a luta necessária
Infelizmente a maioria das criaturas não gosta de
reconhecer os seus limites.
A vaidade e a ambição levam muita gente a dar
passos mais largos do que as pernas permitem.
É o que hoje vemos, de maneira assustadora, no nosso meio
espírita. Os casos de fascinação multiplicam-se à nossa volta.
Pessoas que podiam ser úteis transformam-se em focos de confusão e perturbação,
entravando a marcha do Espiritismo com
a sustentação de teorias absurdas que levam a doutrina ao ridículo. No nosso
país esses casos se tornam mais graves por causa da falta geral de cultura. As
pessoas incultas e ingénuas deixam-se levar muito facilmente ao fanatismo, ante
o brilho fictício de pessoas inteligentes e cultas, mas dominadas por
fascinações perigosas.
A mania do cientificismo vem produzindo
grandes estragos no nosso movimento espírita. Qualquer possuidor de diplomas de
curso superior se julga capacitado a transformar-se em cientista do dia para a
noite. E logo consegue uma turma de adeptos vaidosos prontos a seguir o
iluminado que lhes empreste um pouco do seu falso brilho. O desejo de elevar-se
acima dos outros, conhecendo mais e sabendo mais, é praticamente incontrolável
na maioria das pessoas. O resultado é o que vemos. Há mais joio do que trigo na
nossa seara espírita.
A luta contra essa situação é das mais árduas. Mas, árdua ou
não, tem de ser enfrentada pelos que vêem as coisas de maneira mais clara.
Temos de ferir susceptibilidades, magoar o amor-próprio de amigos e
companheiros, levantar no próprio meio espírita inimigos gratuitos, provocar
revides apaixonados. Mas, de duas, uma: ficamos com a verdade ou
ficamos com o erro, defendemos a doutrina ou nos acomodamos na
falsa tolerância, clamando por uma paz de pantanal, que nada mais é do que
covardia e traição à verdade. Aí estão, diante dos nossos olhos, as fascinações
da vaidade empantanando-nos os caminhos da evolução natural e
necessária da doutrina. Ou lutamos contra elas ou incentivaremos a sua
propagação e proliferação.
Podemos enumerar as mais acentuadas e nefastas: o roustainguismo,
defendido e semeado sob o prestígio da FEB; o Divinismo ou
Espiritismo Divinista, que contradiz a própria essência racional do
Cristianismo e do Espiritismo; o ramatisismo, que conseguiu
envenenar a própria FEESP e ainda hoje não foi completamente eliminado da sua
estrutura; o heterodoxismo ou armondismo (mistura de doutrinas
ocultistas com o Espiritismo), que anda de mãos dadas com o ramatisismo; a
teoria do continuum mediúnico, que vem de fora, com ares de teoria
sociológica, estabelecendo confusões, com suposto apoio científico, entre Espiritismo
e Umbanda; o andreluizismo, que à revelia de André Luiz é
sustentado por instituições que se apoiam na caridade para desviar adeptos
ingénuos da verdadeira compreensão doutrinária; e outras subcorrentes que
amanhã se tornarão fortes e dominadoras se não forem sustadas a tempo.
Todos esses movimentos se valem de uma arma contra os que
perseveram no campo limpo da doutrina: a acusação de sectarismo.
Fazem seitas e acusam os outros de sectários. Clamam pelo direito de alargar e
arejar os conceitos fundamentais de Allan Kardec, sem que os
seus expoentes se lembrem de que não possuem
condições culturais para essa tarefa de gigantes. Afrontam e amesquinham Kardec,
na vaidosa suposição de que o estão auxiliando, quando não o
agridem abertamente, com o menosprezo à sua missão espiritual e à sua qualificação cultural.
Não foram ainda capazes de encarar a missão de Kardec e a obra de Kardec sem
pensar primeiro em si mesmos e nas suas supostas capacidades culturais ou
supostas habilitações espirituais.
No meio desse panorama de confusões, mutilado nas suas
pretensões iniciais, mas ainda actuando em desvios estratégicos, subsiste a
ameaça do Espiritismo Corpuscular. E a seu lado surgem
outros movimentos pseudoculturais, como o actual Massenismo da
antiga e veneranda Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, com
sua direcção entregue nas mãos de um leigo, a suscitar inovações
aberrantes na prática doutrinária, em nome de uma suposta evolução, e
uma onda de culturalismo místico que se opõe à restauração do
verdadeiro Espiritismo nos
quadros de instituições representativas da doutrina.
O desenvolvimento da Parapsicologia e a falta de capacidade
dos nossos meios universitários para acompanharem essa evolução científica deu
motivo a ampla e escandalosa exploração desse novo ramo das Ciências
psicológicas na nossa terra. Uma exploração dirigida em dois sentidos: o combate pseudocientífico ao
Espiritismo e o comércio desenfreado de cursos de
formadores sobre o assunto. A reacção espírita surgiu de maneira acertada:
colocar o problema nos seus devidos termos, mostrando as ligações naturais entre Espiritismo e
Parapsicologia, sem misturar as duas Ciências nem deturpá-las. Mas não tardou a
surgir no próprio meio espírita os que se aproveitaram da situação para a
defesa dos seus pontos de vista pessoais, aumentando a confusão e torcendo a
realidade parapsicológica a favor das suas teorias pseudo-espíritas. A falta de
formação cultural do nosso povo ofereceu condições propícias ao desenvolvimento
dessa contrafacção, tão nefasta como a outra, a facção deformadora da nova
ciência.
/…
Herculano Pires, José – A Pedra e o Joio,
Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. A luta necessária, 4º fragmento da
obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos,
pintura a óleo por Jean-François
Millet)