No desenvolvimento da Cultura, no nosso mundo, podemos
assinalar três fases bem definidas no processo histórico:
A – Culturas Empíricas.
B – Culturas Religiosas.
C – Culturas Científicas.
As Culturas Empíricas desenvolvem-se nas relações primárias do
homem com a Natureza, através das experiências naturais. Nessas experiências o
homem elabora os três elementos básicos de toda a cultura:
– a linguagem.
– o rito.
– o instrumento.
Não se trata de uma elaboração sucessiva, mas sincrónica, de
uma reelaboração das experiências animais.
Tudo se encadeia no Universo, diz O Livro dos
Espíritos.
Nesse encadeamento as vozes animais transformam-se na
linguagem humana, os ritos em rituais da sociabilidade humana e dos cerimoniais
religiosos, as garras dos animais projectam-se nos instrumentos de madeira e
pedra de que o homem se serve para agir sabre a Natureza e adaptá-la às suas
necessidades de sobrevivência.
As experiências que desenvolvem a Cultura Empírica excitam
as potencialidades do espírito, desenvolvendo-as nas tribos e nas hordas. A lei
de adoração, proveniente da ideia inata de Deus no homem, gera a reverência
pelos poderes misteriosos da Natureza e institui os primeiros rituais de
reverência aos pagés ou xamãs e feiticeiros, bem como ao cacique e aos chefes
guerreiros. O culto às divindades da selva nasce desses rituais.
A Cultura Empírica gera a Cultura Religiosa das primeiras
tribos sedentárias. A ideia de Deus define-se mais nítida com o desenvolvimento
da Razão, sob a influência dos ritos da Natureza, nas primeiras civilizações
agrárias e pastoris. O milagre das germinações, no ritmo regular das estações
e, a proliferação dos rebanhos provam a existência de inteligências
controladoras dos fenómenos naturais e protectoras do homem. O animismo,
projecção da alma humana nas coisas, impregna a Natureza com uma vida factícia
em que a pedra, a árvore, o rio, o bosque, a montanha, o mar, tudo fala e pensa
em condições humanas. As manifestações espíritas provam a realidade anímica da
Natureza. A figura de Deus, Ser Superior, criador e dominador do mundo,
impõe-se ao homem na forma necessariamente humana. E como Deus não pode estar
sozinho, multiplica-se em mitos que simbolizam as suas várias actividades,
ligadas às actividades humanas. Ao mesmo tempo, as forças destruidoras e as
manifestações de espíritos malignos geram os mitos da oposição a Deus. Nasce o
Diabo desse contraste, estabelecendo a luta entre o Bem e o Mal, sujeitando o
homem à esperança da protecção divina e ao temor dos poderes maléficos.
A Cultura Religiosa configura-se na síntese dessa dialéctica
do invisível e do visível, do sentimento e da sensação, fazendo evoluírem as
civilizações agrárias e pastoris para a fase das civilizações teocráticas que
se desenvolvem no Oriente, nas regiões em que brilha a luz em cada alvorecer.
Os ritmos da Terra e do Céu: Do dia e da noite, as estações
do ano, o Sol e a Lua, as constelações anunciadoras de cada mudança no tempo, a
chuva e as Inundações, os terramotos, as erupções vulcânicas, as pestes, as
pragas, o relâmpago, o raio, as tempestades exigem a disciplinação do caos e ao
mesmo tempo a complexidade dos cultos.
Os soberanos das nações são filhos de Deus e possuem poderes
divinos.
A Cultura desenvolve-se na argamassa dos sentimentos e das
sensações.
A Fé define-se como sentimento e sensação em misturas
condicionadas pela Razão, expressa nas formulações filosóficas.
A Teologia brota desse complexo de mistérios como a Ciência
Suprema dos videntes e dos profetas, dos homens mais do que homens de que
falaria Descartes, homens privilegiados pela sabedoria infusa que
desce do Céu para iluminar a Terra.
A Cultura Religiosa é uma oferenda celeste que os homens
simplesmente homens não podem tocar com as suas mãos indignas, não podem
avaliar com as suas mentes entorpecidas pelos interesses materiais e as ambições
inferiores da vida perecível.
O mundo divide-se em duas partes inconciliáveis: surgem os
conceitos do Sagrado e do Profano.
As Culturas Religiosas desligam-se da tradição empírica,
rejeitam a experiência natural, relegando-a ao campo do profano, do pecaminoso.
Entregam-se à alienação do suposto, do imaginário.
O Cristianismo envolve-se nas contradições humanas:
cai na simonia, no comércio ambicioso de sacramentos e
indulgências, pregando a renúncia ao mundo e a santidade da
pobreza;
proclama a humildade como virtude e investe-se do poder
político;
denuncia o paganismo e o judaísmo como heréticos e assimila
os seus elementos rituais e a sua política gananciosa;
prega o Reino de Deus e apossa-se dos reinos terrenos;
impugna a sabedoria grega e constrói o seu saber com
decalques de Platão e Aristóteles;
ensina a fraternidade e promove as guerras fratricidas em
nome de Deus;
erige-se em religião do Deus Único e divide Deus em três
pessoas distintas;
institui o celibato como virtude e faz comércio ambicioso do
sacramento do matrimónio;
combate a magia e reveste o seu culto de poderes mágicos;
luta contra as heresias e comete a suprema heresia de
submeter Deus ao poder do sacerdócio no acto eucarístico;
profliga a idolatria e enche os seus templos com
ídolos copiados da idolatria mitológica, chega ao máximo da alienação
estabelecendo o sistema fechado das clausuras e dos mosteiros segregados;
prega o Evangelho e nega ao povo o acesso aos textos que
considera privativos do clero;
proclama a supremacia espiritual do amor e semeia o ódio aos
que não aceitam os seus
princípios.
A alienação cristã faz da cultura um sincretismo de absurdos
assimilados de dogmas e rituais bastardos de igrejas e ordens ocultas da mais
alta Antiguidade, transformando o conhecimento em gigantesca manta de retalhos
em que as próprias vestes sacerdotais e paramentos do culto são copiados de antigas
e condenadas igrejas.
A cultura cristã desenvolve-se com pressupostos falaciosos e
um fabulário ridículo enxameado de superstições erigidas em verdades absolutas,
provindas de revelações divinas.
A verdade artificial da sabedoria eclesiástica encobre a
realidade com o espesso véu das elucubrações dos teólogos, modelos de
esquizofrenia catatónica e megalomania delirante.
A cultura em evolução nas fases anteriores cai na estagnação
de um charco de mentiras sagradas, pílulas doiradas de um anestésico.
Interrompe-se o processo cultural.
Não se pode conhecer mais nada. Cada Igreja tem a sua
verdade própria e inverificável, sendo a Igreja Cristã a mais poderosa barreira
a qualquer tentativa de investigação da realidade. A morte cruel é o prémio dos
que se atreverem a rasgar o Véu de Isis para mostrar o corpo da Verdade Nua.
O desenvolvimento da imaginação criadora levara a cultura a
um solipsismo devorador.
Tudo estava esclarecido, a imaginação dos poetas
(considerados profetas) resolvia todos os mistérios em termos de mitologia
grega ou tradição romana, os teólogos solucionavam os problemas da vida e da
morte com belas frases em latim, as Igrejas detinham a Verdade Absoluta,
amaldiçoando-se entre si e, velavam pela ordem cultural perseguindo e matando
em nome de Deus os atrevidos que tentassem profanar a Palavra de Deus, escrita
na Bíblia por velhíssimos judeus que haviam, num complô com César e
o seu legado Pilatos, condenado à flagelação e à cruz um jovem
carpinteiro que tivera a audácia de se apresentar como o Messias de Israel.
A Cultura Científica teve de romper a golpes de atrevimento
a selva selvaggia dessa cultura religiosa inconsequente,
contraditória e arrogante, empalhada como um pássaro morto em velhos
pergaminhos de uma sabedoria feita de suposições e elucubrações pretensiosas.
O mundo dos homens desligara-se totalmente da realidade,
fechando-se num casulo de formulações abstractas.
Mais bizantina que Bizâncio, Roma sofismava sobre problemas
que se recusava a conhecer. Só a ignorância total e a ingenuidade das
populações bárbaras poderiam aceitar. Após a queda do Império do Ocidente,
comprovava-se historicamente a afirmação evangélica de que o ensino de Jesus seria
deturpado e necessitaria de tempo para que os homens pudessem compreendê-lo.
O milénio medieval teria a função de desenvolver a razão
como guia do pensamento e freio da imaginação, ao fogo das tragédias e loucuras
de um misticismo criminoso, para que, no Renascimento, os frutos de
experiências dolorosas abrissem perspectivas para o desenvolvimento de uma
cultura realista, apoiada em pesquisas metódicas da realidade.
Foi então que a esquizofrenia mundial se revelou em
definitivo: o espírito humano estava dividido numa cultura fantasiosa, formada
pela dogmática absurda das religiões e, numa cultura rebelde, atrevida e
exigente, que arrancava os homens da ilusão de um saber confuso, para
oferecer-lhes o saber legítimo que iniciara a fase das experiências empíricas e
se negara a si mesma no desenvolvimento alucinado do fanatismo religioso.
O movimento da Reforma, desencadeado por Lutero,
em consequência das lutas de Abelardo e
das proposições de Erasmo
de Roterdão, em conjugação aparentemente ocasional com as tentativas de
pesquisas objectivas de Galileu, Copérnico, Giordano
Bruno e outros mártires da Ciência nascente, marcavam os rumos de uma
nova concepção do mundo e do homem.
Abelardo foi o precursor medieval de Descartes,
que por sua vez foi o precursor de Kardec.
Aos fundamentos emocionais da Fé absurda e cega, os
pioneiros do retomo ao real ofereciam os fundamentos da Razão esclarecida e da
pesquisa científica.
A Verdade ressurgia das cinzas das fogueiras criminosas e a
Fé de olhos abertos substituía a ceguinha esclerótica das sacristias.
Mas a luta pela Verdade da concepção cristã restabelecida
só atingiria o seu apogeu nos meados do Século XIX, com a Codificação do Espiritismo,
através das pesquisas pioneiras de Kardec sobre
os fenómenos mediúnicos, hoje admitidos pela Ciência com a denominação de
paranormais.
Kardec provara que os médiuns não eram anormais, como
pretendiam os investigadores da Medicina e da Psicologia, nem sobrenaturais,
como pretendiam os defensores de dogmas obsoletos, mas naturais e normais.
A Mediunidade impunha-se à pesquisa dos cientistas
exponenciais da época, que rasgavam ao mesmo tempo o Véu do Templo, revelando os
seus mistérios, os Véus de Isis, para desvendar o sentido dos símbolos
mitológicos.
Os homens começaram então a aprender que não sabiam nada
e tinham de lutar para descobrir a Verdade escondida atrás da aparência
enganosa das coisas dos seres.
A Ciência Espírita instalou-se no mundo, com as
consequências necessárias da Filosofia Espírita e da Religião em Espírito e
Verdade.
O Espiritismo, nos seus três aspectos, está hoje confirmado
pela Cultura Científica e o seu alcance cósmico confirma-se ao ritmo acelerado
das conquistas culturais do século, restabelecendo o ensino deturpado pelas
ambições humanas, que Jesus de Nazaré semeou em palavras de vida e
imortalidade nas almas de todos os tempos.
/…
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, I – O PROCESSO
CULTURAL, 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O monge estuda as Escrituras |
1877, lápis e giz-estudo ao painel “A Educação de São Luís” Panteão, Paris (a mesma imagem, do
monge, aos pés de Branca de Castela e de São
Luís, nesse painel, óleo sobre tela) ambos de Alexandre
Cabanel)