Alucinações
espontâneas e voluntárias |
Nos
incidentes da vida ordinária e diuturna, todas as lembranças são constituídas
por imagens atenuadas, mais ou menos vagas, cuja fraca vivacidade não permite
distinguir-lhes a natureza.
Não
obstante, a regra comporta numerosas excepções, e todos os homens geniais, cuja
força imaginativa logrou criar obras-primas, foram dotados de intensa visão
mental, que lhes permitia perceber interiormente as personagens e ambientes,
engendrados pelo febricitante trabalho mental em gestação.
Sabido é
que os grandes romancistas, entre eles Dickens e Balzac, ficavam
às vezes obsidiados pela visão das personagens por eles idealizadas, a ponto de
as verem, diante de si, como se fossem personalidades reais.
Outro tanto
podemos dizer dos pintores, cujo poder de visualização pode chegar a substituir
os modelos vivos.
Brierre
de Boismont, no seu livro As alucinações, (págs. 26 e 451),
relata o seguinte facto:
“Um pintor
que herdara grande parte da clientela do célebre artista José Reynolds e
considerado, aliás, retratista superior a este, declarou-me ter tantas
encomendas, que chegou a pintar trezentos retratos, entre grandes e pequenos,
no curso de um ano.
Tal
rendimento de trabalho afigura-se-nos impossível; mas, o segredo da rapidez e
do extraordinário êxito do artista consistia na circunstância de lhe não ser
preciso mais que uma “pose do modelo original”.
Wigam
conta: Vi-o pintar, eu mesmo, sob os meus olhos, em menos de oito horas, o
retrato de uma pessoa das minhas relações, e posso assegurar que o trabalho era
cuidadosamente feito, além de fiel à semelhança.
Pedi-lhe
esclarecimento do seu método. Respondeu-me:
“Quando me
apresentam um novo modelo, fito-o com muita atenção durante meia hora, ao mesmo
tempo em que, de espaço a espaço, procuro fixar um detalhe da fisionomia, sobre
a tela.
“Meia hora
me basta para dispensar outras “poses”. Ponho, então, de lado a tela e ocupo-me
de outro modelo.
“Quando
volto ao primeiro retrato, penso na pessoa e sento-me no tamborete, de onde
passo a percebê-la tão nitidamente como se presente de facto ela estivesse.
“Chego
mesmo a distinguir-lhe a forma e a cor, mais nítidas e mais vivas, do que o
faria se a pessoa ali estivesse realmente.
“Nessa
altura, de tempos a tempos fito a outra, a figura imaginária, fixo-a facilmente
sobre a tela e, quando necessário, interrompo o trabalho para observar com
cuidado o modelo, na “pose” que tomara.
“E cada vez
que volto o olhar para o tamborete, lá vejo, infalivelmente, a minha
personagem.”
Registe-se,
contudo, que essa excepcional faculdade para objectivar imagens acabou por ser
fatal ao artista, pois que enlouqueceu no dia em que lhe não foi possível
distinguir as alucinações voluntárias e representativas de algumas pessoas, das
pessoas realmente vivas.”
Também nos
casos dessa natureza e sempre graças às novas luzes projectadas pelas investigações
metapsíquicas sobre a génese das alucinações, em geral, tudo
concorre para demonstrar que nas formas alucinatórias, a que estão mais ou
menos sujeitos romancistas e artistas, existe algo de objectivo e substancial.
É uma
indução que, aliás, já ressalta mais nítida da análise das sugestões
hipnóticas, tal como me proponho demonstrar.
/…
Ernesto Bozzano, Pensamento
e Vontade – Alucinações espontâneas e voluntárias, 4º fragmento da obra.