IV
Maurice, nas suas caminhadas vagabundas, havia reencontrado
várias vezes Luísa, a velha ama de leite. Tendo sabido conquistar a sua
amizade, adquiriu a certeza de que seria bem acolhido na vila Esperança, e ali
se apresentou um dia. Quem tivesse encontrado o advogado misantropo teria podido
perceber, com surpresa, a emoção que ele sentia. O que planeava iria destruir
ou realizar as suas esperanças? Ele foi muito bem recebido pela tia de Giovanna que,
enfraquecida pela idade e pela doença, sentia chegado o momento de dar um
suporte natural, um esposo, a sua sobrinha. Ela, autorizou Maurice a
renovar as suas visitas, o que ele fez com frequência. Começaram então, para os
jovens, as prolongadas conversas, as conversas familiares, sobre o terraço
dominando o lago,
durante as quais as suas almas se expandiam em mútuas confidências. Maurice
contava a sua vida, a sua triste vida de criança privada de mãe, depois as
decepções, os receios de sua juventude. Abria, como se o rasgasse, o seu
coração a Giovanna. Ela consolava-o, confiava-lhe os seus sonhos, sonhos ainda
cândidos, ainda puros como os de um anjo. E esses dois seres, aproximando-se
mais e mais, aprendiam a se amar, mil laços secretos se formavam, os enlaçavam,
os uniam em estreitas e poderosas malhas.
O dia em que, segundo os costumes da alta Itália, o noivado
devia ser celebrado, foi logo fixado, e tudo foi preparado para esta festa
íntima, na qual dois ou três velhos amigos deviam tomar parte. Na véspera desse
dia, Maurice sobe ainda cedo à vila. Após a refeição da noite, os dois se
dirigem para o terraço, de onde os seus olhares podiam estender-se sobre um
mágico horizonte. Sentam-se em silêncio debaixo de um pomar de laranjeiras.
Luísa se mantinha um pouco afastada.
A noite avança lentamente; estende sobre o lago o seu véu
azulado, derramando um colorido uniforme sobre os campos de oliveiras, as
vinhas, os bosques de castanheiros, as vilas e as aldeias. Enquanto que a
sombra se adensava nos vales, os cumes das colinas, avermelhados pela púrpura
do poente, pareciam-se bastante ao fogo de um incêndio. A noite subia aos
poucos; as suas sombras arrastadas estendiam-se sobre as colinas; as luzes
inumeráveis resplendiam nas janelas das vilas e das cabanas. As trevas
envolviam inteiramente o lago e o seu conjunto de montanhas, mas, para Norte,
as luzes do dia morrendo coloriam ainda de cores fantásticas o colosso dos
Alpes. Como uma armada de gigantes dispostos em batalha, a Bernina, a Sella, o
Monte-d'Oro, a Disgrazia, e vinte outros picos, apontavam para o céu os seus
cimos orgulhosos, coroados de neve, sobre os quais o sol, antes de desaparecer
no ocidente, lançava os seus raios fraccionados.
Em vão, a noite procurava apagá-los, eles lutavam com ela.
Mas o seu véu passa enfim sobre essas frontes soberbas. As últimas
luminosidades se extinguiram. A noite triunfava; só, iria reinar até à aurora.
Nesse momento, um concerto argentino se eleva nos ares. Em
todas as aldeias, os sinos tilintavam. Era o Ângelus, a
prece do entardecer, o sinal que evoca entre todos, os pescadores do lago,
os lenhadores da floresta, os pastores da montanha, o pensamento de Deus.
Giovanna e Maurice, sonhadores, recolhidos, observavam esse majestoso
espectáculo; escutavam o som melancólico dos sinos, seguiam com o olhar as
belas estrelas de ouro emergindo das profundezas do céu para subir lentamente,
em legiões cerradas, para zénite. A poesia dessa noite preenchia as suas almas;
as suas bocas estavam mudas, mas os seus corações se confundiam num enlevo
profundo. Maurice rompeu o silêncio primeiro.
- Giovanna, disse ele, você pensa, às vezes, nessas esferas
luminosas que se movem no espaço? Já se perguntou se são, como a nossa terra,
mundos de sofrimento, habitados por seres materiais e atrasados, ou se almas
mais perfeitas aí vivem no amor, na felicidade?
- Bem às vezes, respondeu ela, tenho visitado esses mundos.
Protectores, amigos invisíveis, me levam quase todas as noites para essas
regiões celestes. Com dificuldade tenho visto, que um grupo de espíritos, de
longas vestes flutuantes, de fronte brilhante, me cercam, me chamam. Vejo a minha
própria alma que, semelhante à deles, se liberta de meu corpo e os segue.
Rápido como o pensamento, atravessamos os espaços imensos, povoados de uma
multidão de espíritos; por toda a parte oceanos de vida desdobram as suas
perspectivas sem limites. Por toda a parte retinem os cantos harmoniosos, de
uma suavidade desconhecida na Terra. Percorremos esses arquipélagos estelares,
essas esferas longínquas, bem diferentes de nosso globo. Em lugar de uma
matéria compacta e pesada, muitos dentre eles são formados de fluidos leves, de
brilhantes cores. Enquanto que os hóspedes da terra se arrastam penosamente na
superfície do planeta, os habitantes desses mundos, de corpos subtis, aéreos,
elevam-se facilmente, planam no espaço ambiente. Eles agem sobre esses fluidos
leves e coloridos que compõem o centro de suas esferas; lhes dão mil formas,
mil aspectos diversos.
Assim são os palácios admiráveis, colónias deslumbrantes,
com inumeráveis pórticos, templos com abóbadas gigantescas, ornados de
estátuas, de pilastras de gás, e cujas muralhas transparentes permitem entrever
o seu interior. De todas as partes se erguem construções prodigiosas, abrigos
da ciência e das artes, bibliotecas, museus, escolas, exposições, sempre
invadidas pelas multidões. O ensinamento aí é dado sob a forma de quadros
luminosos e cambiantes. A linguagem é uma espécie de música.
/...
Léon Denis, Giovanna_1880, IV (I de II) 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena
pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)
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