Influência perniciosa das ideias materialistas |
SOBRE AS ARTES EM GERAL; A SUA REGENERAÇÃO POR MEIO DO
ESPIRITISMO |
Lê-se na secção “correio de Paris”, do Mundo
Ilustrado, de 19 de Dezembro de 1868:
“
Carmouche escreveu
mais de duzentas comédias e ‘vaudevilles’ e, quando muito, o nosso tempo apenas
lhe conhecerá o nome. É que a glória dramática, que tantas cobiças desperta, é
terrivelmente fugaz. A menos que um autor haja produzido excepcionais
obras-primas, está condenado a ver o seu nome cair no esquecimento, logo que
ele deixe de estar na berra. Mesmo durante o palco, a maioria lhe ignora a
existência. Com efeito, o público, quando lê o cartaz, apenas atenta ao título
da peça; pouco lhe importa o nome de quem a escreveu. Tente o leitor lembrar-se
de quem escreveu tal ou tal obra encantadora, cuja lembrança lhe ficou. Quase
sempre se encontrará na impossibilidade de referir esse nome. E quanto mais
avançarmos, tanto mais assim será, pois que
as preocupações de ordem material
cada vez mais se sobrepõem aos cuidados artísticos.
“Precisamente a esse propósito,
Carmouche contava
uma passagem típica. Conversando, dizia, com o meu alfarrabista, acerca do seu
comerciozinho, ele se manifestava assim: ‘Isto não vai mal, meu senhor, mas
modifica-se; os artigos que se vendem já não são os mesmos de antes. Outrora,
quando me surgia um rapaz de 18 anos, nove vezes em dez, era à procura de um
dicionário de rimas;
hoje, é para me pedir um manual das operações da
Bolsa’.”
As preocupações de ordem material se sobrepõem aos cuidados
artísticos; mas, como não ser assim, quando os maiores esforços se
fazem para concentrar todos os pensamentos do homem na vida carnal e para
destruir nele toda a esperança, toda a aspiração que ultrapasse essa
existência? É lógica, inevitável semelhante consequência para aquele que nada
vê fora do círculo estreito da efémera vida presente. Quando a criatura nada
percebe atrás de si, nada adiante de si, nada acima de si, em que pode ela
concentrar os seus pensamentos senão no ponto onde se encontra? O que
há de sublime na arte é a poesia do ideal, que nos transporta para fora da
esfera acanhada das nossas actividades. Mas, o ideal paira exactamente
nessa região extra material onde só se penetra pelo pensamento; que a vista
corporal não pode varar, mas que a imaginação concebe. Ora, que inspiração pode
o Espírito haurir da ideia do nada?
O pintor que unicamente houvesse visto o céu brumoso, as
estepes áridas e monótonas da Sibéria e que julgasse estar ali todo o Universo,
poderia conceber e descrever o brilho e a riqueza dos tons da natureza
tropical? Como querereis que os vossos artistas e os vossos poetas vos
transportem a regiões que eles não vêem com os olhos da alma, que não
compreendem e nas quais nem mesmo acreditam?
O Espírito somente pode identificar-se com o que
sabe ou crê ser a verdade e essa verdade, embora de ordem moral, se lhe torna
uma realidade que tanto melhor ele exprime, quanto melhor a sente. Se à
inteligência da coisa junta a flexibilidade do talento, faz que as suas
próprias impressões se transmitam às almas dos outros. Mas, que impressões pode
provocar nos outros aquele que não as tem?
Para o materialista, a realidade é a Terra; o seu corpo é
tudo, pois que, além dele, nada mais há, visto que a sua própria mente se
extingue com a desorganização da matéria, como o fogo com o combustível. Não
pode, portanto, com a linguagem da arte, exprimir senão o que vê e sente. Ora,
se ele só vê e sente a matéria tangível, unicamente isso lhe é possível
exprimir. Nada pode haurir de onde apenas vê o vazio. Se se aventura por um
mundo que desconhece, entra aí como cego e, malgrado os esforços que empregue
para elevar-se ao diapasão do idealismo, fica no terra-a-terra, como um pássaro
sem asas.
A decadência das artes, neste século, resultou
inevitavelmente da concentração dos pensamentos sobre as coisas materiais,
concentração essa que, a seu turno, é o resultado da ausência de toda crença,
de toda a fé na espiritualidade do ser. O século apenas colhe o que
semeou. Quem semeia pedras não pode colher frutos. As artes não
sairão do torpor em que jazem, senão por meio de uma reacção no sentido das
ideias espiritualistas.
Como poderiam o pintor, o poeta, o literato, o músico ligar
os seus nomes a obras duráveis, quando, na sua maioria, eles próprios não crêem
no futuro de seus trabalhos; quando não se apercebem de que a lei do
progresso, força invencível que arrasta os Universos pela estrada do infinito,
lhes pede mais do que descoradas cópias das criações magistrais dos artistas
dos tempos idos! Toda a gente se lembra dos Fídias, dos Apeles, dos Rafael, dos Michelangelo,
luminosos faróis que se destacam da obscuridade dos séculos transcorridos, como
fúlgidas estrelas no meio de profundas trevas; mas, quem se lembrará de notar o
claror de uma lâmpada a lutar contra o brilho do Sol de um dia de verão?
O mundo caminhou a passos gigantescos desde os tempos
históricos; os filósofos dos povos primitivos gradualmente se transformaram. As
artes que se apoiam nas filosofias que lhes são a consagração idealizada,
também tiveram que se modificar e transformar. É matematicamente
certo dizer-se que, sem crença, as artes carecem de vitalidade e que toda a
transformação filosófica acarreta necessariamente uma transformação artística
paralela.
Em todas as épocas de transformação, as artes periclitam, porque
a crença em que se estribam não basta às aspirações engrandecidas da Humanidade e
porque, não estando ainda adoptadas pela grande maioria dos homens os novos
princípios, os artistas não ousam explorar, senão de modo hesitante, a mina
desconhecida que se lhes abre aos pés.
Durante as épocas primitivas, em que os homens unicamente
conheciam a vida material, em que a Filosofia divinizava a natureza, a Arte
buscou, antes de tudo, a perfeição da forma. A beleza corporal era, então, a
qualidade capital; a arte se aplicou em a reproduzir e idealizar. Mais tarde, a
Filosofia enveredou por nova senda; os homens, progredindo, reconheceram que
acima da matéria havia uma potência criadora e organizadora, que recompensava
os bons, punia os maus e fazia da caridade uma lei. Um mundo novo, o mundo
moral se edificou sobre as ruínas do mundo antigo. Dessa transformação nasceu
uma arte nova que fez palpitasse a alma sob a forma e junto à percepção
plástica a expressão de sentimentos que os antigos desconheceram.
A ideia viveu sob a matéria; mas revestiu as formas severas
da Filosofia em que a arte se inspirava. Às tragédias de
Ésquilo, aos mármores de
Milo, sucederam as
descrições e as pinturas das torturas físicas e morais dos réprobos. A arte se
elevou; revestiu carácter grandioso e sublime, porém ainda sombrio. Ela está
toda, com efeito, na pintura do inferno e do céu da Idade Média, na de
sofrimentos eternos,
ou de uma beatitude muito distante, colocada tão
alto, que nos parece quase inacessível; é talvez por isso que ela nos toca
tão pouco, quando a vemos reproduzida na tela ou no mármore.
Também hoje, ninguém ousaria contestá-lo, o mundo está num
período de transição, solicitado violentamente por hábitos obsoletos, crenças
precárias do passado e verdades novas, que lhe são progressivamente
desvendadas.
Assim como a arte cristã sucedeu à arte pagã,
transformando-a, a arte espírita será o complemento e a transformação da arte
cristã. O Espiritismo,
efectivamente, nos mostra o porvir sob uma luz nova e mais ao nosso alcance.
Por ele, a felicidade está mais perto de nós, está ao nosso lado, nos
Espíritos que nos cercam e que jamais deixaram de estar em relação connosco.
A morada dos eleitos, a dos condenados já não se encontram insuladas; há
incessante solidariedade entre o céu e a Terra, entre todos os mundos de todos
os Universos; a ventura consiste no amor mútuo de todas as criaturas
que chegam à perfeição e numa constante actividade, com o objectivo de instruir
e conduzir àquela mesma perfeição os que se tornaram retardatários. O
inferno está no próprio coração do culpado, que tem nos remorsos o seu castigo,
não mais, todavia, eterno, e ao mau, que toma o caminho do arrependimento, se
depara de novo a esperança, sublime consolação dos desgraçados.
Que inesgotáveis fontes de inspiração para a arte! Que
obras-primas de todos os géneros as novas ideias suscitarão, pela reprodução
das cenas tão multiplicadas e várias da vida espírita! Em vez de representar
despojos frios e inanimados, ver-se-á uma mãe tendo ao lado a filha querida em
sua forma radiosa e etérea; a vítima a perdoar ao seu algoz; o criminoso a
fugir em vão ao espectáculo, de contínuo renascimento, de suas acções culposas!
o insulamento do egoísta e do orgulhoso, no meio da multidão; a perturbação do
Espírito que volve à vida espiritual, etc., etc. E, se o artista quiser
elevar-se acima da esfera terrestre, aos mundos superiores, verdadeiros Edens
onde os Espíritos adiantados gozam da felicidade que conquistaram, ou, se
desejar reproduzir alguns aspectos dos mundos inferiores, verdadeiros infernos
onde reinam soberanamente as paixões, que cenas emocionantes, que quadros
palpitantes de interesse se lhe depararão!
Sem dúvida, o
Espiritismo abre à
arte um campo inteiramente novo, imenso e ainda inexplorado. Quando o artista
houver de reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as
mais sublimes inspirações e o seu nome viverá nos séculos vindouros,
porque,
às preocupações de ordem material e efémeras da vida presente, sobreporá
o estado da vida futura e eterna da alma.
/…
ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Influência
perniciosa das ideias materialistas, SOBRE AS ARTES EM GERAL; A SUA REGENERAÇÃO
POR MEIO DO ESPIRITISMO, 5º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela,
de Noêmia Guerra)