É assim que muitas questões insolúveis para as outras
escolas são resolvidas pela doutrina das vidas sucessivas. As fortíssimas
objecções com que o cepticismo e o materialismo têm feito brechas no edifício
teológico – o mal, a dor, a desigualdade dos méritos e das condições humanas, a
injustiça aparente da sorte: todos esses tropeços se desvanecem perante a
Doutrina dos Espíritos.
Entretanto, uma dificuldade subsiste, uma forte objecção ergue-se contra ela.
Se já vivemos no espaço, dizem, se outras vidas precederam ao nascimento, por
que de tal perdemos a recordação?
Esta objecção, de aparência irrespondível, é fácil de ser destruída.
A memória das coisas que viveram, dos actos que se cumpriram, não é condição
necessária da existência.
Ninguém se lembra do tempo passado no ventre materno ou mesmo no berço. Poucos
homens conservam a memória das impressões e dos actos da primeira infância.
Entretanto, essas são partes integrantes da nossa existência actual. Pela
manhã, ao acordarmos, perdemos a recordação da maior parte de nossos
sonhos, embora, no momento, eles nos tenham parecido outras tantas realidades. Só
nos restam sensações grosseiras e confusas, que o Espírito experimenta
quando recai sob a influência material.
Os dias e as noites são como as nossas vidas terrestres e espirituais, e o sono
parece tão inexplicável quanto a morte. O sono e a morte
transportam-nos, alternadamente, para meios distintos e para condições
diferentes, o que não impede à nossa identidade de manter-se e
persistir através desses estados variados.
No sono magnético, o Espírito, desprendido do corpo, recorda-se de coisas que
esquecerá ao voltar à carne, cujo encadeamento, não obstante, ele tornará a
apanhar, recobrando a lucidez. Esse estado de sono provocado desenvolve nos
sonâmbulos aptidões especiais que, em vigília, desaparecem, abafadas,
aniquiladas pelo invólucro corpóreo.
Nessas diversas condições, o ser físico parece possuir dois estados de
consciência, duas fases alternadas de existências que se encadeiam e se
envolvem uma na outra. O esquecimento, como espessa cortina, separa
o sono do estado de vigília, assim como divide cada vida terrestre das
existências anteriores e da vida dos céus.
Se as impressões que a alma sente durante o decurso da vida actual, no estado
de desprendimento completo, seja pelo sono natural ou pelo sono provocado, não
podem ser transmitidas ao cérebro, deve compreender-se que as recordações de
uma vida anterior sê-lo-iam mais dificilmente ainda. O cérebro não pode
receber e armazenar senão as impressões comunicadas pela alma em estado de
cativeiro na matéria. A memória só saberia reproduzir o que ele tem
registado.
Em cada renascimento, o organismo cerebral constitui para nós uma espécie de
livro novo, sobre o qual se gravam as sensações e as imagens. Voltando à carne,
a alma perde a memória de quanto viu e executou no estado de liberdade, e só
tornará a lembrar-se de tudo quando abandonar de novo a sua prisão temporária.
O esquecimento do passado é a condição indispensável de toda prova e de todo
progresso. O nosso passado guarda as suas manchas e nódoas. Percorrendo a
série dos tempos, atravessando as idades de brutalidade, devemos ter acumulado
bastantes faltas, bastantes iniquidades. Libertos apenas ontem da barbaria, o
peso dessas recordações seria acabrunhador para nós. A vida terrestre é,
algumas vezes, difícil de suportar; ainda mais o seria se, ao cortejo dos
nossos males actuais, acrescesse a memória dos sofrimentos ou das vergonhas
passadas.
A recordação de nossas vidas anteriores não estaria também ligada à do passado
dos outros?
Subindo a cadeia de nossas existências, o entrecho de nossa própria história,
encontraríamos o vestígio das acções de nossos semelhantes.
As inimizades perpetuar-se-iam; as rivalidades, os ódios e as discórdias
agravar-se-iam de vida em vida, de século em século. Os nossos inimigos, as
nossas vítimas de outrora, reconhecer-nos-iam e estariam a perseguir-nos com
sua vingança.
Bom é que o véu do esquecimento nos oculte uns aos outros e que, apagando
momentaneamente de nossa memória penosas recordações, nos livre de um remorso
incessante. O conhecimento das nossas faltas e as suas consequências,
erguendo-se diante de nós como ameaça medonha e perpétua, paralisaria os nossos
esforços, tornaria estéril e insuportável a nossa vida.
Sem o esquecimento, os grandes culpados, os criminosos célebres estariam
marcados a ferro em brasa por toda a eternidade. Vemos os condenados da justiça
humana, depois de sofrida a pena, serem perseguidos pela desconfiança
universal, repelidos com horror por uma sociedade que lhes recusa lugar no seu
seio, e assim muitas vezes os atira ao exército do mal. Que seria se os crimes
do passado longínquo se desenhassem aos olhos de todos?
Quase todos temos necessidade de perdão e de esquecimento. A sombra que
oculta as nossas fraquezas e misérias conforta-nos o ser, tornando-nos menos
penosa a reparação. Depois de termos bebido as águas do Letes, renascemos mais alegremente
para uma vida nova e desvanecem-se os fantasmas do passado. Transportando-se
para um meio diferente, despertamos para outras sensações, abrem-se-nos outras
influências, abandonamos com mais facilidade os erros e os hábitos que outrora
nos retardaram a marcha. Renascendo sob a forma de criança, a alma culpada
encontra em torno de si o auxílio e a ternura necessários à sua elevação. Ninguém
cuida em reconhecer nesse ser fraco e encantador o Espírito vicioso
que vem resgatar um passado de faltas.
Entretanto, para certos homens esse passado não está absolutamente apagado. Um
sentimento confuso do que foram jaz no fundo de sua consciência. É a origem das
intuições, das ideias inatas, das recordações vagas e dos pressentimentos misteriosos,
como eco enfraquecido dos tempos decorridos. Consultando essas impressões,
estudando-se a si mesmos com atenção, não seria impossível reconstituir esse
passado, se não nas suas minúcias, ao menos nos seus traços principais.
Porém, no termo de cada existência, essas recordações longínquas ressuscitam em
tropel e saem da sombra. Avançamos passo a passo, tateando na vida; vem a morte
e tudo se esclarece. O passado explica o presente e o futuro ilumina-se mais
claramente. Cada alma, voltando à vida espiritual, recobra a plenitude das suas
faculdades. Para ela começa, então, um período de exame, de repouso, de
recolhimento, durante o qual se julga a si mesma e avalia o caminho percorrido.
Recebe opiniões e conselhos de Espíritos mais adiantados. Guiada por eles,
tomará resoluções viris e, na ocasião propícia, escolhendo um meio favorável,
baixará a um novo corpo, a fim de se melhorar pelo trabalho e pelo sofrimento.
Voltando à carne, a alma perderá ainda a memória das suas vidas anteriores e
bem assim a recordação da vida espiritual, a única verdadeiramente livre e
completa, perto da qual a morada terrestre lhe pareceria medonha.
Longa será a luta, penosos os esforços necessários para recuperar a consciência
de si mesma e as suas potências ocultas; porém, conservará sempre a intuição, o
sentimento vago das resoluções tomadas antes de renascer.
/…
LÉON DENIS, Depois da Morte, Parte Segunda Os Grandes Problemas
– Objecções.
(imagem de ilustração: Retrato de uma criança_1941, pintura de Edgar Maxence)