo-o
compreender devidamente, repetindo-lhe na face e demonstrando com todo o vigor
do seu espírito desesperado a intrepidez com que o enfrentaria, indo até aos
últimos lances, na tentativa de o não perder. Contraiu os lábios e sentiu o
amargor da situação em que se enleara. Dominou-se, porém,
recobrando um pouco a serenidade.
Longas horas se passaram e o cansaço, o
relaxamento repentino substituíram a tensão e a ansiedade dos últimos dias,
fazendo-a mergulhar em pesado e incómodo sono.
Com o espírito atribulado, a moça, logo
adormeceu, experimentou a lucidez do despertamento espiritual e viu-se diante
da Senhora duquesa, cujo olhar a penetrava dolorosamente. Sentia-se
no corpo e fora dele: cansada e consciente. A tez pálida e os grandes olhos
nublados pelas lágrimas, na senhora, falavam, sem palavras, duras recriminações.
Aquele olhar desnudava-a inteiramente. A veneranda Entidade, que a recebera no
seu solar anos antes e que lhe dera a mão de auxílio, quando a adversidade
obrigara os seus pais a situar as filhas nos burgos florescentes da Toscana, vítimas
que haviam sido das surpresas do destino, parecia perguntar-lhe em silêncio:
“Que fora feito do sentimento de gratidão, na tua alma infeliz?” Fitando a
protectora, parecia rever as crianças alegres, que brincavam nos seus braços e
que dias antes estiveram sob a sua guarda, quando do velório e do sepultamento
do Senhor duque. O sorriso inocente e cristalino dos pequeninos
percutia nos seus ouvidos, como se os despedaçasse por dentro e, as suas vozes
infantis brincavam melodias na acústica do seu espírito atormentado. Revia
Lúcia, confiante, deixando-se tranquilizar ante a sua assistência fingida, –
Lúcia, que se fizera cão devotado e zeloso dos pequenos rebentos dos di Bicci.
Vencida pela tristeza infinita daquela face marmórea, desfigurada e silenciosa,
a sequaz de Girólamo ajoelhou-se, visivelmente infeliz e, rogou perdão…
– Como pudeste, Assunta – indagou, com
inexcedível expressão de voz, a Senhora di Bicci –, transformar em veneno o
licor da amizade que eu depus na taça do teu coração? Como te foi
possível adicionar às minhas dores as brasas do desconforto e da amargura, para
que eu acompanhe o duque, hoje esmagado de angústia, transformado
em fera impiedosa e irracional, que persegue o seu caçador e terminará por
destruí-lo? Os meus filhinhos não morreram: libertaram-se de dura canga; Lúcia
não desapareceu nem se consumiu, apenas dorme sob os meus cuidados. Hoje,
sou-lhe a servidora devotada e reconhecida. Tenho-a como filha do meu coração,
sacrificada pela sanha criminosa de alguém a quem nutri com o leite da
misericórdia e da compaixão… Ela resgata e ele
se infelicita. Ela sublima a vida e ele aniquila a
esperança. Onde colocaste o sentimento, Assunta? Não te comoveu o sono inocente
e confiante dos meus filhos? Acreditas em felicidade sobre cadáveres? Crês que
o assassino da infância não será, também, oportunamente, o
destruidor da viciada? Confias a vida a quem destrói vidas?
Apiedo-me de ti e, venho em teu socorro.
Emocionada, compungida, a matrona pôs a mão
muito delicada sobre a atormentada mulher e prosseguiu:
– Foge de Girólamo, enquanto é tempo. Evade-te
da Toscana. És jovem e bela. O futuro diminuirá a chama do presente e poderás
carpir e resgatar os teus crimes sem te afundares noutros. Utiliza a
vida e aprende a amar como Jesus nos
amou. Só o amor verdadeiro, fundamentado na compaixão,
na misericórdia, na consciência tranquila e na
devoção até ao sacrifício, redime a criatura. O teu crime, nascido na
insensatez e na lubricidade, exigirá de ti um tributo pesado de dores que
poderás pagar se fugires, evitando a hiena que virá, logo mais, despedaçar o
cadáver das suas esperanças, tripudiar sobre a vã loucura dos teus desejos, já
desprezados por ele… Girólamo está louco e, a sua é uma enfermidade sem
remédio, no momento; sem esperança, por enquanto. Evita ficar em Florença…
– Perdoai-me, senhora! Desgraçada que sou, –
bradou a infortunada.
– Perdão, minha filha, só o do Nosso Pai e,
depois, o da nossa consciência. Quando sentires a isenção da
culpa, estarás, então, perdoada. Eu não te culpo, nem te exprobro a conduta leviana,
cujas consequências, imprevisíveis de momento, não me cabe ajuizar. Distendo-te mãos
de socorro, conforme a recomendação do Senhor: “Fazer todo o bem a quem nos faz
todo o mal.” O coração materno, fundamente lanhado, vem beber
contigo a taça da amargura desmedida. De certo modo, contribuíste para a
felicidade e a libertação dos meus amados – lamento profundamente o esposo
inditoso, que continua dormindo no desespero! –, liberdade
essa que os redime de pesadas culpas, esquecidas, todavia não
resgatadas, que clamavam há muito por regularização… Não seria, porém,
necessário que fosse o adverso instrumento da Justiça, pois que a Divina
Providência possui recursos para cobrança sem criar novos
devedores… Não te compliques ainda mais… Foge, portanto, enquanto é tempo e
urge a oportunidade.
– Para onde, senhora, deverei fugir, se atei,
inexoravelmente, o meu ao destino do bandido, que amo como obsessão sem lucidez nem
raciocínio?! A simples memória de Girólamo me entontece, como licor
cujo aroma anuncia a madureza do vinho no barril de carvalho…
Agora irei até à destruição total com ele e, se me trair…
– Nada poderás, minha filha, nada. És fraca e
ignorante. Como pode a humilde rolinha, presa no olhar da serpente que prepara
o bote, fugir ao esmagamento, ao veneno traiçoeiro, à morte horrível? Não
conheces Girólamo, quanto eu conheço. Foge, Assunta e, que Deus tenha piedade
da tua alma!
Aos sacolejos, a carruagem, derrapando e
batendo nas pedras da estrada real, foi sacudida com maior violência e a moça,
fortemente arrojada do assento veludoso, acordou banhada por álgido e pegajoso
suor… Abriu os olhos, fitou a paisagem sombreada por nuvens carregadas e,
accionando pequena campainha, que soava ao lado do cocheiro, fê-lo parar o
veículo. Muito pálida, abriu a porta e semicambaliante ensaiou alguns passos,
para cair…
O cocheiro saltou pressuroso e carregou-a para
dentro do veículo, com receio de algo mau. Após aspergir água fria sobre o seu
rosto, despertou-a, indagando quanto ao seu estado de saúde.
– Sofri um pesadelo, – asseverou. Assunta,
preocupada. – Não há de ser nada, pois logo passará. Façamos uma pausa, para um
pouco de repouso. O ar frio me fará melhor.
O restante da viagem transcorreu normalmente,
não obstante a preocupação continuasse crescente, no cérebro da jovem.
Chegando a Florença, onde moravam a
genitora e diversos outros parentes, que residiam em sítio próximo à cidade,
fronteiriço ao rio, a sege, por indicação sua, seguiu directamente para a casa
que a acolheria.
Recebida com alacridade e júbilo natural pela
mãe e demais familiares, relatou em sucintas palavras o ocorrido no Palácio di
Bicci e a orientação que lhe dera Dom Girólamo, quanto à necessidade de um
repouso, enquanto ele reorganizaria o solar, mandando buscá-la mais tarde.
Perfeitamente aceita a explicação – embora todos lamentassem as desgraças que
desabaram sobre aquela mansão –, Assunta foi acolhida com carinho e
contentamento geral. Novamente no lar, refez-se um pouco dos acontecimentos,
apesar de não esquecer o estranho sonho que a acometera na
viagem, como se fora pressaga anunciação de novas dores. Mesmo
desejando demonstrar alegria, sentia-se interiormente conturbada. As paisagens
queridas da infância, conquanto nascida em Chiusi, o clima em renovação, embora
frio e húmido, a natureza despertando ainda encharcada do Inverno torrencial,
não lhe podiam apagar os sinais da preocupação duramente suportada. Os
familiares atribuíam que fossem as consequências do drama horripilante, as
saudades da companheira e das crianças, evitando atormentá-la com perguntas
inoportunas e descabidas…
/…
Párias (i). Nota desta publicação.
VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
4. FÚRIA ASSASSINA (II de III), 12º fragmento desta obra. Texto
mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard
Maxence)
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