CAPÍTULO I
Fundamentos científicos da concepção neo espírita da vida
e da história |
Que somos? (IV)
Quando se trata de explicar a individualidade fisiológica, o positivista o
faz considerando o homem como simples agregado celular, como um organismo
social polizóico, análogo, segundo Dastre, a “uma cidade
populosa” cujas corporações “executam tarefas diferentes e proporcionam
produtos tanto mais variados quanto maior for o grau de adiantamento
adquirido”. A entidade psíquica biocêntrica, a causa directriz
centralizadora, não está contida na concepção empírica do eu físico.
Quando se trata de explicar a individualidade psicológica,
afirma-se analogamente que esta carece de unidade substancial. Assim diz Ribot:
“A unidade não é a entidade una dos
espiritualistas que se espalha em fenómenos múltiplos, mas a
coordenação de certo número de estados de incessante renovação, tendo por
único ponto de apoio o sentimento vago de nosso corpo. Esta unidade não vai de
cima para baixo nem de baixo para cima; não é um ponto inicial, senão um ponto
terminal.”
Isto equivale a dizer que o espírito não é um princípio essencial, produtor de
fenómenos psíquicos, mas o resultado, o produto, destes fenómenos coordenados.
Segundo Félix Le Dantec, a
individualidade transforma-se seguindo o processo lento e contínuo de seu
organismo, que, como é sabido, muda incessantemente. Diz ele:
“Mas, em virtude da lei de assimilação funcional e da conexão particular das
subsistências, haverá continuidade no tempo entre as diversas personalidades
sucessivas e por isto o eu psicológico acompanha o indivíduo
fisiológico desde o seu nascimento até à sua morte, por meio das suas
modificações incessantes.”
Que o indivíduo mude de personalidade, seguindo um processo
análogo ao do seu organismo, é uma verdade incontestável, mas não o é menos que
a individualidade, que não muda com a personalidade, nem que o processo de
transformação entre esta e o organismo seja necessariamente correlato. Por meio
de todas as mudanças, o homem se reconhece o mesmo indivíduo. E esta identidade
psicológica do eu não se pode explicar pela assimilação
funcional nem pela conexão particular das substâncias orgânicas e
funcionamentos de um mesmo eu. O Voltaire, o Hugo ou Tolstói nos anos
80, apesar de terem sido crianças, jovens, homens maduros e respectivamente
anciãos, de haverem mudado de físico, de ideias, de opiniões, de conduta e até
de carácter, são os mesmos indivíduos, eles mesmos se reconhecem nas suas
obras, através de todas estas mudanças de personalidade e apesar também de
haverem mudado muitas vezes os átomos, moléculas e as células do seu organismo.
Muitos fisiólogos, entre eles Marinesco e o mesmo Le Dantec,
para salvar a concepção positivo-materialista do fracasso, atribuem à célula
cerebral uma duração indefinida e o último destes sábios chega até a sustentar
que a matéria viva não se destrói, conceito que já havia sustentado Haeckel, no seu
“Monismo”. Admitir semelhante hipótese seria concluir que há em nós uma matéria
viva permanente e outra inerte que se renova sem cessar e que sofre o influxo
vital daquela, ou teria de se admitir, com Marinesco, que a célula cerebral
perdura por meio da incessante renovação da matéria do resto do organismo,
hipótese atrevida e de nenhum modo demonstrada pela ciência experimental.
A célula viva não pode ter uma duração ilimitada num
organismo que muda constantemente. Por sua parte, os psicofisiologistas, como Geley, lançam mão de
verdadeiros entes psicometafísicos, como faz Wundt com a
“percepção”, a que atribui o papel unitário para conciliar a multiplicidade dos
fenómenos psíquicos com a noção, hoje experimentalmente provada, da unidade do eu.
Mas, como diz Boutroux,
“em qualquer ponto de vista que alguém se coloque, a multiplicidade não contém
a razão da unidade”.
O ponto de apoio da psicologia positiva é a célula nervosa,
a que se atribui a faculdade de sentir, de transmitir e assimilar as sensações
e, por sequência, de produzir por si mesma e em relação com as demais, todos os
fenómenos psicológicos. Para atribuir-lhe tal faculdade, o positivismo deve
demonstrar antes, experimentalmente, que a célula nervosa está dotada de um
psiquismo particular e é capaz de ter espontaneidade. Sabe-se que é irritável,
mas nada tem demonstrado ainda que tenha sensibilidade, consciência e
disposições próprias para exercer espontaneamente as suas funções e associar-se
deliberadamente para realizar uma acção conjunta e menos ainda para transmitir
por assimilação a ideia de individualidade, a consciência do eu único
e indivisível. Afirma Claude
Bernard:
“A matéria por si mesma é inerte e até mesmo a matéria viva,
neste sentido, deve ser considerada como desprovida de personalidade.”
A célula não trabalha, pois, por si mesma; não tem
participação voluntária nos fenómenos psíquicos; trabalha sob a impulsão de
estímulos externos e internos; a alma é que tem a faculdade de sentir, de ter
consciência das suas sensações e de dirigir, consciente ou inconscientemente,
todos os fenómenos que se realizam nela. Quando, por exemplo, ferimos um dedo,
não é o centro táctil, senão nós que sentimos a dor e temos consciência desta
dor, ao mesmo tempo em que a parte em que se supõe localizada a sensação nada
sabe. Quando as ondas luminosas chegam aos nossos olhos penetram pelas pupilas
e formam sobre a retina a imagem de uma formosa paisagem que se encontra num
quadro posto ante a nossa vista, e por um movimento do nervo óptico, a
excitação que provoca transmite-se ao centro visual, dando-nos a imagem dessa
paisagem, perguntamos: é um acaso o centro visual ou sensorial ou os centros de
associação que vêm o quadro, os que têm consciência da beleza da paisagem, os
que apreciam o seu valor estético, admiram os variados matizes do colorido, a
perspectiva, os efeitos de luz, a regular proporção das suas partes, os que
fazem, enfim, o seu juízo crítico? Ou somos nós, seres espirituais (ainda
que unidos à matéria) dotados de sensibilidade artística, de sentimento
estético, de faculdades de apreciação e discernimento? O que sabe o
centro visual do sentimento e da beleza, o centro auditivo, da emoção que
produz na minha alma um trecho de música selecta, o centro táctil, da sensação
que produz a carícia de uma mãe, ou o centro da memória, do amor ou do ódio que
desperta uma lembrança? Em virtude de que lei, de que princípio e
obedecendo a que mandato, a que poder centralizador, as percepções e sensações
se associam para dar unidade à consciência, formar pensamentos, coordenar
ideias e juízos ou tomar determinações?
/…
Manuel
S. Porteiro, Espiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos
científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (IV),
4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura
de Josefina
Robirosa)
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