Capítulo II
Passo a analisar um segundo caso do mesmo género, o qual ocorreu em Itália, há
vários anos. É um caso que não pode ser chamado de transição como
o anterior, especialmente porque nele não se encontra a incerteza teórica proveniente do facto de não ter a personalidade comunicante se
desvendado. Neste outro episódio, ao contrário, as personalidades mediúnicas
declaram, explicitamente, quem são. Infelizmente, do ponto de vista
demonstrativo, as modalidades nas quais se produzem aqui os ditados
mediúnicos escasseiam em tal medida que este facto suscita
perplexidades muito mais fortes que as do caso precedente. – O prof. Francesco Scaramuzza era
director da Academia de Belas Artes de Parma, onde ensinava pintura, arte na
qual atingira notável excelência.
Faltava-lhe, todavia, cultura literária, dado o facto de ter
deixado de frequentar a escola desde a idade dos 14 anos a fim de garantir a
sua subsistência. Durante a mocidade, ocupou-se, por muito tempo, de
experiências de magnetismo
animal, que praticara com sucesso. Tornou-se espírita quando já
atingira uma idade bastante avançada e, aos 64 anos, as faculdades de
médium escrevente nele se manifestaram, mas durante apenas 3 anos
(1867-1869). Durante esse curto espaço de tempo, escreveu, com
vertiginosa rapidez, enorme quantidade de obras poéticas de todas as
espécies.
Entre elas, relevante se faz assinalar, um volumoso
poema em oitavas (29 cantos, 3.000 oitavas) intitulado Poema
Sacro, assim como duas comédias em verso, das quais o
espírito de Carlo
Goldoni seria o autor. Essas comédias são vivas, brilhantes, muito bem
concebidas e finamente urdidas, com todo o sabor da arte goldoniana.
Outro tanto, porém, não se poderia dizer do Poema
Sacro, que foi ditado pelo espírito do grande poeta Ludovico Ariosto.
Trata-se, nesse poema, de assuntos muito elevados, tais como a natureza
de Deus, a génese do universo, a criação dos sóis e dos mundos,
a origem da vida cósmica, os fins da vida, os destinos do espírito
individualizado graças à passagem pela vida na carne. Encontram-se, aqui e
acolá, imagens magníficas, compreensíveis, grandiosas, mas quase sempre
expressas em linguagem pobre e em versos fracos e vulgares. Os conceitos
cosmogónicos que aí se encontram parecem racionais e aceitáveis; eles se
elevam, por vezes, a uma real altura filosófica, por exemplo, quando tratam da
imanência de Deus no universo, revelando-se aos mortais sob a forma de
movimento e quando se analisam o tempo e o espaço, “atributos de Deus”,
pois que eles são infinitos como Deus o é, o que, passando de uma dedução à
outra, leva a personalidade mediúnica comunicante a tender para uma
concepção idêntica à hipótese do “Éter-Deus”. Experimenta-se quase um
sentimento de tristeza, vendo-se que pensamentos filosoficamente sublimes são
expressos em versos tão banais e sob uma forma tão vulgar. Entretanto os
versos são justos e fáceis, as rimas quase sempre espontâneas, o que revela uma
familiaridade indiscutível com a técnica do verso por parte da entidade que se
comunicava. Esta se lastima, muitas vezes, de que o seu médium revista
as ideias que lhe transmite sob uma forma poética descuidada, observando,
porém, que não o pode impedir. É preciso reconhecer que existe um fundo de
verdade nestas afirmativas da personalidade em questão, pois que elas concordam
com os conhecimentos que se possuem, actualmente, sobre o assunto, graças a
experiências de transmissão telepática do pensamento tendentes a demonstrar
que o pensamento só pertence à mentalidade do agente,
ao passo que a forma com a qual ele é revestido pertence à elaboração
subconsciente do percipiente. É então necessário deduzir daí
que, se, como acontece neste caso, o médium é
um homem desprovido de cultura literária, ele só poderia expressar de forma
empobrecida as ideias que lhe seriam transmitidas, telepaticamente, pela
personalidade mediúnica de
quem provém a comunicação.
É o que se pode invocar, em favor da origem estranha ao
médium, desse Poema Sacro. Se ele nos surpreende, isto se
deve à elevação filosófica de algumas de suas partes; porém, com relação à
identificação pessoal do suposto espírito que se comunicava, é preciso
reconhecer que aí nada se encontra que seja de molde a reforçar, directamente,
a presunção de que possa, efectivamente, tratar-se de Ariosto, salvo a beleza
de algumas imagens, ainda que estejam constantemente molestadas pela
vulgaridade da forma. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer, não menos
francamente, que, se se quer tudo atribuir às faculdades de elucubração
artística inerentes à subconsciência do médium,
fica o problema bastante obscuro e embaraçoso.
De facto, o médium não
só não tinha cultura literária, como nada conhecia de ciência e filosofia.
Donde brotaria, então, a inspiração grandiosa de certas partes de seu sistema
cosmogónico? Forçoso se faz não esquecer o facto surpreendente de o médium
ter, em três anos apenas, além do Poema Sacro, em 29
cantos e 3.000 oitavas – um volume de 915 páginas –, escrito duas comédias em
verso atribuídas a Carlo
Goldoni, treze longos contos, igualmente em versos, dois cantos em
estâncias de três versos, um melodrama, uma tragédia, cinco poesias cómicas
assinadas pelo seu falecido tio, que escrevera, efectivamente, versos dessa
espécie durante a sua vida, e, enfim, um grosso volume de poesias líricas.
Trata-se de uma produção literária colossal, sempre fraca do ponto
de vista da forma, porém muitas vezes boa, algumas vezes mesmo excelente, do
ponto de vista da substância, imagens e profundeza de pensamento filosófico.
De qualquer forma, concordo plenamente que não é de se
parar, ulteriormente, na análise da produção mediúnica de Scaramuzza, embora
não apresente dados suficientes para dela tirar deduções mais ou menos
legítimas em favor de uma ou de outra das hipóteses explicativas antagónicas,
que dividem o campo da metapsíquica.
Provavelmente, nem uma nem a outra das hipóteses em questão
poderia bastar para explicar essa produção literária, se a considerarmos
isoladamente. Seríamos, então, levados a concluir que, nesses casos, as
interferências subconscientes poderiam alternar-se, de maneira inexplicável,
como irrupções fugazes de inspiração supranormal, cuja natureza ainda não está
definida.
/...
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac
| 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)
Sem comentários:
Enviar um comentário