~ a questão metodológica |
Quem se atreve a afirmar, por exemplo, que
o roustainguismo é simples questão de opinião e por isso não deve ser
discutido, ou que este ou aquele pretenso cientista tem o direito de formular
as suas teorias, dá uma prova espontânea da sua ignorância do problema espírita
na sua inelutável posição epistemológica. Como obra evidente de mistificação,
um decalque malfeito e deformador da obra de Kardec, visando a
ridicularizar a doutrina verdadeira, o roustainguismo não
pode (absolutamente não pode) ser aceite por nenhum espírita consciente, a não
ser por efeito de fascinação. O direito de uma pessoa formular teorias em
qualquer campo do conhecimento está sujeito a uma exigência elementar e básica: a
de conhecer a fundo esse campo. Sem isso, e sem dar provas disso,
ninguém, por mais aparentemente culto que possa ser considerado ou que se diga,
não tem o direito de formular e divulgar teorias a respeito. Isso é ponto
pacífico em todo o mundo.
Vamos a exemplos concretos:
Quando o Sr. Oswaldo Polidoro, na sua incultura e na sua
ingenuidade, se propõe a fazer um Espiritismo do Século
XX, chamando-o de Espiritismo Divinista – pois entende que Kardec se sujeitou à
Ciência humana e negou a divina –, só os que ignoram a posição metodológica de
Kardec e a sua importância cultural podem aceitar esse absurdo. No outro
extremo, quando Hernani Andrade elabora em bases físicas uma Teoria Corpuscular
do Espírito para superar o suposto mecanicismo de Kardec, só as pessoas
incapazes de compreender a posição kardeciana e a função cultural do Espiritismo
podem bater palmas a essa tentativa absurda.
Esclareçamos um pouco mais, se possível:
Quando o Sr. Luciano dos Anjos, representando toda a Directoria da Federação
Espírita Brasileira, sustenta e propaga o roustainguismo e nega aos espíritas o
direito de instituir cursos de doutrina e de organizar instituições culturais
espíritas (defendendo ridiculamente o autodidatismo como ideal de formação
cultural), só os que nada entendem dos problemas culturais podem apoiá-lo nessa
proposta de retorno ao primitivismo. Nenhuma pessoa de bom senso e de certa
cultura poderá aceitar esse ilogismo a menos que esteja sujeita a um processo
de fascinação, essa forma aguda de obsessão que afecta a capacidade de julgar.
Quando o Sr. Artur Massena, presidente leigo da Sociedade de
Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, acha que as suas experiências de 36
anos no trato da mediunidade (não como cientista, que não é, mas como um prático,
um curioso e no máximo um amador) lhe dá o direito de contradizer Kardec e
introduzir novidades no assunto, só os que ignoram por completo o que seja
Ciência e o que seja cultura podem aprovar essa temeridade.
É necessário compreendermos o absurdo dessas posições, se
quisermos prestar algum serviço, por mínimo que seja, à causa espírita. Ainda
neste caso aplica-se admiravelmente a recomendação de Erasto a Kardec: é preferível
rejeitar dez possíveis verdades ou acertos nesse terreno do que aceitar uma
única mentira. Porque essa única mentira porá o Espiritismo em má situação
perante os homens de bom senso. E porque, como advertiu Kardec, devemos pisar
no terreno sólido da realidade, deixando as utopias, por mais fascinantes que
se apresentem, que se submetam à prova inexorável do tempo. Não somos utópicos,
somos realistas. Não jogamos com possibilidades, mas com factos. E fora dos
factos e da sua pesquisa rigorosa não temos Espiritismo.
Quem não compreender isso pode aderir a qualquer das formas de utopia que
levaram o Espiritualismo ao descrédito no século passado e continuam a
propagar-se nos nossos dias com ampla liberdade. Quem quiser permanecer
no Espiritismo terá
de submeter-se às exigências culturais da doutrina, que são sobretudo de ordem
metodológica.
Até agora, o Espiritismo só
foi conhecido no Brasil através dos cinco volumes da Codificação. Só agora
dispomos da colecção da Revista Espírita do tempo de Kardec, tão importante que
ele mesmo a incluiu no rol das leituras necessárias para o bom conhecimento da
doutrina, como vemos em O Livro dos Médiuns. Ninguém, entre nós,
conhece Kardec em profundidade. Homens de cultura, considerados como
grandes conhecedores da doutrina, publicaram trabalhos que provam a
superficialidade espantosa desse conhecimento. Se leram e estudaram, não
aprenderam, não assimilaram.
Dirigentes de grandes instituições doutrinárias mostram-se ignorantes do
sentido e da natureza da doutrina, enxertando-a com estranhos conceitos
provindos da época anterior ao aparecimento do Espiritismo. Chega-se a
combater, como perigoso, o desenvolvimento cultural do Espiritismo, e isso nas
altas rodas das instituições de cúpula.
Essa situação desoladora favorece o aparecimento de pretensos reformadores e
actualizardores da doutrina, que tanto surgem do meio do povo – através de médiuns ao serviço de
espíritos mistificadores –, quanto das elites culturais, através de teóricos
improvisados, que se aproveitam dos seus títulos universitários ou posições
sociais para impor ao povo as suas ideias pessoais, não raro tão absurdas como
as dos místicos sertanejos. E há também, para maior espanto das pessoas sensatas,
os que exercendo funções de responsabilidade no meio espírita, se mostram
admirados com os prodígios de mediunismo nas formas de sincretismo religioso
afro-brasileiro – como a Umbanda, a Quimbanda, o Candomblé – e bandeiam-se para
os terreiros.
Tudo isso resulta de uma fonte única: a ignorância da doutrina. As molas
secretas da vaidade, da auto-suficiência e das obsessões encorajam essa
proliferação de tolices, cuja finalidade evidente é a ridicularização do Espiritismo. Urge, pois,
que os espíritas sensatos e responsáveis tomem posição contra essa avalanche de
absurdos, tenham a coragem e a franqueza de falar a verdade em defesa do
Espiritismo, doa a quem doer.
/…
José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria
Corpuscular do Espírito. A questão metodológica, 2 de 2, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As Colhedoras de Grãos,
pintura a óleo por Jean-François
Millet)