quinta-feira, 29 de maio de 2014

a pedra e o joio ~

a luta necessária

Infelizmente a maioria das criaturas não gosta de reconhecer os seus limites.

A vaidade e a ambição levam muita gente a dar passos mais largos do que as pernas permitem.

É o que hoje vemos, de maneira assustadora, no nosso meio espírita. Os casos de fascinação multiplicam-se à nossa volta. Pessoas que podiam ser úteis transformam-se em focos de confusão e perturbação, entravando a marcha do Espiritismo com a sustentação de teorias absurdas que levam a doutrina ao ridículo. No nosso país esses casos se tornam mais graves por causa da falta geral de cultura. As pessoas incultas e ingénuas deixam-se levar muito facilmente ao fanatismo, ante o brilho fictício de pessoas inteligentes e cultas, mas dominadas por fascinações perigosas.

A mania do cientificismo vem produzindo grandes estragos no nosso movimento espírita. Qualquer possuidor de diplomas de curso superior se julga capacitado a transformar-se em cientista do dia para a noite. E logo consegue uma turma de adeptos vaidosos prontos a seguir o iluminado que lhes empreste um pouco do seu falso brilho. O desejo de elevar-se acima dos outros, conhecendo mais e sabendo mais, é praticamente incontrolável na maioria das pessoas. O resultado é o que vemos. Há mais joio do que trigo na nossa seara espírita.

A luta contra essa situação é das mais árduas. Mas, árdua ou não, tem de ser enfrentada pelos que vêem as coisas de maneira mais clara. Temos de ferir susceptibilidades, magoar o amor-próprio de amigos e companheiros, levantar no próprio meio espírita inimigos gratuitos, provocar revides apaixonados. Mas, de duas, uma: ficamos com a verdade ou ficamos com o erro, defendemos a doutrina ou nos acomodamos na falsa tolerância, clamando por uma paz de pantanal, que nada mais é do que covardia e traição à verdade. Aí estão, diante dos nossos olhos, as fascinações da vaidade empantanando-nos os caminhos da evolução natural e necessária da doutrina. Ou lutamos contra elas ou incentivaremos a sua propagação e proliferação.

Podemos enumerar as mais acentuadas e nefastas: o roustainguismo, defendido e semeado sob o prestígio da FEB; o Divinismo ou Espiritismo Divinista, que contradiz a própria essência racional do Cristianismo e do Espiritismo; o ramatisismo, que conseguiu envenenar a própria FEESP e ainda hoje não foi completamente eliminado da sua estrutura; o heterodoxismo ou armondismo (mistura de doutrinas ocultistas com o Espiritismo), que anda de mãos dadas com o ramatisismo; a teoria do continuum mediúnico, que vem de fora, com ares de teoria sociológica, estabelecendo confusões, com suposto apoio científico, entre Espiritismo e Umbanda; o andreluizismo, que à revelia de André Luiz é sustentado por instituições que se apoiam na caridade para desviar adeptos ingénuos da verdadeira compreensão doutrinária; e outras subcorrentes que amanhã se tornarão fortes e dominadoras se não forem sustadas a tempo.

Todos esses movimentos se valem de uma arma contra os que perseveram no campo limpo da doutrina: a acusação de sectarismo. Fazem seitas e acusam os outros de sectários. Clamam pelo direito de alargar e arejar os conceitos fundamentais de Allan Kardec, sem que os seus expoentes se lembrem de que não possuem condições culturais para essa tarefa de gigantes. Afrontam e amesquinham Kardec, na vaidosa suposição de que o estão auxiliando, quando não o agridem abertamente, com o menosprezo à sua missão espiritual e à sua qualificação cultural. Não foram ainda capazes de encarar a missão de Kardec e a obra de Kardec sem pensar primeiro em si mesmos e nas suas supostas capacidades culturais ou supostas habilitações espirituais.

No meio desse panorama de confusões, mutilado nas suas pretensões iniciais, mas ainda actuando em desvios estratégicos, subsiste a ameaça do Espiritismo Corpuscular. E a seu lado surgem outros movimentos pseudoculturais, como o actual Massenismo da antiga e veneranda Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, com sua direcção entregue nas mãos de um leigo, a suscitar inovações aberrantes na prática doutrinária, em nome de uma suposta evolução, e uma onda de culturalismo místico que se opõe à restauração do verdadeiro Espiritismo nos quadros de instituições representativas da doutrina.

O desenvolvimento da Parapsicologia e a falta de capacidade dos nossos meios universitários para acompanharem essa evolução científica deu motivo a ampla e escandalosa exploração desse novo ramo das Ciências psicológicas na nossa terra. Uma exploração dirigida em dois sentidos: o combate pseudocientífico ao Espiritismo e o comércio desenfreado de cursos de formadores sobre o assunto. A reacção espírita surgiu de maneira acertada: colocar o problema nos seus devidos termos, mostrando as ligações naturais entre Espiritismo e Parapsicologia, sem misturar as duas Ciências nem deturpá-las. Mas não tardou a surgir no próprio meio espírita os que se aproveitaram da situação para a defesa dos seus pontos de vista pessoais, aumentando a confusão e torcendo a realidade parapsicológica a favor das suas teorias pseudo-espíritas. A falta de formação cultural do nosso povo ofereceu condições propícias ao desenvolvimento dessa contrafacção, tão nefasta como a outra, a facção deformadora da nova ciência.

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Herculano Pires, José – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. A luta necessária, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

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