III – Os Milagres modernos vistos como Fenómenos
Naturais (II)
Pareceria então que, se o meu argumento possui algum peso,
que nada é contraditório nem absolutamente inconcebível na ideia de haver
inteligências incognoscíveis de forma directa através dos nossos sentidos e
capazes de agir mais ou menos poderosamente sobre a matéria. Para algumas
mentes, sobre a existência de tais seres há apenas uma alta improbabilidade,
baseada na suposta ausência total de provas. Existindo provas directas, parece
que não haverá razão para que a maioria dos filósofos cépticos se recuse a admitir
a sua existência. Seria apenas um assunto a ser investigado e testado como
qualquer outra questão de ciência. As evidências teriam que ser obtidas
e examinadas. Os resultados das pesquisas de diferentes observadores teriam que
ser comparados. O carácter dos observadores quanto ao conhecimento, exactidão e
honestidade seriam ponderados e, no mínimo, alguns dos factos confiáveis,
teriam de ser novamente observados. Apenas, desta maneira, todas as fontes
de erro seriam eliminadas e uma doutrina de extraordinária importância, seria considerada verdadeira. Eu, proponho
agora que se questione se tais provas foram dadas e, se a evidência pode ser
obtida por qualquer um que deseje investigar o assunto, da única forma que a
verdade pode ser alcançada: pela observação directa e pela experimentação.
Eis o primeiro facto. Durante os últimos 40 anos, enquanto
as ciências físicas progrediram a passos largos e o crescente espírito de
nacionalismo nos levou a questionar de forma geral todos os factos de um
carácter supostamente miraculoso ou sobrenatural, um número continuamente maior
de pessoas mantém a sua crença na existência daqueles seres da
natureza que até agora nós temos postulado como uma simples possibilidade. Todas
estas pessoas declaram que elas receberam directas e as repetidas provas da
existência de tais seres. Muitas nos dizem que foram convencidas do
contrário de suas ideias e pressuposições anteriores. Muitas destas pessoas
eram materialistas, não acreditando na existência de quaisquer inteligências
desconectadas de uma forma visível e tangível, nem na continuidade da
existência do homem após a morte. No momento presente, há provavelmente
três milhões de pessoas nos Estados Unidos da América que receberam
satisfatórias provas da existência de inteligências invisíveis; e, na
Inglaterra, há muitos milhares que declarara a mesma coisa. Um grande
número destas mesmas pessoas continuadamente recebe novas provas na privacidade
de suas casas, e tanto interesse desperta o assunto que quatro periódicos são
publicados neste país, diversos no continente, (*) e um grande
número na América, todos exclusivamente devotados a disseminar
informações relacionadas com a existência destas inteligências invisíveis e
dos meios para se comunicar com elas. Uma pequena revisão da literatura
especializada, que já é bastante extensa, revela o facto surpreendente
de que esta revivescência do tão conhecido sobrenaturalismo não
está confinada aos ignorantes ou supersticiosos, ou as classes mais baixas
da sociedade. Ao contrário, é nas classes média e alta que a maior proporção
dos seus adeptos, é encontrada; e, entre os que se declaram convencidos da
realidade dos factos que tem sido classificados como milagre, há numerosos literatos,
cientistas e profissionais qualificados que sempre mantiveram um
carácter ilibado, estão acima de qualquer imputação de falsidade ou
mistificação e nunca manifestaram qualquer traço de insanidade. Esta crença
também não se encontra confinada a qualquer seita ou partido. Pelo contrário,
homens de todas as religiões e sem nenhuma religião são normalmente encontrados
nas fileiras dos que acreditam; e, como já foi dito, muitos completamente
cépticos à existência de quaisquer inteligências super-naturais no universo
declararam que, pela força da evidência directa, eles foram, apesar de sua
vontade, compelidos a acreditar que tais inteligências realmente existem.
Aqui está, com certeza, um fenómeno absolutamente
único na história do pensamento humano. Ao examinar as evidências de
prodígios similares ocorridos em épocas passadas, temos que fazer muitas
concessões à educação primária e à quase universal crença pré-existente na
possibilidade e frequente ocorrência de milagres e aparições sobrenaturais. Nos
dias de hoje, é um facto notório que, entre as classes instruídas - e
especialmente entre estudantes de medicina e ciência -, o cepticismo para com
tais assuntos é quase universal. Mas o facto mais extraordinário, absolutamente
inconsistente com qualquer teoria de fraude, falsidade ou auto-ilusão, é que,
durante os 47 anos que se passaram desde o renascimento, na América, de uma
crença no sobrenatural, não houve um único indivíduo que tenha
cuidadosamente estudado o assunto e ficado sem aceitar a realidade dos
fenómenos, e conquanto milhares tenham sido convertidos à crença, nenhum
dos seus adeptos foi reconvertido à descrença. Enquanto os indivíduos
peculiarmente constituídos, que são os médiuns (**) dos
fenómenos, possam ser contados aos milhares, nenhum deles, em nenhum momento
rejeitou a falsidade, se falsidade havia. E dos poucos que recebem pagamento
para dar o seu tempo aqueles que desejam testemunhar as manifestações, é de se
notar que nenhum tenha ainda tentado ser o primeiro no mercado com uma história
cheia de aparatos maravilhosamente engenhosos e extraordinária habilidade que
tivesse sido utilizada para fazer de tolos os muitos milhões de pessoas, e para
estabelecer uma nova literatura e uma nova religião. Eles deveriam ser muito
cegos para não verem que tal trabalho seria a mais rentável especulação.
Se há uma coisa que a filosofia moderna ensina mais
consistentemente que qualquer outra é que não há conhecimento à priori
dos fenómenos naturais ou das leis naturais. Mas declarar que quaisquer
factos, testemunhados independentemente por diversas pessoas, sejam
impossíveis, e agir de acordo com esta declaração a ponto de se recusar
a examinar estes factos quando a oportunidade se dá, é considerar certo este
conhecimento à priori da natureza que já foi universalmente descartado. Um
dos nossos mais célebres homens de ciência cometeu este erro quando fez a
afirmação infeliz de que, "antes de fazer algo para considerar qualquer
questão envolvendo princípios físicos, precisamos estabelecer ideias claras
sobre o que é naturalmente possível e impossível". Nenhum homem
pode estar certo sobre estas ideias do possível, não importa o quão
"claras" elas possam ser. Era "claramente impossível"
às mentes dos filósofos em Pisa que um peso grande e um outro pequeno pudessem
cair do topo de uma torre alta ao mesmo tempo; e, se este princípio possui
qualquer utilidade, eles estariam correctos em descrer na evidência dos seus
sentidos, que lhes asseguravam que isto aconteceu; e Galileu, que aceitou
esta evidência, seria "não apenas ignorante com relação à formação de um
julgamento, mas ignorante de sua ignorância", se usássemos as mesmas
palavras desta autoridade eminente. Homens que repetidamente, e sobre condições
que não deixam qualquer dúvida, testemunharam factos evidentes que os seus
professores declaram não serem reais, mas se recusam a provar ser falsos pelo
único meio possível, que é o de um amplo e imparcial exame, podem ser
desculpados por pensarem que o seu caso é semelhante ao de Galileu e dos seus
oponentes.
A fim de que os meus leitores possam julgar por si mesmos se
a ilusão ou a fraude seria a melhor explicação para estes factos, ou se
realmente fizemos uma descoberta mais importante e mais extraordinária que
qualquer outra que tenha honrado o século XIX, eu proponho que se tragam
algumas testemunhas, cujas evidências é bom que se ouça antes que se faça um
julgamento apressado. Eu trarei pessoas de destaque ligadas à ciência, à
arte ou à literatura e cuja inteligência e integridade ao narrarem as suas
próprias observações estão acima de qualquer suspeita. Insistiria
particularmente que nenhuma objecção geral tem qualquer peso contra a evidência
directa dos factos, especiais, muitos dos quais são de tal natureza que
absolutamente não há escolha entre acreditar que eles aconteceram, em ter que
imputar a todos os que declaram tê-los testemunhado uma voluntária e
propositada falsidade.
/…
(*) No continente europeu. Nota do tradutor.
(**) O autor usou o termo latino média, em lugar da
palavra médiuns, criada por Kardec. Nota do tradutor.
Alfred Russel Wallace, O Aspecto Científico Sobrenatural, III
Os milagres modernos vistos como fenómenos naturais 2 de 2, 4º fragmento da
obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898,
tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)