Capítulo Segundo
KARDEC E O CORPO FLUÍDICO (III)
Ao dizer que, quando tratasse da questão do corpo fluídico
atribuído a Jesus, fá-lo-ia de modo decidido, Kardec assumiu um compromisso
baseado, principalmente, em duas coisas: nos documentos a serem recebidos dos
Espíritos e na possível sanção do controle universal que esses mesmos
documentos forneceriam. Esse o compromisso que vamos cobrar do Codificador, já
que resolveu deixar ao futuro uma decisão, futuro do qual ele mesmo poderia ser
personagem importante.
Pode-se reafirmar com bastante tranquilidade que Kardec,
inicialmente, era refractário à ideia do corpo fluídico de Jesus, preferindo
acreditar que esse corpo teria sido de carne. No entanto, ele mudaria de
opinião se os factos, dos quais era humilde escravo, mostrassem que estava errado.
Logo no ano seguinte à análise que fizera da obra
roustaingista, 1867, mês de Janeiro, Kardec publica na
"Revista Espírita" uma carta de Roustaing, na
qual, com breves palavras, informa sobre um erro de revisão havido em "Os
Quatro Evangelhos" e faz as devidas correcções. Atente-se para o seguinte
detalhe: Kardec apresenta a carta lacónico, dizendo: "O Sr. Roustaing, de
Bordéus, dirigiu-nos a carta seguinte, pedindo a sua publicação". Não faz
nenhuma referência à obra, não diz que ela, passados seis meses do seu
comentário, merecia melhores atenções ou outra coisa qualquer. Há um silêncio
do Codificador sobre a obra e sobre o assunto. Esta poderia ser uma ocasião
propícia para dar força ao trabalho do Sr. Roustaing. Kardec, talvez, não
tivesse chegado a conclusão alguma, ou quem sabe estava preparando estudos mais
detalhados a seu respeito. Esse silêncio, de qualquer forma, é sintomático. Daí
para a frente, ele cairia de forma definitiva sobre a figura de Roustaing, que
não mais retornaria à "Revista Espírita" enquanto Kardec fosse vivo.
O mesmo acontece com a médium Emilie Collignon,
que não vê mais nenhuma mensagem de sua autoria mediúnica publicada na
"Revista". Ambos deixam de figurar no principal órgão da imprensa
espírita mundial e nem mesmo quando Kardec faz referências a qualquer facto
ocorrido em Bordéus menciona algo sobre o primeiro ou a segunda. As mensagens
mediúnicas, no entanto, continuam tendo lugar de destaque na
"Revista", mas nenhuma delas vem com o selo da médium Collignon.
Sobre a teoria do corpo fluídico de Jesus, entretanto, o silêncio de Kardec foi
quebrado pela publicação do livro "A Génese", em 1868. Ali, ele
define a sua posição sobre o assunto e esclarece as razões que o levaram a
isso. É contra o corpo fluídico, responde "decididamente",
reafirmando que "os factos podem ser explicados sem sair das condições da
humanidade corporal". Não aceita Cristo com um corpo diferente das
criaturas encarnadas porque não vê nenhuma vantagem nisso e porque o agénere,
como ele entende e explica, não poderia resistir a uma vida inteira às
vicissitudes de um mundo como a Terra, cheio de surpresas, agressões e
dificuldades. Há, ainda, o detalhe moral, que para Kardec assume posição de
destaque: o corpo fluídico forçaria Cristo a uma vida de saltimbanco e
prestidigitador, de artista preocupado em não ser visto atrás do cenário sob
pena de perder o respeito e a admiração. Kardec vê, pois; pelo aspecto
científico e pelo moral e em ambos decide por um Cristo vivenciando a realidade
do exemplo em corpo de carne.
De 1866, quando realizou a análise referida da obra "Os
Quatro Evangelhos", até 1868, quando lançou a primeira edição de "A
Génese", Kardec estudou o assunto com algum interesse. Teria tido tempo de
analisá-lo nos seus diversos ângulos? A posição firme e decidida como o tratou
leva a crer que sim, caso contrário deixaria de se manifestar contra e manteria
a opinião de neutralidade exposta na "Revista Espírita". E mais
ainda, não seria agora que iria contradizer a posição assumida e demonstrada em
todos os seus estudos, a de ouvir o parecer de diversos Espíritos. Depois, ao
lançar a segunda edição de "A Génese", fez questão de afirmar que
nada havia sido alterado com relação à primeira. Em assunto de muito maior
importância, como o da reencarnação, Kardec manteve-se silencioso até à
perfeita concordância, inclusive contrariando aquilo que ele mesmo pensava
sobre a questão. Era de seu carácter não avançar qualquer conclusão.
Por isso, o seu parecer sobre o corpo fluídico de Jesus tem o mesmo peso que
sobre outros assuntos.
O raciocínio de Kardec está assim desenvolvido: Jesus
é um homem e, "como homem, tinha a organização dos seres carnais; mas como
Espírito puro, destacado da matéria, devia viver na vida espiritual mais
que na vida corporal, da qual não tinha as fraquezas. A superioridade de
Jesus sobre os homens não era relativa às qualidades particulares
do seu corpo, mas às do seu Espírito, que dominava a matéria de
maneira absoluta, e ao seu perispírito alimentado pela parte a mais
quintessenciada dos fluidos terrestres" (i). Kardec vê na
capacidade do Espírito o factor mais importante de uma encarnação. Mediante
esse raciocínio, Jesus, por ser um Espírito superior, o mais experimentado e
puro de quantos já encarnaram na Terra, teria tido condições de viver uma vida
muito mais espiritual do que material, dominando o corpo físico e submetendo-o
às suas vontades. Entra aí, também, a natureza do seu perispírito, formado de
acordo com a sua superioridade.
"Os Espíritos superiores,- prossegue Kardec- ao
contrário, podem vir aos mundos inferiores e mesmo aí se encarnar. Dos
elementos constitutivos do mundo em que entram, eles extraem os materiais do
envoltório fluídico ou carnal apropriado ao ambiente onde se encontram. Fazem
como o grande senhor que deixa as suas belas roupas para vestir-se
momentaneamente com trajes plebeus, sem que por isso deixe de ser o grande
senhor.
"É assim (finaliza) que os Espíritos das ordens mais
elevadas podem se manifestar aos habitantes da Terra, ou encarnar-se entre eles,
em missão. Tais Espíritos trazem consigo, não o envoltório, mas a lembrança
por intuição das regiões de onde provêm, e que vêem no pensamento. São como
videntes no meio de cegos."
Jesus se enquadra, perfeitamente, entre os Espíritos
superiores citados! Kardec o vê nesta condição com toda a tranquilidade.
Uma contradição de certas obras que defendem a tese do corpo
fluídico de Jesus aparece exactamente aqui, neste ponto. Opinam que os
Espíritos da condição de Jesus jamais encarnam. Uma dessas opiniões diz assim:
"Os Cristos, Espíritos Puríssimos, não encarnam. Não têm mais nenhuma
afinidade essencial com qualquer tipo de matéria, que é o mais baixo estágio da
energia universal. Para eles, a matéria é lama fecunda, que não desprezam,
sobre a qual indirectamente trabalham através dos seus prepostos, na sublime
mordomia da Vida, mas coisa com que não podem associar-se contextualmente,
muito menos em íntimas ligações genéticas. Eles podem ir a qualquer parte dos
Universos e actuar onde lhes ordene a Vontade Todo-Poderosa de Deus Pai; podem
mesmo mostrar-se visualmente, por imenso sacrifício de amor, a seres inferiores
e materializados, indo até ao extremo de submeter-se ao quase-aniquilamento de
tangibilizar-se à vista e ao tacto de habitantes de mundos inferiores, como a
Terra; mas não podem encarnar-se, ligar-se biologicamente a um ovo de organismo
animal, em processo absolutamente incompatível com a sua natureza e
tecnicamente irrealizável" (iii). Kardec não concorda,
absolutamente, com esta opinião. Com mais simplicidade ele atinge as
profundezas, é mais feliz até nas imagens que usa para fazer-se entender,
tal a do grande senhor que deixa as suas vestes ricas pelas pobres mas continua
sendo o grande senhor. Sem dúvida, essa "sujeira", essa lama
enriquece a experiência dos Espíritos que reencarnam, sejam superiores ou não,
no dizer de Kardec. Já não é o caso dos que crêem de acordo com a opinião
transcrita acima. Questão de humildade, questão de orgulho!...
Retornando a Jesus (iv), afirma o
Codificador que "a sua alma não devia estar ligada ao corpo senão por
laços estritamente indispensáveis; constantemente separada, ela devia lhe dar
uma vista dupla não só permanente, como também de uma penetração
excepcional e por outro modo muito superior àquela que se encontra nos homens
comuns. O mesmo devia acontecer com todos os fenómenos que dependem dos fluidos
perispiritais ou psíquicos. A qualidade de tais fluidos lhe dava um
imenso poder magnético, secundado pelo desejo incessante de fazer o bem".
As coisas de Jesus se passam, assim, de modo muito simples.
A sua capacidade de Espírito superior, as propriedades do seu perispírito e
o imenso desejo de auxiliar faziam com que a sua vida transcorresse de modo
vitorioso como a de nenhum outro encarnado. É, interessante verificar que
desse raciocínio se conclui, também, que qualquer outra criatura poderia viver
a mesma vida desprendida, bastando que tivesse alcançado a evolução de Cristo.
Assim, pois, esse Jesus da visão kardequiana está próximo da criatura encarnada
até fisicamente, sem qualquer perigo de diluir-se no ar repentinamente...
/...
(i) "A Génese", cap. XV, item 2.
(ii) "A Génese", cap. XV, item 9.
(iii) "Universo e Vida", cap. VII.
(iv) “A Génese”, cap. XV, item 2.
Wilson
Garcia, O Corpo Fluídico, Capítulo Segundo – KARDEC E O CORPO
FLUÍDICO 3 de 6, 5º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Pintura de Josefina Robirosa)