Situações novas ~
Essas possibilidades se tornam cada vez mais visíveis,
graças à aceleração do processo histórico no século actual (XX). A teoria marxista da
luta de classes, comprovada pelos factos, caminha, entretanto, dentro
das novas condições da evolução técnica e do progresso científico, para formas
inteiramente novas. A ideia da revolução proletária já não parece tão nítida e
precisa como nos fins do século XIX e nos princípios do século XX. Os
derradeiros movimentos revolucionários, inclusive o maior deles, a revolução
chinesa, apenas teoricamente se basearam no proletariado. As forças em luta
foram antes populares do que proletárias e, não somente no conjunto das massas,
mas também nos organismos dirigentes. Por outro lado, nos países de maior
desenvolvimento industrial, ao contrário do que pressupõe a tese marxista, a
revolução proletária se torna mais difícil, como nos Estados Unidos, na
Inglaterra, na Alemanha, em França e na Itália. Nos três últimos países, o
Partido Comunista tem crescido, não em virtude das condições específicas da
vida proletária, mas das condições gerais, com indiscutível predominância da
situação camponesa e pequeno-burguesa.
Podemos perguntar, diante disso: Onde se encontra a
“consciência de classe” do proletariado norte-americano ou do inglês – este o
mais antigo e o mais impenetrável ao marxismo –, para o golpe de
libertação no capital acumulado em escala jamais vista? As condições sociais
evoluem com rapidez vertiginosa. Os progressos da técnica, aliados ao
desenvolvimento intelectual e psíquico do homem, geram situações inteiramente
novas e, os marxistas se esquecem dos princípios dialécticos da sua própria
filosofia, continuando apegados a dogmas já superados pelo processo histórico. Pietro Ubaldi,
em A Grande Síntese, emite este conceito, em que os materialistas
dialécticos deviam meditar: “Se a luta foi, a um tempo, de natureza
física, hoje é económica e nervosa e, amanhã será espiritual e ideal, muito
mais digna de ser travada.”
O choque apocalíptico ~
Marx viu, na sua época, a necessidade de se construir
uma filosofia de classe para o proletariado, a fim de que este, tomando
consciência da sua missão histórica, se colocasse à altura da mesma. A
filosofia foi construída e tornou-se um dos grandes momentos do conhecimento
humano, mas o proletariado não a absorveu, senão em doses mínimas. Criou-se,
por isso mesmo, a teoria das “minorias dirigentes” e, o exemplo do bolchevismo,
na Rússia, tornou-se clássico. As minorias, entretanto, só podem
vencer, não pela violência, mas pelo excesso de violência e, só podem manter o
seu domínio pela opressão crescente. O tempo se encarregou de nos
mostrar quanto estas duras realidades colocaram o sonho do socialismo
científico distanciado das suas raízes revolucionárias.
Surge, assim, uma nova situação mundial. As minorias
marxistas criam as potências orientais, enquanto as minorias capitalistas se
entrincheiram no ocidente. O nosso grão de areia é dividido nos hemisférios
antípodas que hoje se digladiam, ameaçados de mútua destruição, pelas
perspectivas da guerra atómica. Para lutar contra o imperialismo, contra
os trustes imperialistas,
a Rússia Soviética teve também de construir o seu próprio poder imperialista,
criar o seu estatismo absorvente. O que Marx não previa aconteceu.
A violência dirigida, metódica, intencional, revelou-se
fonte inesgotável de novas formas de violência, em escala incalculável. E
a força das ideias mostrou-se mais poderosa do que a própria luta de classes,
mais criadora e destruidora do que os próprios antagonismos da produção
capitalista. A lei da “negação da negação” lançou-se, como o monstro Frankenstein,
contra o próprio criador, pois o idealismo marxista superou em muito, na sua
própria aplicação, a realidade proletária dos princípios do século. O
marxismo negou-se a si mesmo, para dar nascimento ao poder proletário, face a
face com o poder capitalista. Não são, por acaso, a tese e a
antítese da dialéctica hegeliana que
se defrontam, neste momento, em proporções apocalípticas, no panorama
internacional? E a síntese não virá do novo choque mundial, já em pleno
desenvolvimento?
Hora de libertação ~
Essa conclusão tem de ser a seguinte: os marxistas cometeram
um dos grandes equívocos da história, ao oferecerem à força a resistência de outra
força. Não é do choque dos “semelhantes”, mas dos “contrários” que
resulta a progresso e, os “contrários” não são determinados pela
forma, pela aparência, mas pela substância.
A forma proletária da violência não modifica a substância
própria da violência e, os “contrários”, traduzidos apenas numa expressão
formal, não podem produzir o progresso substancial. Por outro lado, o
proletariado não é uma substância, mas uma eventualidade, pois a divisão da
sociedade em classes é artificial. Armando-se o proletariado de poderes
semelhantes aos da burguesia, transformamo-lo em massa burguesa, da mesma
maneira por que esta, em muitos países, inclusive no Brasil, armada com os
poderes do feudalismo, se tornou um poder feudal, a antítese da burguesia
francesa que derrubou a Bastilha. Pois o homem é o mesmo, tanto numa
classe como noutra e, a influência das condições sociais não tarda a se fazer
sentir, na sua atitude perante a sociedade. Esquecer a substância
humana no processo económico é fugir para a abstracção de uma economia
autónoma, solta no espaço e no tempo. Nem foi por outro motivo que a jovem
revolucionária polaca Larissa
Reissner, a grande autora de Homens e Máquinas, ao ver os seus
antigos camaradas transformados nos comissários económicos, verdadeiros
“negociantes oficiais do partido”, temeu pelo naufrágio da revolução no pântano
burguês e preferiu deixar o território da revolução para voltar ao inferno de
sua génese, na Alemanha burguesa.
Nesta altura, poderíamos surpreender o sorriso irónico dos
materialistas-dialécticos, a nos perguntarem: “Mas o que deveríamos então, opor
à força e ao poder do capitalismo?” Não, não responderemos “o que deveriam”,
pois palavras foram deturpadas, perderam o seu verdadeiro sentido e, não
queremos que os interlocutores, mesmo imaginários, nos dêem as costas sem mais
aquela. Responderemos que tudo quanto se fez até agora tinha de
ser feito, estava nas linhas do determinismo-histórico, na exigência das
próprias condições sociais, não poderia fugir às contingências de um
mundo em fermentação, impulsionado pelo instinto e pela paixão. Voltemos
a Ubaldi,
que mais uma vez nos esclarece o problema: “Não sois ainda uma
sociedade, mas apenas uma grei, um desencadeamento de forças psíquicas
primordiais, explodindo confusamente.”
Mas responderemos, também, que a hora chegou – e agora é –
em que as coisas devem tomar novo rumo. Esse rumo o Espiritismo aponta
com clareza, a todos os que tiverem “olhos de ver”. É o rumo do
Espírito, da solução espiritual e, só ela nos livrará do torniquete da força
contra a força, da violência contra a violência, do jogo cego e inconsequente
do poder material. Ruskin, Tolstói, Tagore e Gandhi avultam
neste momento da história humana.
/…
José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Situações
novas, O choque apocalíptico, Hora de libertação, 13º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Fotografia de Rabindranath
Tagore)