A Força e a Matéria I Posição do Problema (V)
Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de
certa idade, é se imaginarem no direito de afirmar sem provas, a se embalarem
na doce ilusão de serem os outros obrigados a acreditar em palavras. Coisas que
a verdadeira Ciência profundamente silencia, afirmam-nas eles, categóricos.
Afirmam, como se houvessem assistido aos concelhos da Criação, ou como se
fossem os próprios autores dela.
Eis alguns espécimes de raciocínio, cuja infalibilidade é
tão ciosamente proclamada.
Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se
dêem ao trabalho de analisar as seguintes afirmações:
Moleschott diz
que a força não é um Deus que impele, não é um ser separado da substância
material das coisas (quer dizer separado ou distinto?). É a propriedade
inseparável da matéria, a ela inerente de toda a eternidade. Uma força, não
ligada à matéria, seria um absurdo. O azoto, o carbono, o oxigénio, o enxofre e
o fósforo têm propriedades que lhes são inerentes de toda a eternidade... Logo,
a matéria governa o homem.”
Cada uma destas afirmativas, ou negativas, é uma petição de
princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis
utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força vale como
propriedade da matéria. Ora, essa é, precisamente, a questão. Os campeões
da Ciência, que pretendem representá-la e falar com e por ela, não se dignam de
seguir o método científico, que é o de nada afirmar sem provas. Nas dobras do
seu estandarte, com letras douradas, estereotiparam uma legenda fulgurante, a
saber: – toda a proposição não demonstrada experimentalmente só merece
repúdio – e, no entanto, logo de início, esquecem a legenda. São
pregadores de uma nova espécie: façam o que digo e não o que eu faço.
Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não impulsiona a matéria,
exprimem um conceito imaginativo, nada científico.
Ouçamos, ainda, outras afirmativas gerais: “A matéria – diz Emil du Bois-Reymond –
não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos, se atrelassem ou desatrelassem
alternativamente as forças. As suas propriedades são inalienáveis,
intransmissíveis de toda a eternidade.”
Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott: “Quanto
mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da
Humanidade, por uma judiciosa associação de ácido carbónico, de amoníaco e de
outros sais, de ácido húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”,
etc.
E também no nosso país: “Uma ideia – diz a Revista Médica –
é uma combinação análoga à do ácido fórmico; o pensamento depende do fósforo; a
virtude, o devotamento, a coragem, são correntes de electricidade orgânica”,
etc.
Quem vos disse tal coisa, senhores redactores? Olhem
que os leitores hão-de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos,
quando tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista
científico, esses raciocínios são totalmente nulos. De facto, não se sabe o que
mais admirar em tais expoentes da Ciência: se a singular audácia, se a
ingenuidade de suas presunções.
Um tal método pode ter o merecimento da clareza, mas ninguém
o inquinará de modesto, nem de verdadeiramente científico.
É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a
carga pesada das suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse, senhores
(mas deve ouvir, porque sois seus filhos) – se a Ciência vos ouve, não pode
deixar de rir das vossas ilusões.
A Ciência, dizeis, afirma, nega, ordena, proíbe... Pobre
Ciência, em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao coração um
descomunal orgulho.
Não, meus senhores e, vós bem o sabeis (cá entre nós) que, nestes domínios, a
Ciência nada afirma, nem nega, porque apenas procura.
Reflecti, pois, que a armadura das vossas parlandas ilude os
ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a faculdade de perlustrar
os vossos estudos e, considerai que, quando nos arrogamos o título de
intérpretes da Ciência, ficamos na obrigação de não falsear o título, de
permanecer-lhe fiel e, por consequência, modestos tradutores de uma causa que
tem na modéstia o seu primacial merecimento.
Se, da questão da força, em geral, passarmos à da alma,
observaremos que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversários não
vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não existe personalidade no ser
vivente e pensante; que o espírito, como a vida, mais não é que o resultado
físico de certos agrupamentos atómicos e que a matéria governa o homem tão
exclusivamente quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais. O fenómeno
mais curioso é o de imaginarem que aclaram o problema com as suas explicações
obscuras:
– “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler (*),
outra coisa não é senão uma força da matéria, imediatamente resultante da
actividade nervosa”...
Mas... de onde provém essa actividade nervosa?
– Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os
actos do espírito são o produto imediato do movimento nervoso, determinado pelo
éter, ou do movimento deste nos nervos – ao qual importa ajuntar uma variação
mecânica, física ou química, da substância imponderável dos nervos e de outros
elementos orgânicos...
– Que há em todos os nervos uma corrente eléctrica –
predica du
Bois-Reymond – e que o pensamento mais não é que movimento da matéria.
Para Vogt, as
faculdades da alma valem como funções da substância cerebral e estão para o
cérebro como a urina para os rins (**). E Moleschott assegura
que a consciência, a noção de si mesmo, mais não é que movimentos materiais,
ligada a correntes neuro-eléctricas e percebidas pelo cérebro.
Teremos o ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo
deste mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e lentilhas.
Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.
Admiremos, sobretudo, a conclusão fundamental: “E aí temos
nós porque os sábios definem a força uma simples propriedade da matéria. Qual é
a consequência geral e filosófica desta noção tão simples quanto natural? É que
aqueles que falam de uma força criadora, tendo de si mesma originado o mundo,
ignoram o primeiro e mais simples princípio do estudo da Natureza, baseados na
Filosofia e no empirismo.”
E, acrescentam – “qual o homem instruído, com um conhecimento
mesmo superficial das ciências naturais, capaz de duvidar não seja o mundo
governado como geralmente se afirma e, sim que os movimentos da matéria estão
submetidos a uma necessidade absoluta e inerente à própria matéria? “
Assim, pela só autoridade de alguns alemães, que vêm
ingenuamente declarar não admitirem, seja como for, a existência de Deus e da
alma, agarrando-se embora a uma sombra de noção científica para justificar as
suas fantasias, teríamos nós, a seu ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de
crer em Deus.
Tivessem tido apenas a precaução de aplicar as regras do
silogismo ao seu método; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as
premissas irrefutáveis e não tirar delas senão uma conclusão legítima e,
poderíamos acompanhá-los no raciocínio e conferir-lhes um prémio de retórica.
Mas, vede em que consiste o seu processo:
Maior – A força é uma propriedade da matéria.
Menor – Portanto, uma propriedade da matéria não pode ser
considerada superior, criadora ou organizadora dessa matéria.
Conclusão – Logo, a ideia de Deus é uma concepção absurda.
É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a
discutir.
Combatendo cerradamente os métodos do Cristianismo, essa gente muito se
assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a divindade de Jesus, assim começavam:
– Jesus é Deus e, desse princípio não provado extraiam todas
as deduções.
Convictos estamos de honrar grandemente esses escritores,
aplicando aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles talvez nunca
sonharam seguir.
Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra
forma mais ingénua, assim:
Antecedente – Matéria e força encontram-se sempre
associadas.
Consequente – Logo, a força é uma qualidade da matéria.
Aí temos, penso, um entimema de novo
género e de consequências bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores
Alemães raciocinam, bem como os seus clarividentes imitadores, positivistas da
nossa moderna França.
No primeiro caso, o raciocínio peca pela base;
e, no segundo, nem mesmo faz jus a essa censura, porque é uma infantilidade.
Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerilidade, ou melhor
– perversão da faculdade de raciocinar – a que se reduz o movimento
materialista dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a propósito a frase
do misantropo que dizia não ser o homem um animal pensador, mas, falador.
Todo o fundamento desta grande querela, toda a base deste
edifício heterogéneo, cujo desmoronamento pode esmagar muitos cérebros sob os
escombros; toda a força deste sistema que pretende dominar o mundo, presente e
futuro; todo o seu valor e potência, repousam nessa assertiva fantasiosa,
arbitrária e jamais demonstrada, de ser a força uma propriedade da matéria.
E é fingindo acompanhar a rigor as demonstrações
científicas e só se apoiar em verdades reconhecidas; é confugindo-se
ao estandarte da Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes; é, enfim,
com ela mascarando-se, que os pontífices do ateísmo e do niilismo proclamam as
suas belas e edificantes doutrinas.
Mas a Ciência não é uma mascarada. A Ciência fala
de viseira erguida, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso brilho.
Serena e pura na sua majestade, ela se pronuncia simples, modestamente,
como entidade consciente do seu valor intrínseco. Nem procura impor-se e,
sobretudo, não aventa coisas de que não possa estar segura. Em vez de afirmar
ou negar, investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister.
/…
(*) Körper und Gelst, etc.
(**) Physiologische Briefe.
Camille Flammarion (i), Deus
na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do
Problema 5 de 6, 9º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)