Capítulo II
O Marxismo e o Espírito
O marxismo, como gerador de um sentir materialista do homem
e da vida, vem sendo combatido por teóricos religiosos pertencentes a várias
confissões eclesiásticas, que procuram mostrar os seus erros a respeito da
realidade humana e espiritual. Todo esse trabalho poderá ser louvável para os
que necessitam de um conceito espiritual com que enfrentar as contingências
sociais; mas, quando analisado com certa atenção, percebe-se que a sua
finalidade é apenas uma defesa sectária.
Dizem-nos que no marxismo se elabora um partidarismo da
filosofia, e que o filósofo deve amoldar a sua mentalidade
aos interesses do partido. Mas, se bem considerarmos, vemos
que ocorre o mesmo, quase com as mesmas características, no campo religioso:
forja-se um partidarismo eclesiástico, condicionado
aos interesses espirituais do partido religioso, pondo-se de
lado o sentido real da busca da verdade.
Neste sentido, trava-se a luta entre duas concepções, ambas
com o mesmo direito à análise e à discussão. O grau democrático, alcançado pelo
desenvolvimento das ideias, permite-nos hoje cotejar o valor das doutrinas e
até mesmo dos dogmas religiosos. Consequentemente, já não se trata de atacar partidariamente o marxismo nem o
materialismo dialéctico; o que agora interessa é saber positivamente
onde se encontra a realidade do Espírito; se é que de facto se deseja
superar o perigo representado pelo niilismo filosófico.
Actualmente não se trata de atacar sistemas, mas de
saber se eles são realmente falsos, e se as ideias que lhes contrapomos são
reais e demonstráveis. Neste campo, a luta trava-se entre o Espírito e
a Matéria. Para o espiritualismo religioso, é na existência do Espírito que
se radica a legitimidade do cristianismo e das verdades escatológicas. Pois se
a existência do Espírito fosse uma irrealidade, todo esse sistema religioso
seria derrubado, colocando-se em primeiro plano o materialismo e o marxismo. A
ideologia marxista afirma que a sua doutrina está fundada nas ciências, e que
unicamente uma contraprova científica poderia obrigá-la a mudar de orientação.
O espiritualismo religioso apresenta os seus dogmas, fazendo uso da fé, numa
posição de absoluta insuficiência para contradizer as posições do critério
científico.
Como se sabe, o marxismo funda-se na ciência experimental.
Sobre essa base estabeleceu as suas conclusões materialistas, referentes à
origem da vida, opondo-se assim tanto ao idealismo como à religião. Mas o
que não devemos esquecer é que esta concepção marxista se baseia também na
falta de provas positivas acerca do mundo sobrenatural, sobre o qual
repousam a ideia de Deus e do Espírito.
Se o marxismo repele a espiritualidade do homem e da
história, não o faz por ódio a essa ideia, já que o pensador marxista possui,
sem nenhuma dúvida, uma faculdade intelectual tão esclarecida e elevada como a
do idealista e religioso. Consideramos que a repulsa do marxismo às ideias
religiosas decorre da falta de provas que pudessem apresentar, tanto o
idealismo como a Igreja. Por isso, a escola espírita admite que a
cessação da contenda entre o espiritualismo e o materialismo se dará com o
reconhecimento e a admissão do fenómeno metapsíquico e mediúnico, único
fundamento real que obrigará as correntes materialistas a reconhecerem como
verdadeira a existência imortal do Espírito.
Mas a Igreja, e com ela o sistema idealista clássico,
repelem o conceito espírita da realidade; a primeira, por considerar o espiritismo como
uma causa do demónio, e o segundo, por sustentar um critério
nebuloso e ambíguo a respeito da espiritualidade do homem. Não
obstante, o curso que vão seguindo as questões morais obriga cada vez
mais o pensamento filosófico a recorrer à realidade espiritual, apresentada
pelo espiritismo, como o último recurso contra o avanço triunfal do
conceito materialista da vida.
Como dizíamos, o marxismo repele toda a ideologia
espiritualista por considerar que ela submete o homem económica e
socialmente, afundando-o na ignorância e na superstição. Por isso, sustenta
que o espiritualismo, além de ser uma irrealidade, tem servido para apoiar os
regimes reaccionários e conservadores, e, nunca a liberdade e o direito das
classes sem recursos.
Se o realismo marxista não for superado por um realismo
espiritual que ultrapasse os seus limites, a consciência materialista continuará
a impor-se e serão vãos os protestos dos idealistas e religiosos. As
realidades espirituais, se de facto existem, deverão ser expostas ao homem
moderno com a mesma objectividade que caracteriza os fenómenos físicos e
sociais. Defender ideologias abstractas é unicamente falar ou escrever em
favor do partido político ou religioso a que se pertence. Se os espiritualistas
querem demonstrar a existência de Deus e da imortalidade da alma, deverão
abandonar o método dogmático. Agora, são os factos que devem falar em favor
da vida espiritual do homem. Entretanto, prefere-se defender o dogma e o
partido, esquecendo-se de que o homem está acima dos interesses de seitas e de
grupos.
Chegamos, porém, a uma situação em que o ser humano tem
grande necessidade de conhecer a verdade acerca da sua natureza teológica.
Aspira, mais do que nunca, apegar-se a ela, para sobreviver ao
desolador desastre espiritual da espécie. As doutrinas idealistas e
religiosas deverão responder-lhe com verdades, e não com dogmas, já que o homem
vale mais do que o partido e a igreja. Por isso, a verdade espiritual,
assente sobre os factos, é a única que poderá defendê-lo do perigo social que o
rodeia.
É necessário considerar que o homem não deve morrer
sem que lhe sejam ensinadas as autênticas verdades espirituais; não deverá
ausentar-se deste mundo aceitando verdades que, depois da
morte, lhe aparecerão como erros, conservados apenas para a defesa de sistemas
religiosos e sociais dominantes.
Não obstante, enquanto as instituições civis e religiosas
permanecem quietas, o progresso e a evolução fazem girar a roda do mundo, para
comovê-lo desde os fundamentos. Enquanto as organizações religiosas
aparentam estabilidade e segurança, a revolução espiritual está acontecendo no
âmago das almas. E esta revolução subjectiva é a que promoverá a derrocada
dessas organizações, que zelam somente pelos seus privilégios e os seus
interesses materiais. Acreditamos que o grito angustioso da alma
humana, nos tempos actuais, merece o mais fraternal dos auxílios.
Consideramos que o homem merece agora o nosso respeito, mais do que em nenhum
outro período da história.
Aqueles que dividiram o mundo em classes, sectores e
partidos, deveriam abandonar a sua atitude dogmática e recordar que a
humanidade está no direito de conhecer a verdade espiritual, ainda que essa
verdade possa afectar as instituições religiosas, já incapazes de oferecer
provas sobre o destino escatológico do homem.
O marxismo é
uma rebelião contra os erros de toda ordem; não é somente uma força de carácter
político: ele se dirige a todo o sistema espiritual existente, cansado
de admitir as suas erradas doutrinas, cujo único fim é manter nas trevas o
pensamento humano. Assim, se a Igreja, e com ela o antigo espiritualismo
desejam opor-se ao marxismo, deverão fazê-lo por meio dos factos, demonstrando
que o metafísico e o sobrenatural existem, que são realidade. Mas,
infelizmente, essas instituições carecem do equipamento necessário, com o qual
deveriam sobrepor-se ao conceito materialista do marxismo. Continuam
opondo-se ao espiritismo, o que prova que não buscam a salvação espiritual
do homem, mas unicamente sobreviver, empregando para isso a força que lhe
concedem os Estados materialistas.
/...
Humberto Mariotti, O
Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, 1ª PARTE, O NÚMENO
ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo II, O MARXISMO E O
ESPÍRITO, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad
paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)