ROUSTAING E OS SEUS ADMIRADORES ~
O roustainguismo tem pequena quantidade de adeptos no
Brasil, não obstante ser a Federação Espírita Brasileira o principal núcleo de
irradiação dessa doutrina. Eis o paradoxo, pois essa instituição é também o
maior núcleo editorial das obras kardequianas e das subsidiárias do
Espiritismo. Entretanto, por quê tanto interesse na divulgação das obras dessa
doutrina? Em que se baseiam os seus adeptos para entendê-las como obras
espíritas? Quais são os principais argumentos de que se utilizam para
justificar essa atitude? Quais são os pontos em comum entre Allan Kardec e Jean-Baptiste Roustaing e
como se dá a ligação dos dois, segundo o pensamento dos roustainguistas? Em que
se apoiam para afirmar com tanta convicção que o roustainguismo é necessário ao
Espiritismo?
Somente um estudo mais ou menos amplo permite que se responda
a essas indagações. Várias são as obras, editadas em sua grande maioria pela
Federação Espírita Brasileira, que pretendem comprovar os possíveis laços entre
as duas doutrinas, embora os seus autores soubessem da posição contrária de
Kardec a Roustaing. Esse factor, porém, não os impediu de escrever e pensar
pela cartilha roustainguista. Mas é a biobibliografia intitulada
"Allan Kardec", por incrível que pareça, que mais permite obter uma
ideia dos principais pontos em que se apoiam os roustainguistas para prosseguir
na sua crença. Em três volumes, "Allan Kardec" foi editada pela
Federação Espírita Brasileira e os seus autores são Zêus
Wantuil e Francisco Thiesen, ambos ligados à direcção da Federação. A
obra apareceu com a pretensão de ser o mais profundo trabalho de pesquisa sobre
o codificador do Espiritismo. Entretanto, no ardor da pesquisa e das
interpretações, os autores não puderam evitar que as suas convicções pessoais
viessem a influir nas conclusões. Afirmaram, inclusive, que Roustaing é
necessário ao Espiritismo. Assim, pois, "Allan Kardec" é, ao mesmo
tempo, o melhor trabalho que já se fez sobre a vida e a obra do codificador e o
mais duvidoso em matéria de interpretação do pensamento kardequiano.
"Allan Kardec" tem duas partes distintas: a
biobibliografia e os ensaios de interpretação. Para a primeira fora preciso
apresentar documentos, caso contrário ficaria sem validade; a segunda navega
nas ondas do pensamento dos autores. Entretanto, mesmo para ela, há momentos em
que a gravidade do assunto pede provas. É o que acontece quando se pretende
afirmar que uma doutrina integra a outra. Mas, no caso de Roustaing, os autores
de "Allan Kardec" não se preocuparam com isso. Valeram-se, apenas, do
selo editorial pelo qual a obra foi lançada e da posição que ocupavam na
Federação, na esperança de que estes factores pudessem pesar decisivamente e –
até! – definitivamente na mente dos leitores. E não deixaram de ter razão, pelo
menos quanto à parcela daqueles que tudo lêem sem nada comparar, analisar ou
criticar.
A análise dessa obra, especificamente nos aspectos em que
toca no roustainguismo, permitirá, pois, responder às indagações acima.
ABRINDO CAMINHO
Quando se pretende atingir um destino, tem-se dois caminhos:
a estrada e o atalho. Pode ocorrer que o atalho seja até mais longo que a
estrada. Isso, porém, não terá a menor importância se ficar provado que a
estrada não leva ao destino que se "deseja"; vai-se pelo atalho.
Fundamental é chegar ao destino. Pode ocorrer, também, que o atalho obrigue à
tomada de iniciativas perigosas em determinados trechos, desvios aqui, saltos
ali. Ainda assim, vai-se pelo atalho se o destino da estrada, comprovadamente,
não for o do desejo.
Eis o que ocorre com a obra "Allan Kardec", a
partir do seu segundo volume. Ao primeiro volume reservam-se todos os elogios
para o trabalho, pois ele se resume ao seu próprio subtítulo: meticulosa
pesquisa biobibliográfica e é desenvolvido de maneira inteligente. Já o segundo
e terceiro – pesquisa biobibliográfica e ensaios de interpretação – tomam rumos
muito discutíveis. O primeiro é a estrada; os outros dois são o atalho.
Já na introdução do segundo volume, os autores assumem certa
posição que, à primeira vista, não teria maiores consequências se não se
descobrissem mais tarde as suas intenções. É com relação à condição humana
do codificador do Espiritismo. Posição, aliás, que é a de todos os espíritas
estudiosos, mas que na obra "Allan Kardec" aparece com destino
diferente: "Operando (…) no campo vasto da Codificação do Espiritismo,
Allan Kardec sofria as compreensíveis limitações que a condição humana, segundo
leis invioláveis, impõem àqueles que vestem a indumentária carnal". E
mais: "Com serenidade reconhecemos que no Movimento Espírita hodierno, no
País e além-fronteiras, não faltam os afeitos a afirmar que a obra kardequiana
está ultrapassada, tanto quanto sobram os não menos temerários que pretendem
conferir à figura do Codificador o dom da infalibilidade, nas questões em geral
– não apenas nas que se vinculam à Fé, propriamente dita – levando os adeptos
ao absurdo de admitir na pessoa de Allan Kardec uma dupla condição falsa de
criatura imune ao erro e às imperfeições dos seres terrenos, relativos,
condição que ele por várias vezes verberou, francamente, quando na vida
física".
Há dois pontos, aí, a serem destacados: primeiro, a
afirmativa de que Kardec "sofria as compreensíveis limitações" do
corpo físico. Numa palavra: poderia cometer erros. Sem dúvida, uma
possibilidade real. Segundo, a informação de que há adeptos que, a despeito de
tudo, consideram que Kardec fora infalível. Mas seria somente esta a intenção
dos autores? Não é de se crer, porque mais adiante eles afirmam: "Foi a
Roustaing, pois, que o Alto conferiu, na Equipe da Codificação, a organização do
trabalho da fé". E o fazem sabedores de que Kardec condenou Roustaing e a
sua obra: primeiro, demonstrando que o corpo fluídico de Jesus era a base
em que assentava a obra "Os Quatro Evangelhos"; depois, afirmando que
Jesus jamais tivera um corpo fluídico.
É preciso observar que o codificador não considerou
Roustaing como membro da "equipe da codificação". Sendo ele chefe no
plano dos encarnados dessa equipe, precisaria estar muito enganado para não o
reconhecer como colaborador. Não só não o considerou como condenou a sua obra!
Surge, pois um impasse: ao mesmo tempo em que Kardec fecha as portas a
Roustaing e, os seus biógrafos o consideram como membro da equipe da
codificação. Um impasse que não apresenta outra saída senão a de que, no
pensamento dos biógrafos, Kardec cometera um erro (que teria de ser
considerado, pois, de imensas proporções) com relação a Roustaing e à sua obra.
E, convenhamos, para convencer o leitor disto nada melhor do que dar ênfase à
falibilidade humana de Kardec…
Existe ainda, em favor desta tese, o facto de que, muito
raramente, a falibilidade de Kardec aparece nas discussões. A sua posição (que
ele mesmo assumiu) perante a Doutrina Espírita é tão nítida que até os adeptos
iniciantes ou pouco estudiosos vêem eliminada qualquer dúvida relativa à
condição humana (portanto, falível) dele. Em qualquer das obras da codificação
essa posição aparece com realce (chega a ser com ênfase até), de tal modo que o
estudante mais desinteressado não se pode furtar ao conhecimento do facto.
Veja-se, por exemplo, este trecho recolhido de "O Livro dos
Espíritos", introdução: "Pode-se ter muito espírito e até mesmo muita
instrução e, não se ter bom senso; ora, o primeiro indício de falta de senso é
a crença na própria infabilidade". Kardec assim fala referindo-se aos
cépticos e quem diz dos outros (por consequência) diz de si mesmo. Ele separava
a sua participação pessoal, pois, da dos Espíritos, sabedor de que esta
participação deveria limitar-se a certos princípios. E dava maior destaque
à opinião dos Espíritos quando estes concordavam entre si: "Apesar da
parte que cabe à actividade humana na elaboração desta doutrina – diz em
"A Génese" – a sua iniciativa pertence aos Espíritos... " Não é
possível, portanto, confundir Kardec com alguém que pretendesse ser infalível,
daí a raridade com que o assunto surge à discussão.
Assim, não se compreende bem a finalidade com que os autores
trazem a questão à baila com tanto ênfase, senão que isso favoreça interesses
ali ainda não revelados.
Veja-se, também, esta outra discussão em torno da liberdade
de pensamento: "A liberdade de pensamento que o Espiritismo sempre
reclamou para os seus adeptos… Kardec a entendia dentro do critério da
reciprocidade. E, coisa estranha, às vezes se encontram espíritas que fazem
restrições aos próprios companheiros de trabalho, enfatizam o seu direito à
liberdade de pensar, sobre determinados pontos doutrinários, de forma diferente
de outrem, mas não admitem, em contrapartida, o direito de outrem defender ideias
diversas das deles, sobre os mesmos pontos".
Assim como a questão da falibilidade se canaliza para um
possível erro do codificador em relação a Roustaing, esse ponto da liberdade de
pensamento leva aos opositores de Roustaing, uma vez que eles têm investido de
forma segura contra os roustainguistas e as instituições que o divulgam, das
quais se destaca a FEB. Apenas isto justificaria também o ênfase aí utilizado.
Se assim for (e parece que é), a questão deveria ser analisada sob um outro
ângulo, também: a quem atingem e de que forma o fazem os anti-roustainguistas
e, se é verdade que eles não admitem "o direito de outrem
defender ideias diversas das deles". Antes, porém, que estas respostas
sejam dadas faz-se necessário arguir dos motivos reais que estimulam os
anti-roustainguistas a porfiarem pela causa.
Uma coisa muito clara é esta: a discussão em torno da velha
tese do corpo fluídico de Jesus nos meios espíritas só teve início depois do
lançamento de "Os Quatro Evangelhos", de Roustaing. E mesmo assim
porque a obra apareceu como elemento integrante da Doutrina Espírita. Em vista
disso, a primeira providência de Kardec foi colocar a questão de molho. Depois,
condenou o Cristo agénere. Logo, a obra de Roustaing ficou sem base e perdeu a
razão de ser. Esta é uma das principais causas que motivam os
espíritas a discordarem dos seguidores de Roustaing. Mas não é a única. Outra
causa está no facto de que "Os Quatro Evangelhos" foi levado a exame
crítico e não resistiu. Uma coisa, pois, se alia à outra: a condenação de
Kardec e a constatação de que a condenação era fundamentada. Isto significa que
Roustaing não faz parte da codificação.
A questão, porém, não pára aí. É curioso verificar que
depois de praticamente desaparecido na França e outros países europeus, o
roustainguismo apareceu no Brasil e tomou impulso. Muitos roustainguistas vêem
neste facto algo semelhante com o Espiritismo, que aqui também tomou grande
impulso. Há, porém, diferenças entre um e o outro. Por exemplo, quando o
Espiritismo veio para o Brasil estava ainda bastante forte na França. Aqui teve
continuidade no seu desenvolvimento e só mais tarde, já no presente século, foi
que o Espiritismo perdeu terreno naquele país. Mas o roustainguismo não; quando
chegou ao Brasil tinha sido já condenado e relegado ao esquecimento na França e
em toda Europa por homens como Léon Denis, Gabriel
Delanne, Camile Flammarion, Ernesto
Bozzano, sem citar Kardec, evidentemente. Flammarion, por exemplo,
dissera (i) : "Se Kardec é no espaço um astro de infinito
esplendor, que eu acompanho como satélite, ainda e sempre, onde resplende o
autor da "Revelação das Revelações"? Bozzano: "O caso de J.-B.
Roustaing, sob o título absoluto de "A Revelação das Revelações" é,
portanto, um facto "dogmático" feliz e universalmente liquidado''. Já
Denis afirmara: "Quanto às obras de Roustaing devo dizer-vos que elas não
gozam de nenhum crédito no nosso país. Nelas a imaginação teve um papel
bem mais preponderante que a mediunidade. Ninguém já pensa nelas, entre
nós, há muito tempo". (ii)
Para Herculano
Pires (iii), "o roustainguismo chegou ao Brasil num
momento crítico, quando a nossa cultura estava sendo abalada por várias
infiltrações europeias. Entre elas, o Espiritismo, que chegara da França e
empolgara alguns espíritos cultos na segunda metade do século passado. O
roustainguismo se apresentava como integrado no Espiritismo e tocava de perto a
sensibilidade mística de alguns ex-católicos. A França era então o centro
da civilização e Paris o cérebro do mundo''. O roustainguismo
foi adoptado por algumas instituições e, mais tarde, pela FEB, que o divulga
até aos nossos dias. Esse facto, ou seja, uma instituição que adquiriu respeito
e se arroga do título de "Casa Mater do Espiritismo no Brasil", fez e
faz com que os espíritas se lancem contra ela, de várias partes, porque
entendem que ela está contra Kardec, contrariando até a sua posição, para dar
cobertura a uma doutrina que fere a própria razão. O que os espíritas não
entendem é como pode a FEB agir de tal modo. "O prestígio da FEB – é ainda
Herculano quem diz – e a sua insistência na divulgação e sustentação do
roustainguismo dá certo vigor a este, particularmente no centro e no norte do
país". Então, perguntam os espíritas: se Kardec condenou Roustaing, sob
que argumento a FEB o defende? E continuam sem entender nada porque é que a FEB
não abre mão do seu direito de divulgar Roustaing…
Na sua gritaria, não nos parece que os espíritas contrariam
o direito de livre pensar dos roustainguistas. Aliás, estes pensam livremente
desde a elaboração e publicação de "Os Quatro Evangelhos". A coisa
toda se prende mais ou menos a isto: Roustaing é, como disse Herculano Pires,
"o cavalo de Tróia do Espiritismo"; é um cancro no movimento e dói,
dói muito ver a principal instituição espírita do país defendendo uma tese que
o Codificador condenou e a condenam grande e expressiva parcela do movimento
espírita. Esta é, ademais, uma defesa anti-democrática, autoritária, promovida
por uma Casa que reúne as opiniões do movimento espírita nacional mas não lhe
dá ouvidos senão naquilo que lhe convém!
/…
(i) Conf. o livro "Simulador, o Cristo?", de
Mariano Rango d'Atagona, 1.ª edião, 1942, reportando-se a uma comunicação
mediúnica recebida do Espírito que, quando encarnado, se opusera a Roustaing.
(ii) Citadas, respectivamente, em "Simulador, o
Cristo?", de d'Aragona, e "Máscaras Abaixo!",
de Ricardo Machado.
(iii) "O Verbo e a Carne", 1.ª edição, 1972,
página 56.
Wilson Garcia, O Corpo Fluídico, Capítulo
Terceiro – ROUSTAING E OS SEUS ADMIRADORES, ABRINDO CAMINHO, 8º fragmento desta
obra.