quinta-feira, 7 de outubro de 2021

literatura do além-túmulo ~


Capítulo V 

No caso de que me vou ocupar, pode assinalar-se o primeiro passo decisivo no domínio supranormal, ainda que se fique muito perplexo quando se quer definir a verdadeira natureza da manifestação supranormal ocorrente. 

Quero falar do caso muito conhecido: “William Sharp-Fiona Macleod”, no qual se vê aparecer a misteriosa união de dois escritores, de carácter muito diferente, numa só pessoa. 

O crítico literário Sr. F. E. Leaning, que fez um estudo aprofundado do caso em questão, começa assim o seu artigo, aparecido no Light 1926, pág. 218: 

“Nos primeiros meses do ano de 1890, o mundo literário inglês foi agradavelmente surpreendido com a publicação de um romance e de uma colecção de versos que traziam o nome de Fiona Macleod. Embora esse nome fosse desconhecido de toda a gente, era evidente que se tratava de uma estrela de primeira grandeza que surgia no horizonte das letras. Foi o que, de facto, se deu e durante dez anos ela brilhou com um esplendor incomparável, fazendo as delícias dos amantes de uma literatura que se inspirava nas origens célticas. 

O sucesso incontestável dessa série de obras literárias, saturadas de estranho encanto, que prendia e entusiasmava os leitores, não devia surpreender, de tal modo estavam vivificadas por um “sal céltico”, espalhado às mãos cheias. A prosa continha mais poesia do que uma multidão de poetas poderia conceber. 

Foi assim que a obra de Fiona Macleod encantou os corações de uma geração inteira. O grande Meredith saudara a novel escritora como uma mulher de génio e, autores como Yeats e Russell acolheram-na como seu rival

Quando lhe pediram que lhes fornecesse algumas informações sobre a sua pessoa, disse ter nascido, há mil anos, de um pai chamado “Sonho” e, de uma mãe chamada “Romance”, numa residência situada lá onde o arco-íris conquista a sua forma

Naturalmente, o mistério de que se cercava a amável escritora fez com que diversas pessoas sonhassem com a fantasia e algumas mesmo chegaram até a adivinhar a verdade, mas estas foram logo neutralizadas pelo mais solene desmentido ou completamente reduzidas ao silêncio, desvendando-se-lhes o mistério, depois de se lhes ter feito jurar guardar segredo. Este foi, efectivamente, bem guardado até à morte do autor, que ocorreu em 1905. Foi então que o mundo literário ficou estupefacto e um zumbido de abelhas em enxames se formou em todas as revistas, quando se soube que a misteriosa mulher de letras, cheia de graça e de fantasia femininas, com a qual vários autores haviam cortejado de longe, era a mesma pessoa que o escritor e romancista William Sharp.” 

Tal é a descrição proveitosa na qual F. E. Leaning narra o sucesso literário triunfal da misteriosa Fiona Macleod, terminado com o desfecho que se acaba de ler. 

A viúva de William Sharp publicou um volume de memórias biográficas de seu marido, expondo os factos na sua crónica verdadeira e detalhada, com o fim de facilitar a tarefa dos psicólogos desejosos de analisar o caso. Soube-se, pelo volume em apreço, que ele percebia à sua volta companheiros de brincadeira invisíveis, via os “espíritos das árvores”, o “espírito da natureza” que lhe apareciam sob formas gigantescas ou anãs. 

Certo dia, teve a visão da “fada dos bosques”, sob o aspecto de uma mulher de grande beleza que ele chamou de “Olhos-de-estrela”. Tinha sete anos quando a viu pela primeira vez durante um dia quente de verão, erecta e esplêndida, no meio de flores campestres, de campânulas azuis. Tal encanto, tal amor, se desprendiam dos seus olhos que o menino se atirou nos braços dela. Encontraram-no, na relva, choroso e lamentoso, pedindo, apaixonadamente, para rever a bela dama de “cabelos-de-ouro-luminoso”. 

Disseram-lhe que ele tinha sido ofuscado pelo sol e que havia tido um belo sonho. Sharp acrescenta: “Não disse nada. Tranquilizei-me, mas não me esqueci da visão”. E quando o menino cresceu, quando se tornou escritor e romancista, “a fada dos bosques”, sob o nome de Fiona Macleod, interveio, ditando por “inspiração” romances e poemas saturados de graça feminina, de fantasias, de sonhos, de reminiscências célticas de há mil anos. Tal foi, pelo menos, a convicção profunda de William Sharp, que sofria, entretanto, momentos de incerteza, provenientes da circunstância de que era sujeito a emergências altamente sugestivas, de recordações pessoais de uma outra existência, vivida como mulher, o que o levava, por vezes, a identificar-se como Fiona Macleod

Na página 301 das Memórias em questão, a viúva fala, nos seguintes termos, das diferenças radicais existentes entre o modo de seu marido escrever quando personificava Fiona Macleod e o outro quando escrevia por sua própria conta: 

“Durante os anos em que Fiona Macleod desenvolveu, tão rapidamente, a sua própria personalidade, o seu colaborador experimentava a necessidade de sustentar, nos limites do possível, a reputação que havia adquirido na qualidade de William Sharp. Ele estava mesmo empenhado em não a perder, mas havia uma diferença radical entre as modalidades de produção dos dois géneros literários. Os escritos de Fiona Macleod eram a consequência de um impulso interior irresistível: ele escrevia porque era obrigado a exprimir o que lhe brotava do espírito, sem ser inquirido, pouco importando se isso lhe causava prazer ou tristeza. Quanto ao escritor William Sharp, ele produzia com modalidades diametralmente opostas às da sua personalidade gémea: escrevia porque havia decidido fazê-lo e polia cuidadosamente a forma do que escrevia. Finalmente, ele escrevia porque as necessidades da vida lhe impunham...” 

/... 


Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo V (1 de 2), 5º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence

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