domingo, 2 de dezembro de 2018

literatura do além-túmulo ~


Capítulo II

Passo a analisar um segundo caso do mesmo género, o qual ocorreu em Itália, há vários anos. É um caso que não pode ser chamado de transição como o anterior, especialmente porque nele não se encontra a incerteza teórica proveniente do facto de não ter a personalidade comunicante se desvendado. Neste outro episódio, ao contrário, as personalidades mediúnicas declaram, explicitamente, quem são. Infelizmente, do ponto de vista demonstrativo, as modalidades nas quais se produzem aqui os ditados mediúnicos escasseiam em tal medida que este facto suscita perplexidades muito mais fortes que as do caso precedente. – O prof. Francesco Scaramuzza era director da Academia de Belas Artes de Parma, onde ensinava pintura, arte na qual atingira notável excelência.

Faltava-lhe, todavia, cultura literária, dado o facto de ter deixado de frequentar a escola desde a idade dos 14 anos a fim de garantir a sua subsistência. Durante a mocidade, ocupou-se, por muito tempo, de experiências de magnetismo animal, que praticara com sucesso. Tornou-se espírita quando já atingira uma idade bastante avançada e, aos 64 anos, as faculdades de médium escrevente nele se manifestaram, mas durante apenas 3 anos (1867-1869). Durante esse curto espaço de tempo, escreveu, com vertiginosa rapidez, enorme quantidade de obras poéticas de todas as espécies.

Entre elas, relevante se faz assinalar, um volumoso poema em oitavas (29 cantos, 3.000 oitavas) intitulado Poema Sacro, assim como duas comédias em verso, das quais o espírito de Carlo Goldoni seria o autor. Essas comédias são vivas, brilhantes, muito bem concebidas e finamente urdidas, com todo o sabor da arte goldoniana.

Outro tanto, porém, não se poderia dizer do Poema Sacroque foi ditado pelo espírito do grande poeta Ludovico Ariosto. Trata-se, nesse poema, de assuntos muito elevados, tais como a natureza de Deus, a génese do universo, a criação dos sóis e dos mundos, a origem da vida cósmica, os fins da vida, os destinos do espírito individualizado graças à passagem pela vida na carne. Encontram-se, aqui e acolá, imagens magníficas, compreensíveis, grandiosas, mas quase sempre expressas em linguagem pobre e em versos fracos e vulgares. Os conceitos cosmogónicos que aí se encontram parecem racionais e aceitáveis; eles se elevam, por vezes, a uma real altura filosófica, por exemplo, quando tratam da imanência de Deus no universo, revelando-se aos mortais sob a forma de movimento e quando se analisam o tempo e o espaço, “atributos de Deus”, pois que eles são infinitos como Deus o é, o que, passando de uma dedução à outra, leva a personalidade mediúnica comunicante a tender para uma concepção idêntica à hipótese do “Éter-Deus”. Experimenta-se quase um sentimento de tristeza, vendo-se que pensamentos filosoficamente sublimes são expressos em versos tão banais e sob uma forma tão vulgar. Entretanto os versos são justos e fáceis, as rimas quase sempre espontâneas, o que revela uma familiaridade indiscutível com a técnica do verso por parte da entidade que se comunicava. Esta se lastima, muitas vezes, de que o seu médium revista as ideias que lhe transmite sob uma forma poética descuidada, observando, porém, que não o pode impedir. É preciso reconhecer que existe um fundo de verdade nestas afirmativas da personalidade em questão, pois que elas concordam com os conhecimentos que se possuem, actualmente, sobre o assunto, graças a experiências de transmissão telepática do pensamento tendentes a demonstrar que o pensamento só pertence à mentalidade do agente, ao passo que a forma com a qual ele é revestido pertence à elaboração subconsciente do percipiente. É então necessário deduzir daí que, se, como acontece neste caso, o médium é um homem desprovido de cultura literária, ele só poderia expressar de forma empobrecida as ideias que lhe seriam transmitidas, telepaticamente, pela personalidade mediúnica de quem provém a comunicação.

É o que se pode invocar, em favor da origem estranha ao médium, desse Poema SacroSe ele nos surpreende, isto se deve à elevação filosófica de algumas de suas partes; porém, com relação à identificação pessoal do suposto espírito que se comunicava, é preciso reconhecer que aí nada se encontra que seja de molde a reforçar, directamente, a presunção de que possa, efectivamente, tratar-se de Ariosto, salvo a beleza de algumas imagens, ainda que estejam constantemente molestadas pela vulgaridade da forma. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer, não menos francamente, que, se se quer tudo atribuir às faculdades de elucubração artística inerentes à subconsciência do médium, fica o problema bastante obscuro e embaraçoso.

De facto, o médium não só não tinha cultura literária, como nada conhecia de ciência e filosofia. Donde brotaria, então, a inspiração grandiosa de certas partes de seu sistema cosmogónico? Forçoso se faz não esquecer o facto surpreendente de o médium ter, em três anos apenas, além do Poema Sacro, em 29 cantos e 3.000 oitavas – um volume de 915 páginas –, escrito duas comédias em verso atribuídas a Carlo Goldoni, treze longos contos, igualmente em versos, dois cantos em estâncias de três versos, um melodrama, uma tragédia, cinco poesias cómicas assinadas pelo seu falecido tio, que escrevera, efectivamente, versos dessa espécie durante a sua vida, e, enfim, um grosso volume de poesias líricas. Trata-se de uma produção literária colossal, sempre fraca do ponto de vista da forma, porém muitas vezes boa, algumas vezes mesmo excelente, do ponto de vista da substância, imagens e profundeza de pensamento filosófico.

De qualquer forma, concordo plenamente que não é de se parar, ulteriormente, na análise da produção mediúnica de Scaramuzza, embora não apresente dados suficientes para dela tirar deduções mais ou menos legítimas em favor de uma ou de outra das hipóteses explicativas antagónicas, que dividem o campo da metapsíquica.

Provavelmente, nem uma nem a outra das hipóteses em questão poderia bastar para explicar essa produção literária, se a considerarmos isoladamente. Seríamos, então, levados a concluir que, nesses casos, as interferências subconscientes poderiam alternar-se, de maneira inexplicável, como irrupções fugazes de inspiração supranormal, cuja natureza ainda não está definida.

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Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo II, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

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