sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

pensamento espírita argentino ~

CAPÍTULO I

Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história ~

Que somos? (V)

No prazer como na dor, na tristeza ou alegria, no desejo ou na paixão, na recordação como em todo trabalho da mente ou determinação da vontade, o cérebro desenvolve uma função puramente fisiológica sob o impulso e a direcção do espírito, que é a única força psíquica, activa (consciente ou inconsciente), inteligente e volitiva que há no organismo humano: sem ela o homem se reduz a um corpo; abandonado por ela é um cadáver. Fácil é compreender como em um estado normal do ser humano (isto é, enquanto a alma está estreitamente ligada ao organismo) toda função psíquica se desenvolve dentro das vias normais, correspondendo a um aparelho sensorial determinado que, nascendo da periferia, encontra nas zonas centrais do cérebro um centro receptor e que todo o centro motor cortical, que actua como aparelho transmissor com as suas fibras nervosas eferentes, sirva a sua correspondente função motriz. Mas há casos (e estes já ninguém ignora) em que estas vias naturais (ou melhor, ordinárias) não são indispensáveis aos fenómenos de percepção, de transmissão e de motricidade e outros em que as localizações cerebrais não parecem ser tão cerebrais e muito menos psíquicas, como postula a psicofisiologia; mas estas localizações, como faz notar o doutor Gustave Geley(i) parecem ser mais anatómicas, ou melhor, aproximações aos verdadeiros centros psíquicos que correspondem às faculdades do espírito, localizadas, por assim dizer, no corpo etéreo ou perispiritual, que forma a estrutura íntima sobre a qual se plasma o corpo somático e do qual este é só o revestimento.

O positivismo psicofisiológico pretende já ter conhecido definitivamente a alma humana, fazendo dela uma espécie de mitologia psicológica, atribuindo a cada centro cerebral uma função própria; tem lavrado o cérebro como quem lavra um campo, atribuindo a cada fracção um poder psíquico determinado e ao cérebro a coordenação automática desses poderes psíquicos, sem outra inteligência nem direcção, senão a que resulta da inconsciência de cada um e que formam, por associação, o chamado campo da consciência.

A hipótese frenológica (ii) de Gall, sustentada por Broussais e Bouillaud, negadas pelas experiências e pela crítica de Flourens, reafirmada por Broca, Charcot, Türck, Fritch, Hitzig e mais tarde (1870 e 1875), respectivamente, por Ferrier e Bartholow, é considerada pela psicologia empírica como um facto científico perfeitamente demonstrado, do mesmo modo que a hipótese do paralelismo psicofisiológico; daí afirmar-se que não pode existir função psíquica sem o seu correspondente centro nervoso, que a determinada actividade psicológica corresponde determinada actividade dos centros nervosos e que esta é sempre proporcional àquela. Como se vê, os feitos acumulados pela moderna psicologia e muito especialmente os da Metapsíquica, deixam malparadas estas hipóteses.

As localizações cerebrais têm no seu apoio factos que, não sendo contraditos por outros tanto ou mais eloquentes, dariam ao positivismo materialista uma razão, pelo menos hipotética, para seguir sustentando a sua teoria psicofisiológica da alma. Nos traumatismos, uma leve lesão ou perda de massa encefálica costuma ser acompanhada de perturbações mentais consideráveis (como nas afecções produzidas por quistos), e nos casos de ablação, a extracção de um tumor ou de uma parte do cérebro suprime uma função ou faculdade psicológica. Sabe-se também que a privação de uma parte ou da quase totalidade (em alguns casos) do cérebro não altera e menos suprime as funções psíquicas correspondentes, nem reduz a personalidade. Os casos que se seguem falam em favor desta afirmação.

Em 1886, o doutor Carlos B. Tancredi (iii) publicou o seguinte caso estudado pelo doutor Harlow:

“Um homem de 35 anos de idade estava ocupado em apertar uma broca de mina, quando a pólvora fez uma explosão: neste momento estava inclinado para a frente, sobre o orifício, com o rosto ligeiramente virado; o furador foi projectado de baixo para cima em direcção de seu maior eixo, atravessando a cabeça e elevando-se no ar a bastante altura”. A ferida era oblíqua “e atravessava o crânio em linha recta desde o ângulo da mandíbula inferior ao centro do osso frontal, perto da sutura sagital por onde saiu o ferro, que foi encontrado a alguns metros do ferido, coberto de sangue e substância cerebral”. O furador em questão pesava 13,75 libras (cerca de 6,2 quilos), media 1,15 m de comprimento e 3 centímetros de diâmetro; a extremidade que penetrou primeiro era pontiaguda, tendo a ponta 18 centímetros de extensão, e em sua extremidade, 6 milímetros de diâmetro.

“Imediatamente depois da explosão, o ferido caiu de costas e os seus membros se agitaram com movimentos convulsivos; mas não demorou em falar e, transportado a um povoado vizinho, desceu por si mesmo do carro onde o haviam colocado e com pouca ajuda pôde subir uma alta escada até a sala onde foi atendido.”

O ferido – disse o dr. Harlow – suportava os seus sofrimentos com a mais heróica firmeza; parecia conservar toda a sua razão, mas se abatia pela hemorragia – que era muito abundante, exterior e interiormente: deglutia o sangue que vomitava a cada quinze ou vinte minutos, e tanto o seu corpo, como a cama onde descansava, estavam inundados de sangue; tinha 60 pulsações regulares. Acompanhado do dr. Williams, que foi o primeiro a atender o ferido, procedi ao tratamento e examinando a ferida da frente vi que haviam sido levantados fragmentos de osso e que o cérebro formava hérnia; raspou-se-lhe a cabeça, foram retirados os coágulos e duas ou três lasquinhas de osso de forma triangular, e para assegurar-me de que não existiam corpos estranhos, passei todo o dedo indicador na direcção da ferida do rosto, na qual o indicador da outra mão penetrava do mesmo modo. Uma porção do ângulo ântero-superior de cada um dos parietais e uma porção semicircular do frontal estavam fracturados, o que formava uma abertura de 8,5 centímetros de diâmetro, aproximadamente...” Depois de haver levantado as lasquinhas, e um resto de matéria cerebral, unido por uma espécie de pedúnculo, coloquei no seu lugar os fragmentos mais importantes; juntei o quanto possível as partes soltas com ajuda de tiras aglutinantes.

O ferido curou-se sem apresentar paradas nem alterações intelectuais e morreu dezanove anos depois do acidente.”

O doutor Destot cita três casos não menos assombrosos, estudados por ele e confirmados pelos doutores Mollière, de Lyon, e Buch, de Argel. Um dos casos refere-se a um menino de 12 anos de idade que ao cair de uma escada fracturou o crânio num bico de gás de iluminação, e pela ferida saiu-lhe a massa encefálica. Depois de um estado comatoso que durou dez dias, reagiu, recobrando os sentidos e curando-se por completo.

O segundo caso refere-se a um pedreiro, vítima de um terrível golpe que lhe provocou o salto da parte direita do frontal e do hemisfério cerebral correspondente. O estado comatoso durou 15 dias; um dia depois abriu os olhos, recobrou os sentidos e a sensibilidade. Fabricou-se-lhe uma tampa para proteger a parte do cérebro que restava e poucos dias depois recebeu a alta.

O terceiro caso é o de um árabe que apresentava uma ferida na sobrancelha esquerda, da qual saia pus; depois de haver-lhe feito vários curativos e quando parecia de todo curado, morreu repentinamente. Quando feita a autópsia, verificou-se que uma sexta parte do cérebro estava destruída por enorme abcesso, destruição que devia proceder de, pelo menos, três meses atrás, sem haver causado incómodos ao enfermo, que até ao momento de morrer atendera a suas ocupações habituais.

O doutor Gustave Geley, na obra mencionada, resume casos dos quais, para maior esclarecimento, mencionaremos alguns.

O primeiro refere-se a um facto apresentado pelo doutor Hallopeau, em Julho de 1914, à Sociedade de Cirurgia, relacionado com a operação de uma jovem no hospital Vecker, que caíra de um vagão. “Na trepanação provou-se que uma porção de matéria cerebral se havia reduzido literalmente a uma pasta. Limpou-se e drenou-se a ferida e a enferma curou-se perfeitamente.”

O segundo foi apresentado à Academia de Ciências de Paris pelo dr. A. Guepin, na sessão de 24 de Março de 1917, como uma contribuição ao estudo desse tema; nela, menciona o citado doutor que: “Seu primeiro operado, o soldado Luís R., na época jardineiro das imediações de Paris, não obstante a perda de uma enorme parte de seu hemisfério cerebral esquerdo (substância cortical, substância branca, núcleos centrais, etc.), continua portando-se como uma pessoa normal, a despeito das lesões e da perda de circunvoluções consideradas como base de funções essenciais.”

O dr. R. Robinson apresentou também à Academia de Ciências de Paris, em 22 de Dezembro de 1913, por intermédio de seu presidente, Edmond Perrier, o seguinte caso: um homem de 62 anos, ferido na região occipital, viveu um ano sem sofrimento. Durante um mês esteve perfeito; mais tarde, quando já havia esquecido o acidente, experimentou alguns distúrbios visuais e certo decaimento na inteligência. Após um ano, uma crise epiléptica atacou-o e levou-o à morte. Feita a autópsia, encontrou-se o cérebro reduzido a um estado de pasta, contendo apenas matéria purulenta.

Ao final do Século 16, o dr. Taruto Lisboa, chamado o Lusitano, publicou em seu livro Prática Médica, o seguinte caso:

“Um menino de 10 anos recebeu na parte posterior do crânio uma enorme cutelada, que cortou o osso e a membrana cervical, atingindo a massa encefálica. Contra todas as previsões e diagnósticos, o ferido curou-se. Três anos depois, morria hidrocéfalo. Abriu-se o crânio e não se encontrou cérebro. Entre as duas folhas da duramáter (uma das membranas que envolvem o cérebro) apareceu um líquido límpido e bem cheiroso; era coisa extraordinária. O menino havia vivido durante três anos sem cérebro, com a plenitude de suas faculdades psíquicas.”

O dr. Agustin Iturricha, presidente da Sociedade Antropológica de Sucre (Bolívia), em discurso pronunciado nessa instituição, em sete de Agosto de 1916, fez referência a alguns casos análogos, entre os quais se citam os dois seguintes:

“... Mas aqui há factos mais surpreendentes recolhidos na clínica do dr. Nicolas Ortiz, que o dr. Domingo Guzmán teve a amabilidade de comunicar-me. A fonte dessas observações não pode ser suspeita: emana de duas altas personalidades do nosso mundo científico, de dois verdadeiros sábios.

O primeiro caso se refere a um jovem de 12 a 14 anos, morto em pleno uso de suas faculdades intelectuais, embora a sua massa encefálica tenha sido completamente desprendida do bulbo, nas condições de um homem realmente decapitado. Enorme deve ter sido a estupefacção dos clínicos ao encontrar, no acto da autópsia, abrindo a cavidade craniana, as meninges ensanguentadas e um grande abcesso que ocupava quase uma parte do cérebro e a protuberância, sabendo, sem dúvida, que este jovem, alguns instantes antes de morrer, pensava com vigor. Forçosamente, deveriam perguntar-se: Como se concebe isto?

O terceiro caso da mesma clínica refere-se a um jovem agricultor de 18 anos. A autópsia pôs a descoberto três abcessos do tamanho de uma tangerina, ocupando cada um a parte posterior dos hemisférios cerebrais e uma parte do cerebelo com comunicações recíprocas. Apesar disso, o doente pensava como os demais homens.”

À parte destes factos, a revista La Idea, de Buenos Aires, de Abril de 1933, traz o resumo de um artigo publicado em uma revista alemã (Die Ubersennlique Welt), no qual se lê o seguinte:

“Hyrth, Hufeland e Hennemoser, professores de cirurgia médica, comprovaram que a perda de partes sensíveis do cérebro não havia reduzido a capacidade de pensar dos sujeitos examinados.

O professor Schmick recorda que Benecke referia aos estudantes o seguinte facto: o célebre arquitecto berlinense Schinkel, normal até o último minuto de sua vida, apresentou na autópsia enormes “vazios” no cérebro. O professor Rein, de Jena, em conferência realizada em 1911, citou o caso de um homem normal durante toda sua existência, apesar de grandes alterações cerebrais. Várias comprovações desta categoria registaram-se durante a guerra dos Balcãs. O professor K. L. Schleich consignou vinte casos de cérebros humanos gravemente lesionados, sem alteração da personalidade humana; cérebros mutilados e, não obstante, com vida normal.”

Para responder a estes e outros casos análogos recorre-se à hipótese da dualidade cerebral, sustentada por Flourens, segundo a qual um hemisfério cerebral pode suprir as funções de outro. Esta hipótese psicofisiológica é aceita como um entre tantos recursos da psicologia chamada positiva, para dar-se uma explicação que satisfaça ao seu conceito materialista do homem, mesmo quando se ignore como se operam essas substituições ou a duplicidade de funções de um só hemisfério cerebral e ponha-se em aberta contradição com a hipótese das localizações cerebrais, a não ser que se considere cada hemisfério cerebral como um órgão completo e o homem como possuindo duas personalidades independentes e supletivas em suas respectivas consciências e funções.

Mas tal hipótese, não obstante o seu cientificismo, não explica os casos em que a quase totalidade (ou a totalidade em alguns casos) do cérebro se acha reduzida a pasta, convertida em massa purulenta ou hidrocéfala ou, como no primeiro caso citado pelo doutor Iturricha, o cérebro se acha separado do bulbo. Teria que se encontrar então outro recurso científico que explicasse, mesmo que hipoteticamente, esses factos, e este, à falta de outro mais positivo e satisfatório, encontrou-se na medula espinhal, que em tais casos desempenharia as funções psíquicas do cérebro.

Assim, vemos o materialismo batendo-se em retirada, cedendo terreno aos avanços do espiritualismo científico no que se refere a este e a outros aspectos do problema psicológico. Primeiro, sustentou, como um facto científico, experimentalmente demonstrado, que o pensamento é uma secreção do cérebro; portanto, que o espírito é a resultante do funcionamento cerebral; mais tarde, considerou-o como um complexo de sensações ou como a sucessão de estados de consciência formados pela elaboração e a associação dos centros sensitivos, receptores e motores, assinalando no córtex cerebral a sede das faculdades da alma ou, melhor dito, localizando os poderes do polipsiquismo funcional que, segundo os seus admiradores, dá-nos a ilusão de nossa individualidade psíquica; em consequência, destruindo-se um destes centros, ficava de facto suprimida a sua função. Assim, quando os factos demonstraram que a trepanação de uma parte do cérebro, ou a falta de um hemisfério cerebral não impedia em certos casos o funcionamento normal do espírito, e nem reduzia suas faculdades, formulou-se a hipótese de dualidade cerebral (na qual, diga-se de passagem, encontrou-se também um cómodo refúgio para explicar os casos de dupla personalidade, tais como o de Félida, estudada pelo doutor Azam) e, quando, por diversas causas, como nos casos citados, os dois hemisférios se tenham inutilizado ou destruído, diz-se que a medula espinhal pode desempenhar as funções do cérebro e, se acontecesse o caso de que também a medula estivesse afectada, não faltariam outros recursos tão científicos e positivos como os anteriores para querer explicar a existência do espírito pela existência e funcionamento do organismo: quer dizer, para negá-lo como entidade individual.

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(i) Do Inconsciente ao Consciente.
(ii) Frenologia: teoria que estuda o carácter e as funções intelectuais humanas com base na conformação do crânio. (N.T.)
(iii) Enciclopédia Internacional de Cirurgia, págs. 583-584, tomo V, de Asthurs. Tradução espanhola por D. Creus Y Manso, 1886.


Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (V), 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)

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