Um gesto de fraternidade ~
A explicação do fenómeno religioso como simples "humanização
da natureza", como a "projecção do homem ao infinito", é mais literária do que
filosófica, não tendo absolutamente nada de científica.
O próprio Marx quase o reconheceu quando acrescentou à tese contemplativa de Feuerbach os seus princípios dinâmicos. Perdoa-se como um dos muitos equívocos, através dos quais
se elabora dialécticamente o conhecimento. Admitir-se, porém, a sua perpetuação
no mundo filosófico seria um crime de lesa-cultura.
Primeiro, por que não há nenhuma base positiva, experimental
ou de observação, para comprovar essa teoria de emergência; depois, porque há
uma infinidade de provas em contrário, suficientemente documentadas, com base
na mais rigorosa investigação científica, feita por cientistas insuspeitos, tão
materialistas e descrentes como Feuerbach, Marx, Engels e os seus
continuadores.
Ora, parece evidente que uma teoria, contraditada pelos
factos, mormente através da investigação científica, não apenas uma, mas
milhares de vezes, está irremediavelmente falida. Por outro lado, a afirmação
de que "a sociedade burguesa tem interesse na explicação religiosa, teológica,
dos fenómenos sociais" (L. A. Tcheskiss) nada tem a ver com a realidade do
fenómeno religioso em si, como a realidade das alterações fisiológicas não se
invalida nem se obscurece em virtude da exploração dos charlatães da medicina.
Além disso, é preciso notar que a filosofia espírita é tão contrária à teologia
e às explicações teológicas da natureza quanto as próprias ciências naturais,
não correspondendo, por isso mesmo, aos interesses de classe da burguesia.
No seu trabalho Dialéctica e Metapsíquica,
afirma Humberto
Mariotti: "A simples análise de um único caso de materialização deita por
terra o raciocínio filosófico, e queiram ou não, uma nova ideia do ser e do
mundo começará a mover-se na mente do pensador." Com isto, sim, temos uma
afirmação científica, devidamente comprovada pelos factos, de que nos dão
exemplo os casos clássicos de Richet, Myers, Lodge, Lombroso, materialistas
convertidos ao espiritualismo, diante da realidade incontrovertível da
fenomenologia espírita. Quando, pois, o materialismo dialéctico reduz à mesma
pauta da superstição primitiva a religião ancestral, com as suas formas de
exploração social, e os modernos trabalhos de pesquisa científica no terreno da
sobrevivência, comete uma heresia filosófica de proporções catastróficas.
Noutras palavras, reduz a tese dialéctica à antítese do dogma-de-fé, traindo a
síntese ou fechando a porta.
Não há, ao mesmo tempo, nenhuma justificativa para os homens
que, "bem situados" no mundo capitalista, deturpam os factos históricos e a
própria realidade presente, para sustentar a velha tese superada do
materialismo científico, graças ao costumeiro processo da exclusão, ainda agora
repetido pelos behavioristas e pavlovistas. Nessa categoria de irremissíveis
estão o Dr. Emilio Troise, com o seu Materialismo Dialéctico, e
entre nós os drs. Murilo de Campos, Leonídio Ribeiro, Henrique Roxo, – o
humorista científico do "delírio espírita episódico" – e, ultimamente, como a
mais recente contribuição da "cultura" indígena à luta contra o Espiritismo, o professor Silva Mello,
com o seu Mistérios e Realidades Deste e do Outro Mundo. Homens de
ciência, que preferem negar as experimentações rigorosamente científicas de
personalidades como Crookes e
Richet, ou desnaturá-las e deformá-las, para sustentar uma teoria sem base, ou
melhor, cuja suposta base se esvai aos olhos de todos, com a própria evaporação
da matéria, na era da física nuclear.
O livro de Mariotti não é, por isso mesmo, apenas um esforço
no sentido de colocar a verdade filosófica e científica da sobrevivência no seu
devido lugar. Mais do que isso, é um gesto de fraternidade, um apelo do
coração a esses transviados do conhecimento, na esperança de salvá-los,
ainda, do implacável naufrágio da história.
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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico –
Um gesto de fraternidade, 4º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Vi o caçador levantar o
arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)
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