No caso de que me vou
ocupar, pode assinalar-se o primeiro passo decisivo no domínio supranormal,
ainda que se fique muito perplexo quando se quer definir a verdadeira natureza
da manifestação supranormal ocorrente.
Quero falar do caso muito
conhecido: “William Sharp-Fiona Macleod”, no qual se vê aparecer a
misteriosa união de dois escritores, de carácter muito diferente, numa só
pessoa.
O crítico literário Sr.
F. E. Leaning, que fez um estudo aprofundado do caso em questão, começa assim o
seu artigo, aparecido no Light 1926, pág. 218:
“Nos primeiros meses do
ano de 1890, o mundo literário inglês foi agradavelmente surpreendido com a
publicação de um romance e de uma colecção de versos que traziam o nome
de Fiona Macleod. Embora esse nome fosse desconhecido de toda
a gente, era evidente que se tratava de uma estrela de primeira grandeza que
surgia no horizonte das letras. Foi o que, de facto, se deu e durante
dez anos ela brilhou com um esplendor incomparável, fazendo as delícias dos
amantes de uma literatura que se inspirava nas origens célticas.
O sucesso incontestável
dessa série de obras literárias, saturadas de estranho encanto, que
prendia e entusiasmava os leitores, não devia surpreender, de tal modo
estavam vivificadas por um “sal céltico”, espalhado às mãos cheias. A
prosa continha mais poesia do que uma multidão de poetas poderia conceber.
Foi assim que a obra
de Fiona Macleod encantou os corações de uma geração
inteira. O grande Meredith saudara a novel escritora como
uma mulher de génio e, autores como Yeats e Russell acolheram-na
como seu rival.
Quando lhe pediram que
lhes fornecesse algumas informações sobre a sua pessoa, disse ter nascido, há
mil anos, de um pai chamado “Sonho” e, de uma mãe chamada “Romance”, numa
residência situada lá onde o arco-íris conquista a sua forma.
Naturalmente, o mistério
de que se cercava a amável escritora fez com que diversas pessoas sonhassem com
a fantasia e algumas mesmo chegaram até a adivinhar a verdade, mas estas foram
logo neutralizadas pelo mais solene desmentido ou completamente reduzidas ao silêncio,
desvendando-se-lhes o mistério, depois de se lhes ter feito jurar guardar
segredo. Este foi, efectivamente, bem guardado até à morte do autor, que
ocorreu em 1905. Foi então que o mundo literário ficou estupefacto e um
zumbido de abelhas em enxames se formou em todas as revistas, quando se
soube que a misteriosa mulher de letras, cheia de graça e de fantasia
femininas, com a qual vários autores haviam cortejado de
longe, era a mesma pessoa que o escritor e romancista William
Sharp.”
Tal é a descrição
proveitosa na qual F. E. Leaning narra o sucesso literário triunfal da
misteriosa Fiona Macleod, terminado com o desfecho que se acaba de
ler.
A viúva de William
Sharp publicou um volume de memórias biográficas de seu marido,
expondo os factos na sua crónica verdadeira e detalhada, com o fim de facilitar
a tarefa dos psicólogos desejosos de analisar o caso. Soube-se, pelo volume em
apreço, que ele percebia à sua volta companheiros de brincadeira
invisíveis, via os “espíritos das árvores”, o “espírito da natureza” que
lhe apareciam sob formas gigantescas ou anãs.
Certo dia, teve a visão
da “fada dos bosques”, sob o aspecto de uma mulher de grande beleza que ele
chamou de “Olhos-de-estrela”. Tinha sete anos quando a viu pela primeira vez
durante um dia quente de verão, erecta e esplêndida, no meio de flores
campestres, de campânulas azuis. Tal encanto, tal amor, se desprendiam dos
seus olhos que o menino se atirou nos braços dela. Encontraram-no, na relva,
choroso e lamentoso, pedindo, apaixonadamente, para rever a bela dama de
“cabelos-de-ouro-luminoso”.
Disseram-lhe que ele
tinha sido ofuscado pelo sol e que havia tido um belo sonho. Sharp acrescenta:
“Não disse nada. Tranquilizei-me, mas não me esqueci da visão”. E quando o
menino cresceu, quando se tornou escritor e romancista, “a fada dos
bosques”, sob o nome de Fiona Macleod, interveio, ditando por “inspiração” romances
e poemas saturados de graça feminina, de fantasias, de sonhos, de
reminiscências célticas de há mil anos. Tal foi, pelo menos, a
convicção profunda de William
Sharp, que sofria, entretanto, momentos de incerteza, provenientes da
circunstância de que era sujeito a emergências altamente sugestivas, de
recordações pessoais de uma outra existência, vivida como mulher, o que o
levava, por vezes, a identificar-se como Fiona Macleod.
Na página 301 das Memórias em
questão, a viúva fala, nos seguintes termos, das diferenças radicais existentes
entre o modo de seu marido escrever quando personificava Fiona Macleod e o outro quando escrevia por sua
própria conta:
“Durante os anos em
que Fiona Macleod desenvolveu, tão rapidamente, a sua
própria personalidade, o seu colaborador experimentava a necessidade de
sustentar, nos limites do possível, a reputação que havia adquirido na
qualidade de William Sharp. Ele estava mesmo empenhado em não a
perder, mas havia uma diferença radical entre as modalidades de produção dos
dois géneros literários. Os escritos de Fiona Macleod eram a consequência de um impulso
interior irresistível: ele escrevia porque era obrigado a exprimir o que lhe
brotava do espírito, sem ser inquirido, pouco importando se isso lhe causava
prazer ou tristeza. Quanto ao escritor William
Sharp, ele produzia com modalidades diametralmente opostas às da sua personalidade
gémea: escrevia porque havia decidido fazê-lo e polia cuidadosamente a
forma do que escrevia. Finalmente, ele escrevia porque as necessidades da vida
lhe impunham...”
/...
(imagem de
contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel
de Edgard
Maxence)
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