segunda-feira, 15 de junho de 2015

Giovanna ~

IV
Maurice, nas suas caminhadas vagabundas, havia reencontrado várias vezes Luísa, a velha ama de leite. Tendo sabido conquistar a sua amizade, adquiriu a certeza de que seria bem acolhido na vila Esperança, e ali se apresentou um dia. Quem tivesse encontrado o advogado misantropo teria podido perceber, com surpresa, a emoção que ele sentia. O que planeava iria destruir ou realizar as suas esperanças? Ele foi muito bem recebido pela tia de Giovanna que, enfraquecida pela idade e pela doença, sentia chegado o momento de dar um suporte natural, um esposo, a sua sobrinha. Ela, autorizou Maurice a renovar as suas visitas, o que ele fez com frequência. Começaram então, para os jovens, as prolongadas conversas, as conversas familiares, sobre o terraço dominando o lago, durante as quais as suas almas se expandiam em mútuas confidências. Maurice contava a sua vida, a sua triste vida de criança privada de mãe, depois as decepções, os receios de sua juventude. Abria, como se o rasgasse, o seu coração a Giovanna. Ela consolava-o, confiava-lhe os seus sonhos, sonhos ainda cândidos, ainda puros como os de um anjo. E esses dois seres, aproximando-se mais e mais, aprendiam a se amar, mil laços secretos se formavam, os enlaçavam, os uniam em estreitas e poderosas malhas.

O dia em que, segundo os costumes da alta Itália, o noivado devia ser celebrado, foi logo fixado, e tudo foi preparado para esta festa íntima, na qual dois ou três velhos amigos deviam tomar parte. Na véspera desse dia, Maurice sobe ainda cedo à vila. Após a refeição da noite, os dois se dirigem para o terraço, de onde os seus olhares podiam estender-se sobre um mágico horizonte. Sentam-se em silêncio debaixo de um pomar de laranjeiras. Luísa se mantinha um pouco afastada.

A noite avança lentamente; estende sobre o lago o seu véu azulado, derramando um colorido uniforme sobre os campos de oliveiras, as vinhas, os bosques de castanheiros, as vilas e as aldeias. Enquanto que a sombra se adensava nos vales, os cumes das colinas, avermelhados pela púrpura do poente, pareciam-se bastante ao fogo de um incêndio. A noite subia aos poucos; as suas sombras arrastadas estendiam-se sobre as colinas; as luzes inumeráveis resplendiam nas janelas das vilas e das cabanas. As trevas envolviam inteiramente o lago e o seu conjunto de montanhas, mas, para Norte, as luzes do dia morrendo coloriam ainda de cores fantásticas o colosso dos Alpes. Como uma armada de gigantes dispostos em batalha, a Bernina, a Sella, o Monte-d'Oro, a Disgrazia, e vinte outros picos, apontavam para o céu os seus cimos orgulhosos, coroados de neve, sobre os quais o sol, antes de desaparecer no ocidente, lançava os seus raios fraccionados.

Em vão, a noite procurava apagá-los, eles lutavam com ela. Mas o seu véu passa enfim sobre essas frontes soberbas. As últimas luminosidades se extinguiram. A noite triunfava; só, iria reinar até à aurora.

Nesse momento, um concerto argentino se eleva nos ares. Em todas as aldeias, os sinos tilintavam. Era o Ângelus, a prece do entardecer, o sinal que evoca entre todos, os pescadores do lago, os lenhadores da floresta, os pastores da montanha, o pensamento de Deus. Giovanna e Maurice, sonhadores, recolhidos, observavam esse majestoso espectáculo; escutavam o som melancólico dos sinos, seguiam com o olhar as belas estrelas de ouro emergindo das profundezas do céu para subir lentamente, em legiões cerradas, para zénite. A poesia dessa noite preenchia as suas almas; as suas bocas estavam mudas, mas os seus corações se confundiam num enlevo profundo. Maurice rompeu o silêncio primeiro.

- Giovanna, disse ele, você pensa, às vezes, nessas esferas luminosas que se movem no espaço? Já se perguntou se são, como a nossa terra, mundos de sofrimento, habitados por seres materiais e atrasados, ou se almas mais perfeitas aí vivem no amor, na felicidade?

- Bem às vezes, respondeu ela, tenho visitado esses mundos. Protectores, amigos invisíveis, me levam quase todas as noites para essas regiões celestes. Com dificuldade tenho visto, que um grupo de espíritos, de longas vestes flutuantes, de fronte brilhante, me cercam, me chamam. Vejo a minha própria alma que, semelhante à deles, se liberta de meu corpo e os segue. Rápido como o pensamento, atravessamos os espaços imensos, povoados de uma multidão de espíritos; por toda a parte oceanos de vida desdobram as suas perspectivas sem limites. Por toda a parte retinem os cantos harmoniosos, de uma suavidade desconhecida na Terra. Percorremos esses arquipélagos estelares, essas esferas longínquas, bem diferentes de nosso globo. Em lugar de uma matéria compacta e pesada, muitos dentre eles são formados de fluidos leves, de brilhantes cores. Enquanto que os hóspedes da terra se arrastam penosamente na superfície do planeta, os habitantes desses mundos, de corpos subtis, aéreos, elevam-se facilmente, planam no espaço ambiente. Eles agem sobre esses fluidos leves e coloridos que compõem o centro de suas esferas; lhes dão mil formas, mil aspectos diversos.

Assim são os palácios admiráveis, colónias deslumbrantes, com inumeráveis pórticos, templos com abóbadas gigantescas, ornados de estátuas, de pilastras de gás, e cujas muralhas transparentes permitem entrever o seu interior. De todas as partes se erguem construções prodigiosas, abrigos da ciência e das artes, bibliotecas, museus, escolas, exposições, sempre invadidas pelas multidões. O ensinamento aí é dado sob a forma de quadros luminosos e cambiantes. A linguagem é uma espécie de música.

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Léon Denis, Giovanna_1880, IV (I de II) 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Retrato, pequena pintura que especialistas de arte italiana atribuem a Rafael Sanzio)

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