CAPÍTULO I
Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida
e da história ~
Que somos? (V)
No prazer como na dor, na tristeza ou alegria, no desejo ou
na paixão, na recordação como em todo trabalho da mente ou determinação da
vontade, o cérebro desenvolve uma função puramente fisiológica sob o
impulso e a direcção do espírito, que é a única força psíquica, activa
(consciente ou inconsciente), inteligente e volitiva que há no organismo
humano: sem ela o homem se reduz a um corpo; abandonado por ela é um cadáver.
Fácil é compreender como em um estado normal do ser humano (isto é, enquanto a
alma está estreitamente ligada ao organismo) toda função psíquica se desenvolve
dentro das vias normais, correspondendo a um aparelho sensorial determinado
que, nascendo da periferia, encontra nas zonas centrais do cérebro um centro
receptor e que todo o centro motor cortical, que actua como aparelho
transmissor com as suas fibras nervosas eferentes, sirva a sua correspondente
função motriz. Mas há casos (e estes já ninguém ignora) em que estas
vias naturais (ou melhor, ordinárias) não são indispensáveis aos fenómenos de
percepção, de transmissão e de motricidade e outros em que as localizações
cerebrais não parecem ser tão cerebrais e muito menos psíquicas, como postula a
psicofisiologia; mas estas localizações, como faz notar o doutor Gustave Geley, (i) parecem
ser mais anatómicas, ou melhor, aproximações aos verdadeiros centros
psíquicos que correspondem às faculdades do espírito, localizadas, por
assim dizer, no corpo etéreo ou perispiritual, que forma a estrutura íntima
sobre a qual se plasma o corpo somático e do qual este é só o revestimento.
O positivismo psicofisiológico pretende já ter conhecido definitivamente a alma
humana, fazendo dela uma espécie de mitologia psicológica, atribuindo a cada
centro cerebral uma função própria; tem lavrado o cérebro como quem lavra um
campo, atribuindo a cada fracção um poder psíquico determinado e ao cérebro a coordenação
automática desses poderes psíquicos, sem outra inteligência nem direcção, senão
a que resulta da inconsciência de cada um e que formam, por associação, o
chamado campo da consciência.
A hipótese frenológica (ii) de Gall,
sustentada por Broussais e Bouillaud, negadas pelas experiências e pela crítica
de Flourens, reafirmada por Broca, Charcot, Türck, Fritch, Hitzig e mais tarde
(1870 e 1875), respectivamente, por Ferrier e Bartholow, é considerada pela
psicologia empírica como um facto científico perfeitamente demonstrado, do
mesmo modo que a hipótese do paralelismo psicofisiológico; daí afirmar-se que
não pode existir função psíquica sem o seu correspondente centro nervoso, que a
determinada actividade psicológica corresponde determinada actividade dos
centros nervosos e que esta é sempre proporcional àquela. Como se vê, os feitos
acumulados pela moderna psicologia e muito especialmente os da Metapsíquica, deixam
malparadas estas hipóteses.
As localizações cerebrais têm no seu apoio factos que, não
sendo contraditos por outros tanto ou mais eloquentes, dariam ao positivismo
materialista uma razão, pelo menos hipotética, para seguir sustentando a sua
teoria psicofisiológica da alma. Nos traumatismos, uma leve lesão ou perda de
massa encefálica costuma ser acompanhada de perturbações mentais consideráveis
(como nas afecções produzidas por quistos), e nos casos de ablação, a extracção
de um tumor ou de uma parte do cérebro suprime uma função ou faculdade
psicológica. Sabe-se também que a privação de uma parte ou da quase
totalidade (em alguns casos) do cérebro não altera e menos suprime as funções
psíquicas correspondentes, nem reduz a personalidade. Os casos que se
seguem falam em favor desta afirmação.
Em 1886, o doutor Carlos B. Tancredi (iii) publicou
o seguinte caso estudado pelo doutor Harlow:
“Um homem de 35 anos de idade estava ocupado em apertar uma
broca de mina, quando a pólvora fez uma explosão: neste momento estava
inclinado para a frente, sobre o orifício, com o rosto ligeiramente virado; o
furador foi projectado de baixo para cima em direcção de seu maior eixo,
atravessando a cabeça e elevando-se no ar a bastante altura”. A ferida
era oblíqua “e atravessava o crânio em linha recta desde o ângulo da mandíbula
inferior ao centro do osso frontal, perto da sutura sagital por onde
saiu o ferro, que foi encontrado a alguns metros do ferido, coberto de sangue e
substância cerebral”. O furador em questão pesava 13,75 libras (cerca de 6,2
quilos), media 1,15 m de comprimento e 3 centímetros de diâmetro; a extremidade
que penetrou primeiro era pontiaguda, tendo a ponta 18 centímetros de extensão,
e em sua extremidade, 6 milímetros de diâmetro.
“Imediatamente depois da explosão, o ferido caiu de costas e
os seus membros se agitaram com movimentos convulsivos; mas não demorou em
falar e, transportado a um povoado vizinho, desceu por si mesmo do carro onde o
haviam colocado e com pouca ajuda pôde subir uma alta escada até a sala onde foi
atendido.”
“O ferido – disse o dr. Harlow – suportava os seus
sofrimentos com a mais heróica firmeza; parecia conservar toda a sua razão,
mas se abatia pela hemorragia – que era muito abundante, exterior e
interiormente: deglutia o sangue que vomitava a cada quinze ou vinte minutos, e
tanto o seu corpo, como a cama onde descansava, estavam inundados de sangue;
tinha 60 pulsações regulares. Acompanhado do dr. Williams, que foi o primeiro a
atender o ferido, procedi ao tratamento e examinando a ferida da frente vi que
haviam sido levantados fragmentos de osso e que o cérebro formava hérnia;
raspou-se-lhe a cabeça, foram retirados os coágulos e duas ou três lasquinhas
de osso de forma triangular, e para assegurar-me de que não existiam corpos
estranhos, passei todo o dedo indicador na direcção da ferida do rosto, na qual
o indicador da outra mão penetrava do mesmo modo. Uma porção do ângulo
ântero-superior de cada um dos parietais e uma porção semicircular do frontal
estavam fracturados, o que formava uma abertura de 8,5 centímetros de diâmetro,
aproximadamente...” Depois de haver levantado as lasquinhas, e um resto de
matéria cerebral, unido por uma espécie de pedúnculo, coloquei no seu lugar os
fragmentos mais importantes; juntei o quanto possível as partes soltas com
ajuda de tiras aglutinantes.
“O ferido curou-se sem apresentar paradas nem
alterações intelectuais e morreu dezanove anos depois do acidente.”
O doutor Destot cita três casos não menos assombrosos,
estudados por ele e confirmados pelos doutores Mollière, de Lyon, e Buch, de
Argel. Um dos casos refere-se a um menino de 12 anos de idade que ao cair de
uma escada fracturou o crânio num bico de gás de iluminação, e pela ferida
saiu-lhe a massa encefálica. Depois de um estado comatoso que durou dez
dias, reagiu, recobrando os sentidos e curando-se por completo.
O segundo caso refere-se a um pedreiro, vítima de um
terrível golpe que lhe provocou o salto da parte direita do frontal e
do hemisfério cerebral correspondente. O estado comatoso durou 15 dias; um
dia depois abriu os olhos, recobrou os sentidos e a sensibilidade.
Fabricou-se-lhe uma tampa para proteger a parte do cérebro que restava e poucos
dias depois recebeu a alta.
O terceiro caso é o de um árabe que apresentava uma ferida
na sobrancelha esquerda, da qual saia pus; depois de haver-lhe feito vários
curativos e quando parecia de todo curado, morreu repentinamente. Quando feita
a autópsia, verificou-se que uma sexta parte do cérebro estava destruída por
enorme abcesso, destruição que devia proceder de, pelo menos, três meses
atrás, sem haver causado incómodos ao enfermo, que até ao momento de morrer
atendera a suas ocupações habituais.
O doutor Gustave Geley,
na obra mencionada, resume casos dos quais, para maior esclarecimento,
mencionaremos alguns.
O primeiro refere-se a um facto apresentado pelo doutor
Hallopeau, em Julho de 1914, à Sociedade de Cirurgia, relacionado com a
operação de uma jovem no hospital Vecker, que caíra de um vagão. “Na
trepanação provou-se que uma porção de matéria cerebral se havia reduzido
literalmente a uma pasta. Limpou-se e drenou-se a ferida e a enferma
curou-se perfeitamente.”
O segundo foi apresentado à Academia de Ciências de Paris
pelo dr. A. Guepin, na sessão de 24 de Março de 1917, como uma contribuição ao
estudo desse tema; nela, menciona o citado doutor que: “Seu primeiro operado, o
soldado Luís R., na época jardineiro das imediações de Paris, não
obstante a perda de uma enorme parte de seu hemisfério cerebral esquerdo
(substância cortical, substância branca, núcleos centrais, etc.), continua
portando-se como uma pessoa normal, a despeito das lesões e da perda de
circunvoluções consideradas como base de funções essenciais.”
O dr. R. Robinson apresentou também à Academia de Ciências
de Paris, em 22 de Dezembro de 1913, por intermédio de seu presidente, Edmond
Perrier, o seguinte caso: um homem de 62 anos, ferido na região occipital,
viveu um ano sem sofrimento. Durante um mês esteve perfeito; mais tarde, quando
já havia esquecido o acidente, experimentou alguns distúrbios visuais e certo
decaimento na inteligência. Após um ano, uma crise epiléptica atacou-o e
levou-o à morte. Feita a autópsia, encontrou-se o cérebro reduzido a um
estado de pasta, contendo apenas matéria purulenta.
Ao final do Século 16, o dr. Taruto Lisboa, chamado o
Lusitano, publicou em seu livro Prática Médica, o seguinte caso:
“Um menino de 10 anos recebeu na parte posterior do crânio
uma enorme cutelada, que cortou o osso e a membrana cervical, atingindo
a massa encefálica. Contra todas as previsões e diagnósticos, o ferido
curou-se. Três anos depois, morria hidrocéfalo. Abriu-se o crânio e
não se encontrou cérebro. Entre as duas folhas da duramáter (uma das
membranas que envolvem o cérebro) apareceu um líquido límpido e bem cheiroso;
era coisa extraordinária. O menino havia vivido durante três anos sem cérebro,
com a plenitude de suas faculdades psíquicas.”
O dr. Agustin Iturricha, presidente da Sociedade
Antropológica de Sucre (Bolívia), em discurso pronunciado nessa instituição, em
sete de Agosto de 1916, fez referência a alguns casos análogos, entre os quais
se citam os dois seguintes:
“... Mas aqui há factos mais surpreendentes recolhidos na
clínica do dr. Nicolas Ortiz, que o dr. Domingo Guzmán teve a amabilidade de
comunicar-me. A fonte dessas observações não pode ser suspeita: emana de duas
altas personalidades do nosso mundo científico, de dois verdadeiros sábios.
O primeiro caso se refere a um jovem de 12 a 14
anos, morto em pleno uso de suas faculdades intelectuais, embora a sua
massa encefálica tenha sido completamente desprendida do bulbo, nas condições
de um homem realmente decapitado. Enorme deve ter sido a estupefacção dos clínicos
ao encontrar, no acto da autópsia, abrindo a cavidade craniana, as meninges
ensanguentadas e um grande abcesso que ocupava quase uma parte do
cérebro e a protuberância, sabendo, sem dúvida, que este jovem, alguns
instantes antes de morrer, pensava com vigor. Forçosamente, deveriam
perguntar-se: Como se concebe isto?
O terceiro caso da mesma clínica refere-se a um jovem
agricultor de 18 anos. A autópsia pôs a descoberto três abcessos do
tamanho de uma tangerina, ocupando cada um a parte posterior dos hemisférios
cerebrais e uma parte do cerebelo com comunicações recíprocas. Apesar
disso, o doente pensava como os demais homens.”
À parte destes factos, a revista La Idea, de
Buenos Aires, de Abril de 1933, traz o resumo de um artigo publicado em uma
revista alemã (Die Ubersennlique Welt), no qual se lê o seguinte:
“Hyrth, Hufeland e Hennemoser, professores de cirurgia médica, comprovaram que
a perda de partes sensíveis do cérebro não havia reduzido a capacidade de
pensar dos sujeitos examinados.
O professor Schmick recorda que Benecke referia aos
estudantes o seguinte facto: o célebre arquitecto berlinense Schinkel, normal
até o último minuto de sua vida, apresentou na autópsia enormes “vazios”
no cérebro. O professor Rein, de Jena, em conferência realizada em 1911,
citou o caso de um homem normal durante toda sua existência, apesar de grandes
alterações cerebrais. Várias comprovações desta categoria registaram-se durante
a guerra dos Balcãs. O professor K. L. Schleich consignou vinte casos de
cérebros humanos gravemente lesionados, sem alteração da personalidade humana;
cérebros mutilados e, não obstante, com vida normal.”
Para responder a estes e outros casos análogos recorre-se à hipótese
da dualidade cerebral, sustentada por Flourens, segundo a qual um
hemisfério cerebral pode suprir as funções de outro. Esta hipótese
psicofisiológica é aceita como um entre tantos recursos da psicologia chamada
positiva, para dar-se uma explicação que satisfaça ao seu conceito materialista
do homem, mesmo quando se ignore como se operam essas substituições ou a
duplicidade de funções de um só hemisfério cerebral e ponha-se em aberta
contradição com a hipótese das localizações cerebrais, a não ser
que se considere cada hemisfério cerebral como um órgão completo e o homem como
possuindo duas personalidades independentes e supletivas em suas respectivas
consciências e funções.
Mas tal hipótese, não obstante o seu cientificismo, não
explica os casos em que a quase totalidade (ou a totalidade em alguns casos) do
cérebro se acha reduzida a pasta, convertida em massa purulenta ou hidrocéfala
ou, como no primeiro caso citado pelo doutor Iturricha, o cérebro se acha
separado do bulbo. Teria que se encontrar então outro recurso
científico que explicasse, mesmo que hipoteticamente, esses factos, e este, à
falta de outro mais positivo e satisfatório, encontrou-se na medula espinhal,
que em tais casos desempenharia as funções psíquicas do cérebro.
Assim, vemos o materialismo batendo-se em retirada,
cedendo terreno aos avanços do espiritualismo científico no que se
refere a este e a outros aspectos do problema psicológico. Primeiro, sustentou,
como um facto científico, experimentalmente demonstrado, que o pensamento é uma
secreção do cérebro; portanto, que o espírito é a resultante do funcionamento
cerebral; mais tarde, considerou-o como um complexo de sensações ou como a
sucessão de estados de consciência formados pela elaboração e a associação dos
centros sensitivos, receptores e motores, assinalando no córtex cerebral a sede
das faculdades da alma ou, melhor dito, localizando os poderes do polipsiquismo
funcional que, segundo os seus admiradores, dá-nos a ilusão de nossa
individualidade psíquica; em consequência, destruindo-se um destes centros,
ficava de facto suprimida a sua função. Assim, quando os factos demonstraram
que a trepanação de uma parte do cérebro, ou a falta de um hemisfério cerebral
não impedia em certos casos o funcionamento normal do espírito, e nem reduzia
suas faculdades, formulou-se a hipótese de dualidade cerebral (na qual, diga-se
de passagem, encontrou-se também um cómodo refúgio para explicar os casos de
dupla personalidade, tais como o de Félida, estudada pelo doutor Azam) e,
quando, por diversas causas, como nos casos citados, os dois hemisférios se
tenham inutilizado ou destruído, diz-se que a medula espinhal pode desempenhar
as funções do cérebro e, se acontecesse o caso de que também a medula estivesse
afectada, não faltariam outros recursos tão científicos e positivos
como os anteriores para querer explicar a existência do espírito pela
existência e funcionamento do organismo: quer dizer, para negá-lo
como entidade individual.
/...
(i) Do Inconsciente ao Consciente.
(ii) Frenologia: teoria que estuda o carácter e as funções intelectuais
humanas com base na conformação do crânio. (N.T.)
(iii) Enciclopédia Internacional de Cirurgia, págs.
583-584, tomo V, de Asthurs. Tradução espanhola por D. Creus Y Manso, 1886.
Manuel
S. Porteiro, Espiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos
científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (V),
5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa)
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