sexta-feira, 29 de março de 2019

O peregrino sobre o mar de névoa ~

Natureza Moral da Terapia Espírita (II)

Há pessoas que usam a terapia espírita como autógena (i), entregando-se à prece, sem procurar o socorro de médiuns.

Esse é um aspecto pouco conhecido da terapia espírita.

As pessoas que recorrem a esse processo não o fazem por auto-suficiência, mas por estarem submetidas a viciações ou perversões de que se envergonham.

Conhecemos casos de homossexualidade masculina e feminina que foram assim auto-curados. Não se trata propriamente de uma auto-cura, pois a terapia espírita foi realizada pelos espíritos e não por elas mesmas. Essas vítimas, conhecendo a doutrina, cultivaram a fé racional e conseguiram impor a si mesmas disciplinas curadoras a que se apegaram com firmeza e constância.

Os que perseveram nas suas boas intenções criam condições favoráveis à acção curadora dos espíritos terapeutas.

É emocionante o caso de um rapaz de família exemplar que esteve à beira do suicídio.

Foi salvo por uma voz que lhe soou na mente dizendo:

“Deus me permitiu anunciar-te a hora da libertação. Daqui por diante não sentirás mais os impulsos negativos que te torturavam. Esgotaste perante a Espiritualidade Superior um passado de ignomínias (i).”

Não foi um caso de auto-sugestão, mas de perseverança na prova, como depois lhe explicou a entidade protectora que lhe falara em particular, dizendo então pela boca de um médium que não o conhecia e nada sabia do seu sofrimento oculto.

Nos casos como estes revela-se a importância da vontade do paciente, como acontece na terapêutica em geral. Numa batalha oculta como a deste jovem intervêm influências de entidades vingativas, que podem levá-lo ao desespero, mas, em contrapartida, há sempre assistência de espíritos amigos, cuja acção se torna mais poderosa quando o paciente desperta as suas potencialidades volitivas e decide o seu destino por si mesmo. Firmado no seu direito de escolha e amparado pelas energias da vontade e os estímulos da consciência de sua dignidade humana, o espírito pode superar as provas mais desesperantes e triunfar sobre as suas tendências inferiores provenientes do submundo da animalidade. Por isso a terapêutica espírita condena e repele a capitulação actual da psiquiatria da libertinagem.

A condenação hipócrita do sexo pelas religiões cristãs sobrecarregou de preceitos e ordenações morais que fomentaram por toda a parte o fingimento e a hipocrisia. As tentativas cruéis de abafar o instinto sexual através de um moralismo ilógico, como o da era vitoriana na Inglaterra, prepararam a explosão sexualista da actualidade, com o rompimento explosivo dos diques e açudes tradicionais. Todos os moralistas condenaram veementemente o pan-sexualismo de Freud, como se ele tivesse culpa de só encontrar, nos traumatismos espantosos do consultório, a violência da libido, dominadora oculta de uma civilização em ruínas. A loucura de Hitler e dos seus comparsas recalcados e homossexuais, bem como a megalomania ridícula e exibicionista de Mussolini, não surgiram das heranças bárbaras, mas do pietismo castrador do medievalismo. O histerismo nazi, ligando-se ao exibicionismo fascista e à necrofilia nipónica, resultaram na formação do Eixo e na explosão da Segunda Conflagração Mundial. Foi uma explosão de recalques. Até mesmo os signos sexuais estavam presentes no sigma nazi, no fascio de Mussolini e no sol nascente de Hiroíto. Veio depois, confirmando esse conluio libidinoso, em que floresceu desavergonhado o homossexualismo germânico. Era evidente que viria depois a era pornográfica em que nos encontramos. Marcuse diagnosticou o mal da civilização, mas não foi capaz de lhe propor a solução conveniente, que aos poucos se vai delineando numa volta penosa ao reconhecimento da naturalidade do sexo, sem os excessos e desmandos da actualidade, em que a contribuição russa aparece com a mística libidinosa de Rasputin.

Historicamente, pesa sobre a figura angustiada de Paulo de Tarso a responsabilidade dessa tragédia mundial. Porque foi ele, o Apóstolo dos Gentios, quem implantou nas comunidades nascentes do Cristianismo Primitivo as leis de pureza do Judaísmo farisaico, tantas vezes condenadas por Cristo. O seu zelo pelo Cristianismo chegou ao excesso de deformá-lo, na luta que teve de enfrentar com a libertinagem do paganismo. Armou a dialéctica histórica da tese pagã contra a antítese cristã-judaica, que resultou na síntese da hipocrisia clerical. Aldous Huxley colocou este problema nos seus livros Os Demónios de Loudan e O Génio e a Deusa.

Kardec já havia antecipado, nos meados do século passado, as convulsões morais que abalariam o mundo a partir da Guerra do Piemonte. Previu a sucessão de guerras e revoluções que se desencadeariam, com surpreendentes transformações sociais, políticas e culturais em todo o mundo, acentuando que não eram catástrofes geológicas, que aconteceriam naturalmente, como sempre acontecem, mas catástrofes morais que abalariam as nações aparentemente mais seguras nas suas tradições. E o remédio indicado para a reconstrução do mundo seria a educação das novas gerações, nos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, o lema da Revolução Francesa que ressurgiria com o restabelecimento ou a ressurreição do Cristianismo de Cristo e não dos seus vigários, como anunciaria também o Padre Alta (*), Doutor da Sorbonne, suspenso das ordens pelas suas ideias perigosas.

/…
(*) Também, (CEFi, Centro de Estudos de Filosofia, José Eduardo Franco / Padre Sena Freitas / John Lancaster Spalding). Nota desta publicação.

José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, 3 Natureza Moral da Terapia Espírita 2 de 3, 9º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)
(BrucknerSinfonia n. 3 (versão 1889), hr-Sinfonieorchester / Frankfurt Radio Symphony Orchestra, sobre a direcção de Paavo Järvi / Wiesbaden, Kurhaus 2013)

domingo, 10 de março de 2019

pensamento e vontade ~


~~~ formas do pensamento ~
(III)

No livro recente de H. D. Bradley, Towards the Stars, encontram-se declarações idênticas, provenientes de personalidades mediúnicas, através dos célebres médiuns Srs. Osborne LeonardTravers-Smith.

Eis, por exemplo, o que diz a personalidade mediúnica de “Johannes”, pelo médium Leonard:

“É-me necessário, em primeiro lugar, explicar-lhe em que consistem os fantasmas em questão. São fantasmas do vosso cérebro. Não são espírito nem matéria. Consistem num elemento da actividade intelectual, que deixou atrás dela a sua impressão. Só os possuidores de faculdades psíquicas muito desenvolvidas podem perceber essas “formas-pensamento”.

Perguntas-me porque alguns desses fantasmas se formam em determinados meios e não noutros, onde seria mais lógica a sua aparição. É que o fenómeno depende da intensa vitalidade da ideia geratriz. Uma prisão, um manicómio, são indubitavelmente os ambientes menos susceptíveis de assombramentos, porque também mais desertos de esperança e de actividades vitais. É muito mais provável, portanto, que o fantasma de um assassino assombre o local do seu crime do que o da sua execução quando condenado pela justiça humana.” (Pág. 272).

E Astor, o Espírito-guia de Travers-Smith, adverte por sua vez:

“Os fantasmas, isto é, as “formas-pensamento”, aparecem às vezes espontaneamente, devido a emoções terríveis, conjugadas com o pavor que lhes causam os elementos necessários à sua exteriorização. Assim se compreende não seja a Torre de Londres um lugar assombrado. Tendo sido um presídio, parece-me, vale por um ambiente no qual a mentalidade dos encarcerados se tornava obtusa, devido à triste monotonia da própria condição, desprovida de qualquer sentimento emocional ou passional, ou seja, assim um estado de desesperação resignada. E o desespero não é elemento propício à formação de fantasmas.”

Antes de passar a outro assunto, vou ainda relatar um episódio cuja interpretação é, antes de tudo, embaraçante.

O Sr. Joseph Briggs publicou a acta de uma sessão realizada em sua casa, com a famosa médium Sra. Everitt, pessoa rica, que apenas trabalhava por amor à causa.

Omito as manifestações obtidas, para só tratar do que nos interessa. Diz o narrador:

“Notável incidente veio misturar-se às manifestações, quando um dos assistentes, o Sr. Aron Wilkinson, dotado de clarividência, exclamou de repente: “Um papagaio pousa-me no ombro e agita as asas... Agora, voou sobre a Sra. Everitt...” (A Sra. Everitt estava sentada do outro lado da mesa).

Ela diz, por sua vez, estar a sentir o contacto da ave.

Wilkinson continua: “Agora o papagaio canta o God Save the Queen (o hino real). Agita novamente as asas, sobe, ei-lo que se foi”.

Episódio incompreensível para todos, menos para a Sra. Everitt, que logo o explicou, contando que havia meses se incumbia de guardar um papagaio, que muito se lhe afeiçoara.

Ainda na véspera recebera de sua casa uma carta, na qual lhe informavam que o bicho aprendia rapidamente a cantar o hino real.

Todos os presentes ignoravam o facto e há a considerar que a Sra. Everitt reside numa província distante.

Este incidente é único no rol de minhas experiências.” (Light, 1903, pág. 492).

Não há dúvida de que o episódio em apreço se explica por um fenómeno de objectivação do pensamento subconsciente da Sra. Everitt.

A circunstância de haver na véspera recebido uma carta, em que se lhe informara que o papagaio aprendera a cantar o hino a que aludira o clarividente Wilkinson, não serve senão para demonstrá-lo ulteriormente.

Não obstante, a descrição do vidente, combinada com a afirmativa do médium, de lhe haver sentido o contacto, tenderia a provar a presença de uma materialização da imagem de um papagaio, e não da mera objectivação de uma “forma fluídica de pensamento”.

E isto é ainda mais verosímil se considerarmos que a Sra. Everitt possuía notáveis faculdades de materialização.

Assim sendo, esse episódio pertenceria à categoria dos fenómenos de ideoplastia, de que nos vamos ocupar mais adiante.

Se se tratasse realmente da materialização de imagem subconsciente, dever-se-ia, contudo, notar uma circunstância primariamente excepcional: a de serem as materializações do pensamento, com raras excepções, constantemente “plásticas”, ou seja, “inanimadas”, ao passo que, no caso vertente, o papagaio materializado teria voltejado pela sala, como se fora um ser vivente.

Sem embargo, poder-se-ia sustentar que o facto também pode ser explicado pela acção da vontade subconsciente do médium, que poderia ter agido à distância sobre a sua própria criação ectoplásmica, determinando-lhe os movimentos.

Termino a segunda parte desta obra, advertindo que, até aqui, não se cogitou senão de modalidades de “objectivação de pensamento” que não fossem susceptíveis de demonstração experimental, propriamente dita.

Doravante, porém, as nossas pesquisas se prenderão a duas categorias de factos, graças aos quais atingimos a prova experimental científica da existência incontestável de uma projecção objectivada das “formas-pensamento”, observadas pelos videntes.

Assim, constataremos ao mesmo tempo a existência provável de uma projecção objectivada do pensamento, seja nos casos alucinatórios provocados por sugestão hipnótica, seja nos de alucinação espontânea ou voluntária entre os artistas e, em geral, nas alucinações patológicas propriamente ditas. (*)

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(*) Na sua obra Libertação (psicografia de Francisco Cândido Xavier), o espírito André Luiz narra interessantes episódios desse género. (N.E.).


Ernesto BozzanoPensamento e Vontade – Formas do pensamento 3 de 3, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Female Saint_1941, pintura de Edgard Maxence)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Alfred Russel Wallace e o Sobrenatural ~

VIII ~ A TEORIA ESPIRITUALISTA ~

Sem dúvida que muitos dos meus leitores se irão sentir incomodados com os fenómenos estranhos e aparentemente sobrenaturais aqui trazidos ao conhecimento. Eles irão exigir que, se realmente devam ser aceites como factos, deve ser demonstrado que formam uma parte do sistema do universo ou pelo menos devem ser colocados sob algumas hipóteses plausíveis.

Há uma hipótese – velha no seu princípio fundamental, nova em muitos dos seus detalhes – que agrupa todos estes fenómenos como uma parte da natureza, até ao momento completamente ignorados pela ciência e talvez vagamente especulados pela filosofia, tratando-os sem qualquer conflito com a ciência mais avançada e a mais alta filosofia. De acordo com esta hipótese, o que, na falta de um nome melhor, chamaremos de espírito é a parte essencial de todos os seres sensíveis, cujos corpos não são mais que máquinas e instrumentos por meio dos quais ele age sobre os outros seres e a matéria. É o espírito que sente, sozinho, e percebe, e pensa – adquire conhecimento, e raciocina, e anseia –, embora só possa fazê-lo, por meio do organismo e, na exacta proporção em que este esteja ligado àquele. O homem é o espírito do homem. E o espírito é a mente. O cérebro e os nervos não são mais que a bateria magnética e o telégrafo por meio dos quais o espírito se comunica com o mundo exterior.

Embora o espírito seja em geral inseparável do corpo vivente que lhe fornece a vida animal e intelectual (para as funções vegetativas do organismo, poderia, eventualmente, prosseguir sem espírito), acontece, não raramente, haver indivíduos de tal forma constituídos que o espírito pode perceber sem o auxílio dos órgãos normais dos sentidos, ou hipoteticamente deixar total ou parcialmente o corpo por algum tempo e retornar a ele novamente. Na morte, ele abandona o corpo para sempre. O espírito, assim como o corpo, possui leis e limites definidos para as suas capacidades. Ele comunica-se com espíritos mais facilmente que com a matéria e em muitos casos só pode perceber a matéria e agir nela por meio de um médium, que é um espírito encarnado. O espírito que viveu e desenvolveu as suas capacidades vestido com um corpo humano continuará mantendo o seu modo de pensar quando deixar o corpo, os seus gostos anteriores, os seus sentimentos e afeições. O novo estado de existência é uma continuação natural do antigo. Não há nenhuma súbita aquisição de novas inclinações mentais, nenhuma revolução da natureza moral. Aquilo que o espírito encarnado fez de si ou se tornou, é o espírito desencarnado no começo de sua vida sob novas condições. Ele possui o mesmo carácter de antes mas adquiriu novas capacidades físicas e mentais, novos modos de manifestar os sentimentos morais, capacidade mais ampla para adquirir conhecimento físico e espiritual. A grande lei de ‘continuidade’ tão habilmente mostrada por falta por Sir William Groves na sua campanha para a presidência da Associação Britânica em Nottingham, permeia todo o domínio da natureza e esta, pois de acordo com a teoria espiritualista, amplamente aplicável às nossas passagens e ao progresso em direcção a um estado mais avançado da existência – uma visão que deveria ser recomendada aos homens de ciência como sendo provável em si e, em formidável contraste com as doutrinas dos teólogos, que colocam um grande golfo entre a natureza mental e as demais naturezas humanas no seu presente e no seu futuro estado de existência.

Esta hipótese, considerada uma mera especulação, é tão coerente e inteligível quanto pode ser qualquer especulação sobre qualquer assunto. Mas ela exige ser considerada como algo mais que uma especulação, já que serve para explicar e interpretar aquele vasto conjunto de factos dos quais apenas alguns poucos exemplos foram dados aqui e fornece sobre o estado futuro do homem, uma teoria mais inteligível, consistente e harmoniosa que qualquer religião ou filosofia já ofereceu.

Primeiramente, vamos à interpretação dos factos. Nos mais simples fenómenos do magnetismo animal, quando os músculos, os sentidos e as ideias dos pacientes estão sujeitos ao desejo do operador, o espírito age sobre o espírito, com a intermediação de uma peculiar relação entre a capacidade magnética ou biológica (*) dos dois organismos. Então o magnetizador é habilitado, à sua vontade, a afectar a mente e o corpo do paciente e induzir nele, por alguns instantes, um mundo imaginário. Nos fenómenos maiores de ‘clarividência simples’, o espírito parece estar, de alguma forma, liberto dos laços do corpo e pode perceber por outros meios além dos cinco sentidos. No estado ainda maior de clarividência denominado ‘viagens mentais’, (**) o espírito parece deixar o corpo (ainda ligado a ele, contudo, por uma ligação etérea); percorrer alguma distância pelo planeta, comunicando-se com pessoas em países remotos quando haja algum indício pelo qual se possa distingui-lo; (com a mediação de seu organismo) perceber e descrever eventos que estão acontecendo à sua volta.''

Sob certas condições, o espírito fora do corpo é capaz de formar para si mesmo um corpo visível a partir das emanações de corpos vivos numa relação magnética consigo e, em condições ainda mais favoráveis, este corpo pode tornar-se tangível. Desta forma, todos os fenómenos de mediunidade acontecem. A gravidade é superada por uma forma de magnetismo biológico, induzido pelo espírito sobre o médium. Mãos visíveis ou corpos visíveis são produzidos, algumas vezes escrevem, ou desenham, ou até falam. Desta maneira, amigos que partiram vêm se comunicar com os que continuam vivos ou, no momento da morte, o espírito aparece visivelmente, algumas vezes de forma tangível, aos seres amados de uma terra distante. Todos estes fenómenos aconteceriam com maior frequência se as condições que permitem as comunicações fossem mais cultivadas.

Parece, então, que todos os factos estranhos, denominados assim porque são considerados ‘sobrenaturais’, podem ser creditados à actuação de seres de uma natureza mental semelhante à nossa – que são, de facto, como nós somos –, mas um passo à frente na longa jornada através da eternidade. A natureza trivial e fantástica dos actos de alguns destes espíritos incorpóreos não deve causar espanto, quando consideramos a miríade de seres humanos fantásticos e triviais que estão diariamente se transformando em espíritos e que mantêm, pelo menos por algum tempo, a sua natureza humana numa nova condição. Mas a natureza geralmente trivial dos actos e comunicações dos espíritos (admitindo-os como tal) pode ser totalmente refutada. Se nós víssemos duas ou três pessoas fazendo gestos estranhos em perfeito silêncio, provavelmente pensaríamos que elas deveriam ser idiotas; mas se nós descobrimos que dois deles são surdos-mudos, e que os três estão conversando na linguagem dos sinais, nós nos consciencializamos de que a gesticulação dos seus corpos não seria mais intrinsecamente absurda que os movimentos de nossos lábios e da nossa face durante a fala. Então, se sabemos que os espíritos só se podem comunicar connosco de forma muito limitada, nós veremos que a ‘trivialidade’ consiste na desaprovação de qualquer forma de conversa mental por considerá-la trivial ou indigna. Então, de novo, como geralmente se diz que os assuntos das comunicações são "indignos de um espírito", a questão real é se eles são de tal forma indignos, como seriam se o mesmo espírito estivesse no corpo? Devemos também nos lembrar de que, na maioria dos casos, o espírito precisa primeiro satisfazer o seu inquiridor sobre a sua existência e em muitos casos tem de o fazer frente a um forte preconceito contra a possibilidade da comunicação dos espíritos ou até mesmo da existência dos espíritos. O facto indubitável de que milhares de pessoas têm sido de tal forma convencidas pelos fenómenos que elas testemunharam na presença de médiuns mostra que, embora possam ser triviais, estes fenómenos são apropriados para satisfazer a muitas mentes e então levá-las a aceitar e a inquirir os fenómenos de mais elevado grau, aos quais, de outra forma, jamais poderiam ter sido levadas a examinar.

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(*) – Nota do tradutor: Wallace está a referir-se ao conceito do magnetismo animal de Mesmer.
(**)  Nota do tradutor: Denominado por kardec de ‘mediunidade sonambúlica’ e, pela influência da obra de Aksakof e Bozzano, como desdobramento.


Alfred Russel WallaceO Aspecto Científico Sobrenatural, VIII – A TEORIA ESPIRITUALISTA (1 de 2), 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)

sábado, 5 de janeiro de 2019

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~

A Irlanda (II)

Duas figuras notáveis e nobres se destacam da multidão de poetas e escritores irlandeses do nosso tempo. Porque é uma verdadeira multidão que um subtil escritor, Simone Téry, passa em revista, no seu consciencioso e cativante estudo sobre o movimento literário da Irlanda.

Destas duas grandes figuras, uma é a de William Butler Yeats (1865-1939; Prémio Nobel em 1923), que é considerado o chefe da renascença das letras irlandesas e o maior poeta da língua inglesa do nosso tempo. “Penetrado de influências gaélicas, ele obtém a sua inspiração nas antigas fontes nacionais, exprime a alma nostálgica e apaixonada da Irlanda.”

Tendo entrado na intimidade do grande poeta, Simone Téry o define de um modo original:

“Yeats e a sua esposa, como tantos irlandeses, são adeptos das ciências ocultas. Essas pessoas se relacionam com espíritos e fantasmas, como se tivessem velhos conhecimentos. Eles se dedicam, curiosamente, aos abismos do desconhecido, eles se movem encantados no meio dos fenómenos misteriosos dos quais nós nos desviamos, porque fugimos daquilo que não compreendemos. A sua musa, porque é celta, gosta de se envolver em véus. Toda a obra de Yeats é cheia de um vago misticismo; ela tem uma inclinação inspirada na teosofia e nas ciências ocultas.”

Outro escritor, de muito talento, também, exerce uma influência não menos importante sobre o seu país – Georges Russell (1867-1935) – considerado a “consciência da Irlanda”, e que Simone Téry nos apresenta nestes termos:

“Tendo por ascendência uma personalidade magnética, uma vida pura, uma alma perfeita, Russel reuniu à sua volta tudo o que havia de inteligente e de nobre na Irlanda, multiplicou a inspiração de todos e lhes comunicou a sua chama.

O misticismo de Yeats é mais poéticoinstintivo; o de Russel, conscientereflectido. Das vagas aspirações sentimentais da raça celta perante o desconhecido, o mistério do mundo, Russel fez uma filosofia, um princípio de acção.

Ele também é um adepto das ciências ocultas, mas, cada vez que o interrogam sobre as suas relações com o invisível, mostra-se cheio de discrição. Quando o pressionam, diz somente: “O que eu sei é pouca coisa; descobri que a consciência pode existir fora do corpo, que se pode, às vezes, ver entidades que estão muito longe, que se pode mesmo falar com elas a centenas de quilómetros: já falaram comigo dessa maneira. Sei, por experiência, que os seres sem corpos físicos podem agir sobre nós profundamente. Um deles lançou-me fluidos vitais e, enquanto isso durou, me parecia ser chicoteado com electricidade. Estou convencido de que me recordo das vidas passadas, e conversei com amigos que se lembram igualmente: nós até temos falado, juntos, dos lugares onde tínhamos vivido. Também vi seres elementares e os observei acompanhado com aqueles que foram meus companheiros de descoberta...” (i)

A obra de Russel é rica de fugas para o infinito e para o Além. É assim que ele escreve no cabeçalho de seu primeiro livro, Para a Pátria:

“Eu sei que sou um espírito e que parti outrora do “eu” ancestral para tarefas ainda não acabadas, mas sempre repletas da nostalgia do país natal.” – e afirma as vidas sucessivas, “que são várias etapas que conduzem à sabedoria, à purificação na essência divina.”

Além destes dois escritores, Yeats e G. Russel, justamente célebres, poderíamos acrescentar um grande número de outros menos conhecidos, visto que a literatura da Irlanda é uma das mais ricas da Europa, pela variedade e pelo valor das obras que a compõem. Ela exprime com uma sensibilidade encantadora, ao mesmo tampo que com uma grande força, as aspirações, os sonhos, as alegrias e as angústias da alma céltica.

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(i) S. Téry, L’Ile des Bardes, p. 113. (N.O.F.)


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO II – A Irlanda 2 de 3, 9º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, OssianDesaixKléberMarceauHocheChampionnet, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

sábado, 22 de dezembro de 2018

O Espiritismo na Arte ~

Parte II

Quarta lição, de O Esteta

(Inspiração nos tempos modernos, Inspiração científica e inspiração idealista. Inspiração, forma que concretiza a arte)

|5 de Dezembro de 1921|

“Vamos falar da inspiração nos tempos modernos. Vós ides compreender que há três grandes etapas: iniciação, trabalho e progressão. O desabrochar, parcial sobre os mundos, é completo no espaço. Vimos os nossos artistas fazerem a sua iniciação na Antiguidade, seja na Grécia, no Egipto ou em Roma. De volta ao espaço, estes seres amadureceram e aproveitaram as qualidades adquiridas numa ambiência material; retornando à Terra, numa outra encarnação, eles trouxeram o seu ideal da época da Renascença; depois este ideal se expandiu, um século mais tarde, nas letras, nas artes e na arquitectura. Eu quero falar do século de Luís XIV. Tendo estes espíritos retornado ao espaço, durante um tempo bastante longo, a inspiração em geral foi apenas medíocre no século XVIII e latente no XIX.

Em que consiste a inspiração na nossa época?

Os Espíritos, imbuídos das belas obras rebuscadas sobre a Terra e no espaço, e que estão actualmente desencarnados, retornarão no momento em que a arte e o espírito, divinizados, deverão reflorir de uma forma mais intensa. Paralelamente, outros espíritos, que anteriormente trabalharam para a evolução material, se impregnaram de positivismo e, aqui na Terra, na hora presente, a sua inspiração, que está classificada como inspiração pessoal, encaminha-se para as coisas científicas. Mas o grupo de artistas idealistas que fica no espaço busca iluminar com uma luz divina estes seres que têm belas qualidades, sob o ponto de vista do trabalho, e que devem fazer surgir a centelha da ciência.

Eis por que, neste momento, observais uma luta entre a ciência pura e a procura dos destinos humanos, a sua formação e a do Cosmos.

Vós ireis perguntar-me: Como concebeis a arte no espaço? A arte brota da inspiração, assim sendo era necessário mostrar-vos como a arte se desenvolve e cresce numa evolução constante, para que pudésseis perceber a marcha ascendente da espiritualidade. Somente quando compreenderdes bem como a centelha artística, a centelha divina, se liberta do espírito é que podereis compreender e também idealizar os quadros que se passam no espaço, mais grandiosos e mais completos que aqueles que vedes sobre a Terra e que deles são apenas um pálido reflexo.

Os espíritos positivos terrestres, provindos de uma centelha criadora, procuraram, pela inspiração científica que lhes é própria e por aquela que recebem dos seres desencarnados, descobrir o mistério da vida e do Universo.

Todas as forças se entrecruzam, do mundo visível ao mundo invisível. Do alto, os espíritos idealistas buscam animar, com um ardor que os espiritualize, os seres que trabalharam em períodos diversos e que, desse facto, adquiriram uma inspiração pessoal, mas rígida e fria.

Os cientistas da vossa época não viveram no mesmo tempo que os idealistas que conceberam tão belas obras, e é por isso que, do espaço, estes idealistas procuram estimular os cientistas. A inspiração pessoal destes últimos se confinou a um domínio que diz respeito à matéria. A centelha criadora atinge apenas o cérebro e não a alma, portanto era necessário que grandes espíritos iniciadores viessem do espaço dar aos vossos contemporâneos a insuflação inspiradora que os conduza, muito suavemente, pelos exemplos materiais, à revelação de forças desconhecidas.

As ondas hertzianas são uma das formas concretas de correntes fluídicas, criadas por Deus e transmitidas pelos espíritos. O primeiro homem que, sob a forma de uma inspiração, lhes constatou a existência, foi conduzido a esse facto, pouco a pouco, pelos invisíveis que queriam revelar aos terrestres o poder das correntes que eles desconheciam. Porém, da inspiração científica à inspiração idealista há uma distância. As dificuldades existem em razão dos meios de acção, mas, nos séculos futuros, será preciso que todos os seres vibrem em uníssono e, no momento actual, o núcleo de pesquisadores científicos tem necessidade de sentir uma inspiração em que se misturem a ciência e a forma espiritualizada da obra divina em toda a sua grandeza e sua beleza. Já que as ondas de seres vivos que passam pela Terra não têm todas o mesmo grau de evolução, a inspiração que anima cada onda não pode ser da mesma natureza.

Para preparar o trabalho progressivo das gerações há, na inspiração científica, uma mistura de desconhecido, de surpresa que, algumas vezes, produz um cepticismo que não é durável.

Fatalmente, no ciclo que se prepara, os vossos sábios deverão aceitar e ensinar à humanidade as novas forças que brotam continuamente do espaço celeste. No dia em que os vossos cientistas descobrirem, pela intuição e pela inspiração, a fonte das correntes que animam o Universo, o ideal divino estará pronto para reflorir sobre a vossa Terra e nós poderemos afirmar, convosco, que a evolução terrestre terá dado um grande passo.

A evolução científica prossegue em todos os domínios, desde a preciosa descoberta material até à aplicação de princípios novos e positivos nas artes. Actualmente as vossas artes, salvo a literatura, procedem desse género um pouco impulsivo de impressão e de inspiração. Se, durante a Renascença, as composições pareciam por vezes um pouco ingénuas, nos vossos dias, a cor, a forma, o poder da inspiração não faltam, mas será preciso adquirir, nos séculos futuros, a noção de ideal que servirá de elo a todas as obras do pensamento. Deus vos dá, por aí, o sentido real e profundo da sua obra universal.

Neste estudo, vimos o cérebro do artista organizado em todos os domínios. A inspiração, quer venha da personalidade ou do ideal divino, é a forma que concretiza a arte. Os seres carnais a adquirem na Terra, o seu espírito a completa no espaço.

Mais tarde, passaremos em revista as belas concepções que podem brotar de uma alma ardente no trabalho e plena de admiração pelo Criador.”

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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte II – Quarta lição (de O Esteta) Inspiração nos tempos modernos, Inspiração científica e inspiração idealista, Inspiração, forma que concretiza a arte. 9º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Virgem dos Rochedos Versão do Louvre (primeira versão) 1483–1486, detalhe (a mão da virgem, a mão do anjo Uriel, adornada por um véu solene e, por fim, Jesus), pintura de Leonardo da Vinci)

domingo, 2 de dezembro de 2018

literatura do além-túmulo ~


Capítulo II

Passo a analisar um segundo caso do mesmo género, o qual ocorreu em Itália, há vários anos. É um caso que não pode ser chamado de transição como o anterior, especialmente porque nele não se encontra a incerteza teórica proveniente do facto de não ter a personalidade comunicante se desvendado. Neste outro episódio, ao contrário, as personalidades mediúnicas declaram, explicitamente, quem são. Infelizmente, do ponto de vista demonstrativo, as modalidades nas quais se produzem aqui os ditados mediúnicos escasseiam em tal medida que este facto suscita perplexidades muito mais fortes que as do caso precedente. – O prof. Francesco Scaramuzza era director da Academia de Belas Artes de Parma, onde ensinava pintura, arte na qual atingira notável excelência.

Faltava-lhe, todavia, cultura literária, dado o facto de ter deixado de frequentar a escola desde a idade dos 14 anos a fim de garantir a sua subsistência. Durante a mocidade, ocupou-se, por muito tempo, de experiências de magnetismo animal, que praticara com sucesso. Tornou-se espírita quando já atingira uma idade bastante avançada e, aos 64 anos, as faculdades de médium escrevente nele se manifestaram, mas durante apenas 3 anos (1867-1869). Durante esse curto espaço de tempo, escreveu, com vertiginosa rapidez, enorme quantidade de obras poéticas de todas as espécies.

Entre elas, relevante se faz assinalar, um volumoso poema em oitavas (29 cantos, 3.000 oitavas) intitulado Poema Sacro, assim como duas comédias em verso, das quais o espírito de Carlo Goldoni seria o autor. Essas comédias são vivas, brilhantes, muito bem concebidas e finamente urdidas, com todo o sabor da arte goldoniana.

Outro tanto, porém, não se poderia dizer do Poema Sacroque foi ditado pelo espírito do grande poeta Ludovico Ariosto. Trata-se, nesse poema, de assuntos muito elevados, tais como a natureza de Deus, a génese do universo, a criação dos sóis e dos mundos, a origem da vida cósmica, os fins da vida, os destinos do espírito individualizado graças à passagem pela vida na carne. Encontram-se, aqui e acolá, imagens magníficas, compreensíveis, grandiosas, mas quase sempre expressas em linguagem pobre e em versos fracos e vulgares. Os conceitos cosmogónicos que aí se encontram parecem racionais e aceitáveis; eles se elevam, por vezes, a uma real altura filosófica, por exemplo, quando tratam da imanência de Deus no universo, revelando-se aos mortais sob a forma de movimento e quando se analisam o tempo e o espaço, “atributos de Deus”, pois que eles são infinitos como Deus o é, o que, passando de uma dedução à outra, leva a personalidade mediúnica comunicante a tender para uma concepção idêntica à hipótese do “Éter-Deus”. Experimenta-se quase um sentimento de tristeza, vendo-se que pensamentos filosoficamente sublimes são expressos em versos tão banais e sob uma forma tão vulgar. Entretanto os versos são justos e fáceis, as rimas quase sempre espontâneas, o que revela uma familiaridade indiscutível com a técnica do verso por parte da entidade que se comunicava. Esta se lastima, muitas vezes, de que o seu médium revista as ideias que lhe transmite sob uma forma poética descuidada, observando, porém, que não o pode impedir. É preciso reconhecer que existe um fundo de verdade nestas afirmativas da personalidade em questão, pois que elas concordam com os conhecimentos que se possuem, actualmente, sobre o assunto, graças a experiências de transmissão telepática do pensamento tendentes a demonstrar que o pensamento só pertence à mentalidade do agente, ao passo que a forma com a qual ele é revestido pertence à elaboração subconsciente do percipiente. É então necessário deduzir daí que, se, como acontece neste caso, o médium é um homem desprovido de cultura literária, ele só poderia expressar de forma empobrecida as ideias que lhe seriam transmitidas, telepaticamente, pela personalidade mediúnica de quem provém a comunicação.

É o que se pode invocar, em favor da origem estranha ao médium, desse Poema SacroSe ele nos surpreende, isto se deve à elevação filosófica de algumas de suas partes; porém, com relação à identificação pessoal do suposto espírito que se comunicava, é preciso reconhecer que aí nada se encontra que seja de molde a reforçar, directamente, a presunção de que possa, efectivamente, tratar-se de Ariosto, salvo a beleza de algumas imagens, ainda que estejam constantemente molestadas pela vulgaridade da forma. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer, não menos francamente, que, se se quer tudo atribuir às faculdades de elucubração artística inerentes à subconsciência do médium, fica o problema bastante obscuro e embaraçoso.

De facto, o médium não só não tinha cultura literária, como nada conhecia de ciência e filosofia. Donde brotaria, então, a inspiração grandiosa de certas partes de seu sistema cosmogónico? Forçoso se faz não esquecer o facto surpreendente de o médium ter, em três anos apenas, além do Poema Sacro, em 29 cantos e 3.000 oitavas – um volume de 915 páginas –, escrito duas comédias em verso atribuídas a Carlo Goldoni, treze longos contos, igualmente em versos, dois cantos em estâncias de três versos, um melodrama, uma tragédia, cinco poesias cómicas assinadas pelo seu falecido tio, que escrevera, efectivamente, versos dessa espécie durante a sua vida, e, enfim, um grosso volume de poesias líricas. Trata-se de uma produção literária colossal, sempre fraca do ponto de vista da forma, porém muitas vezes boa, algumas vezes mesmo excelente, do ponto de vista da substância, imagens e profundeza de pensamento filosófico.

De qualquer forma, concordo plenamente que não é de se parar, ulteriormente, na análise da produção mediúnica de Scaramuzza, embora não apresente dados suficientes para dela tirar deduções mais ou menos legítimas em favor de uma ou de outra das hipóteses explicativas antagónicas, que dividem o campo da metapsíquica.

Provavelmente, nem uma nem a outra das hipóteses em questão poderia bastar para explicar essa produção literária, se a considerarmos isoladamente. Seríamos, então, levados a concluir que, nesses casos, as interferências subconscientes poderiam alternar-se, de maneira inexplicável, como irrupções fugazes de inspiração supranormal, cuja natureza ainda não está definida.

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Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo II, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

sábado, 17 de novembro de 2018

Victor Hugo | uma chama de fogo a iluminar as idades

~~ Duas Sentenças que Resumem o Sentimento Filosófico do Poeta ~

Victor Hugo foi, não em vão, um grande propulsor do romantismo espiritualista da França. O seu génio poético só podia desenvolver-se e nutrir-se numa corrente literária transcendente e espiritual, já que através dela pôde penetrar nas chamadas ''reminiscências platónicas'' e nessas ''distâncias da alma'' em que só pode mesmo penetrar o poeta palinginésico.

O romantismo é como uma evasão do ser deste mundo objectivado. José Ferrater Mora, autor do Dicionário de Filosofia, ao referir-se ao romantismo disse: "Por isso, no movimento romântico existe, junto a uma decidida preocupação com o oculto e o ausente, uma ressurreição do religioso, uma concepção da história com o drama do homem e do seu destino e, em última instância, como uma revelação de Deus no ser finito do mundo''.

Victor Hugo, de facto, sentiu em toda a sua existência um como que chamamento profundo surgido do ausente, das distâncias históricas onde a alma deixou gravadas as suas pegadas. Compreende que tudo na criação fala e que o passado, o presente e o futuro se entrelaçam harmoniosamente e que em cada um dos períodos do devir do Ser a essência da alma reconstrói o passado para marcar o presente e projectar-se sobre o seu futuro existencial.

Em uma das suas sentenças mais profundas, como já vimos, deixou expresso com nitidez o seu sentimento palingenésico: "O berço tem um ontem e o túmulo tem um amanhã"; daí serem as bases do seu romantismo nitidamente palingenésicas. No chamado "romantismo de Jena", a poesia se manifestou como uma torneira aberta cujas águas provêm de torrentes espirituais relacionadas com a reencarnação das almas. Poetas como SchellingHõlderlinNovalisTieck e outros viveram possuídos pela ideia do ausente e distante, cuja raiz se funde nos abismos espirituais do Ser, ou seja, nas distantes vidas onde os seus espíritos cantaram e choraram sem serem jamais calados pela morte.

Victor Hugo viveu sentindo em si mesmo esse imperativo palingenésico, em que o génio poético do século passado percebeu uma nova revelação espiritual. A poesia foi, é e será sempre palingenésica; ela, ainda que a crítica se oponha a este conceito, será sempre uma chama de fogo a iluminar os longínquos dias das idades. Porque a poesia é um fluir do interno para o externo, quer dizer, dessa vida profunda e imortal que dá ser e personalidade a tudo o que existe.

O poeta de Os Miseráveisreferindo-se ao verdadeiro homem, dizia: ''O corpo bem poderia não ser mais que uma aparência. Ele cobre a nossa realidade; ele se interpõe entre a nossa luz e a nossa sombra: a realidade da alma. Claramente falando, a nossa cara é uma máscara. O verdadeiro homem é aquele que está por trás do homem. Se se olhasse bem esse homem oculto e guarnecido por trás dessa ilusão que se chama carne, ter-se-ia mais de uma surpresa".

O ser encarnado, melhor dizendo, reencarnado era para Hugo uma aparência existencial cuja realidade está na essência espiritual que determina os mais variados fenómenos da história. Considerava o processo visível uma trama que tem origem no invisível. A poesia de Victor Hugo foi como a entrada num novo mundo religioso onde os espíritos são as alavancas invisíveis de tudo o que se manifesta de forma visível.

A existência espiritual desencarnada que o poeta aceitava coincidia com a ideia da pessoa no Ser, ou seja, com esse homem de carne e osso imortal de Miguel de UnamunoO Espírito, na sua condição de desencarnado, não é uma abstracção indefinida, como ainda concebe o espiritualismo clássico. A vida do Ser no eterno possui para Hugo um perispírito objectivo, sendo portanto uma realidade vivente com um eu pessoal que actua no material a partir dos planos invisíveis.

É isso o que nos mostra na seguinte sentença: "A borboleta é o verme metamorfoseado, mas a metamorfose é tão perfeita que se acredita ver uma nova criatura. Do mesmo modo, na nossa existência do além-túmulo não seremos puros espíritos porque estas palavras são vazias de sentido, tanto para a razão como para a imaginação.

"O que é uma vida sem os órgãos da vida? O que a define e o que a fixa? Na verdade, nós teremos outro corpo semelhante, radiante, divino e, por assim dizer, espiritual, que será a transformação do nosso corpo terrestre''.

A realidade espiritual do homem era, para o poeta, objectivamente existencial e não uma abstracção, pois a vida do além-túmulo é para Hugo como um alto e imenso cume, onde o espírito se resume dialecticamente. Por isso, disse: "Todos os seres são, foram e serão".

Em outra passagem, dizia o poeta: "Os mortos são os invisíveis e não os ausentes''. Com este pensamento, ele uniu as vidas passadas das almas com a imortalidade de suas eternas naturezas. Sentiu, por isso, a presença do mundo invisível como uma realidade inteligente e comunicante. E este mundo invisível era para Victor Hugo o mundo dos espíritos tal como está desenhado na obra de Allan KardecA sua vida íntima nunca esteve rodeada de solidão e de vazio. A solidão em Hugo era como um médium que lhe permitia entrar em relação com os erradamente chamados mortos, pois, como grande romântico que era não cria no silêncio aterrador dos túmulos. Ele sabia, pelo fenómeno poético que diariamente experimentava, que é no invisível onde vivem os nossos seres queridos com os seus corpos espirituais, as suas paixões e os seus amores, esperando a oportunidade para nos revelarem as suas inegáveis identidades. Porque, se "os mortos são os invisíveis e não os ausentes", como dizia, a humanidade está entrelaçada com a vida dos mortos tal como demonstra agora a filosofia espírita.

Nos arquivos da Revue Spirite, de Paris, encontra-se um trabalho de Léon Denis em que ele se refere a Victor Hugo e à sua compreensão do mundo invisível, como se vê a seguir: "Louis Barthon, da Academia Francesa, depois de consultar os Apontamentos inéditos do poeta, escreveu na Revue de Deux Mondes (número 15, de Dezembro de 1918, páginas 751 a 757) o que vamos transcrever: ''Madame Émile de Girardin, tendo ido passar dez dias em Jersey, introduziu ali a prática das mesas girantes e falantes". Como se sabe, Victor Hugo foi o último a ceder perante este fenómeno mediúnico. Mas desde que elas (as mesas) o convenceram, as entidades comunicantes não o abandonaram jamais, exercendo sobre o seu pensamento influências espirituais revolucionárias.

"Continua dizendo Louis Barthon que na noite de 30 de Março de 1857 o poeta percebe a noção de uma nova concepção metafísica, a qual descreve com data de 24 de Outubro no seu caderno de apontamentos. Vejamos como capta a presença do invisível através da sua própria relação: 'Esta noite eu não dormia. Eram  cerca das três da madrugada. Um golpe seco, muito forte, se produziu aos pés da minha cama, contra a porta da minha habitação. Pensei na minha filha morta e disse para mim: És tu? Pois eu pensava no complô bonapartista, segundo se falava, em um novo dois de Dezembro possível e me perguntava: É uma advertência? E acrescentava mentalmente: Se és realmente tu que estás aí e se vens advertir-me na ocasião deste complô, dá dois golpes. E por cerca de meia hora escuto. A noite era profunda e tudo em casa silêncio. De repente se fazem ouvir dois golpes contra a porta. Desta vez eram surdos mas distintamente muito leves".

Louis Barthon prossegue no seu relato: "Em 21 de Novembro de 1874 Victor Hugo escrevia o seguinte: 'Esta noite despertei e percebi no ouvido, muito próximo de mim, na minha cabeceira, leves pancadas surdas. Eram lentas e regulares, durando um quarto de hora. Eu escutava e não cessavam. Por isso, orei; quando cessaram, disse: se és tu, minha filha, ou tu, meu filho, dá dois golpes. Ao fim de dez minutos, mais ou menos, dois golpes se deram, mas contra a parede perto da cama. Mentalmente disse: é um conselho o que tu trazes? Devo abandonar Paris? Devo permanecer? Se devo ficar, dá um golpe. Se devo partir, dá três golpes. Escuto! Nenhuma resposta ainda. Acabo dormindo. O fenómeno dura quase uma hora'.

"No caderno de apontamentos do poeta, com data de 22 de Novembro de 1874, lê-se o seguinte: 'Esta noite escutei três golpes. Será a resposta à pergunta de ontem? Seria pouco clara ao ser tão demorada'.

Léon Denis afirma que no mesmo caderno mencionam-se apontamentos nocturnos de carácter mediúnico obstinados, surdos e ainda metálicos e doces, tão comoventes que o poeta terminou por crer na possibilidade de um pronunciamento bonapartista do qual ele seria a primeira vítima (ver La Revue Spirite, de Março/Abril de 1952).

Diz ainda Denis que na página 157 do caderno se lê: "Esta noite, cerca das duas horas, senti golpes na minha porta, que estava aberta, sem que pessoa alguma houvesse ali de forma evidente. Credo in Deum eternum et in animan inmortalem".

Como se verá, os fenómenos mediúnicos experimentados por Victor Hugo não são vãos nem intranscendentes. Têm a virtude de haver elevado a alma do poeta até Deus e de fazê-lo crer no espírito imortal. Este mesmo facto se operou no ânimo do seu compatriota Gabriel Marcel, o distinto filósofo católico, a quem os fenómenos mediúnicos influenciaram notavelmente para a elaboração do seu pensamento filosófico. Victor Hugo, pois, não se equivocou quando disse:"Evitar o fenómeno espírita é fazer bancarrota com a verdade".

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Duas Sentenças que Resumem o Sentimento Filosófico do Poeta, 8º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)