domingo, 13 de julho de 2025

a liberdade é também um princípio estético fundamental ~


uma possibilidade | humana

As grandes fases da evolução humana caracterizam-se pelo predomínio da liberdade. Mas a sequência histórica de cada uma dessas fases assinala o retorno à escravidão. Basta isso para nos mostrar que a liberdade é impossível no destino humano. Os tempos primitivos mostram-nos o homem atrelado ao clã e à horda. O seu instinto gregário é um impositivo da sua fragilidade em face da natureza carregada de ameaças e perigos. No clã, na horda ou na tribo ele se vê obrigado, para garantir a sua sobrevivência e a da prole, a organizar as primeiras estruturas sociais e a estabelecer ligações ou alianças com outros grupos. Os mais fortes dominam cada grupo e se constituem na garantia da liberdade do grupo. Se não houvesse outras exigências além da garantia da sobrevivência, o possível da liberdade humana teria morrido ao nascer. Mas o anseio de transcendência, determinado pelo sentimento inato da subjectividade do Ser, coloca ao lado da força física do Cacique o poder espiritual do Pagé. E na proporção em que o grupo cresce e penetra na historicidade dos factos, que gera a tradição e a mitologia das façanhas e dos espantos, a experiência e a prudência impõem-se através dos conselhos tribais. Equilibra-se o poder da força bruta com o poder da razão, dando nascimento aos Manes e deuses tutelares. A realidade confusa do mundo estrutura-se em dois planos: o das coisas e seres concretos e o do imaginário imprevisível. As forças cósmicas, transformadas em figuras antropomórficas, vigiam do alto do céu e do fundo das matas a aventura do homem na Terra. A multiplicidade de poderes em acção garante a liberdade individual nas condições dialécticas da existência. Está esboçado o panorama dos sonhos de liberdade, em que as aspirações de justiça marcarão o roteiro das civilizações. Bastam essas aspirações, sempre em choque com as pretensões atrevidas da força bruta, para mostrar que a consciência humana se fundamenta no pressuposto da liberdade.

As civilizações agrárias e pastoris, florescendo no seio da Natureza, estabelecem a sintonia dos ritmos telúricos com os ritmos do processo existencial. O homem percebe que a rigidez do seu condicionamento ao chão, e consequentemente ao meio, não o priva da liberdade de pensamento e acção. Descobre que agir sobre o meio é modificá-lo, ao mesmo tempo em que se modifica a si mesmo nas dimensões da temporalidade. Essa descoberta ampara e estimula os seus anseios de liberdade, mostrando-lhe que ele possui a jurisdição de si mesmo. Dessa descoberta nasce o sentimento de responsabilidade que vai marcar ao mesmo tempo os limites do seu poder, do seu dever e das suas possibilidades de ascendência. Nas grandes civilizações orientais, de estrutura massiva, a exigência de ampliação da sua responsabilidade a dimensões abstractas leva-o a recorrer à teocracia, que gera as investiduras divinas dos reis e príncipes, condição humana que lhe parece insuficiente para a direcção do Estado. O gigantismo das civilizações teocráticas obriga-o a abdicar de sua jurisdição individual e entregar-se ao poder supremo dos deuses. Este poder, por sua própria natureza abstracta, projecta-se nas estruturas legais que possam abranger a multiplicidade dos aspectos da ordem instituída. Em consequência, o poder divino acrescido ao homem, por ele mesmo, leva-o a sufocar a liberdade individual. A sociedade regride às condições da estrutura tribal, com o predomínio da força bruta que engaja cada indivíduo à engrenagem gigantesca do Estado, segundo a aguda observação de Denis de Rougemont. O homem não é mais um indivíduo, mas uma arruela ou um pino da estrutura mecânica, regida pelo poder dos deuses através dos seus mandatários divinos. O cacique tribal transformou-se no Rei Ungido que representa a Divindade e o Pagé mágico que se multiplicou nos sacerdotes que confabulam com Deus e controlam as actividades dos súbditos. Nasce das cinzas dos pastores e agricultores ingénuos, há muito soterrados nos campos, o Leviatã de Hobbes. O modelo dos Estados sagrados e totalitários constituiu-se dos três poderes que a Revolução Francesa terá de enfrentar para restabelecer a liberdade sob a inspiração do Contrato Social de Rousseau.

É no antigo Império Persa que vamos assistir à morte das civilizações teocráticas, quando um novo poder, nascido das guerras de conquista, o poder militar, se imporá pela força das armas sobre o poder teocrático. Da divisão dos poderes na Pérsia nascerão na Grécia os Estados antípodas de Esparta e Atenas, o primeiro rigidamente totalitário e militar, esmagando os anseios da liberdade individual, e o segundo, ainda teocrático e escravagista, mas tocado pelo fogo de Prometeu, ao sopro revivificador da Filosofia, libertando o indivíduo das garras do Leviatã e abrindo perspectivas para o desenvolvimento do pensamento livre e, portanto, da cultura. Mas a Esparta projecta-se em Roma e gera o Império dos Césares que determinará um retrocesso histórico. O cidadão romano é o novo tipo de homem, engajado à estrutura estatal, que esmagara a Grécia e se embriagará com o sangue generoso dos seus filósofos. A Roma camponesa não conseguira asfixiar em si mesma, ao transformar-se no Leviatã, os princípios de justiça que a nortearam nos primórdios do seu desenvolvimento. Esses princípios levarão a velha Loba ao afrouxamento da sua estrutura, nos tempos de fastígio, e permitirá o restabelecimento da liberdade individual na mais corrosiva de suas formas, a da libertinagem. Dois factores contraditórios a levarão à queda: a mensagem cristã provinda da civilização agrária e pastoril da Palestina e a voracidade das hordas bárbaras do Norte. A fusão desses factores gerou o milénio medieval, ressurreição dos Estados Teocráticos na Europa devastada. A liberdade individual foi novamente esmagada pelo Império da Igreja, mas o fermento do Evangelho levedou lentamente, ao rogo das guerras e das fogueiras inquisitórias, a massa dos povos bárbaros e acendeu na Renascença, com novo ímpeto e maior ardor, os anseios de liberdade. Graças a isso, as fases de grandeza espiritual de Atenas filosófica e estética, da palestina profética, puderam ressurgir das cinzas para um novo e poderoso surto da evolução humana. O homem renascentista não nasceu engajado a uma estrutura estatal. Descendia, embora por vias tortuosas, dos israelitas discutidores, dos atenienses filosofantes e dos romanos da República, tendo por modelos e guias o racionalismo suicida de Abelardo e os sonhos de liberdade de Descartes Rousseau.

Nem mesmo o contragolpe de Bonaparte conseguiu sufocar as aspirações libertárias da França, que repercutiram no mundo e floresceram na América. A hecatombe nazi-fascista ameaçaria novamente os povos e o desenvolvimento do chamado complexo industrial militar frustraria as esperanças da liberdade do pós-guerra. Mas os triunfos da força revertem na negação de si mesmos, ante o desenvolvimento cultural, firmado nos princípios humanistas dos novos tempos. Porque o dilema que hoje nos desafia na Estrada de Tebas é irreversível: ou deciframos o enigma da esfinge nuclear ou ela nos devorará. Temos de compreender que o avanço científico é uma conquista da civilização e não da barbárie, um repto do homem a si mesmo, para que ele confirme a sua natureza espiritual ou a negue, entregando-se à inconsciência das feras. A violência desencadeada no mundo, dos nossos dias, e impunemente aplicada em nome de princípios superiores, tem o seu limite fatalmente marcado pelo genocídio dos cogumelos atómicos. Nenhum poder é concedido ao homem sem o preço marcado na sua própria consciência. O preço da violência é a morte e, neste caso, a destruição total da Humanidade. A chamada guerra dos botões é uma reticência trágica para todos os que desenvolveram o poder do espírito e com ele penetraram nos segredos da matéria. Há um ensino de Jesus que devemos lembrar nesta hora, porque agora ele se torna claro e objectivo: “Todos os pecados serão perdoados ao homem, menos o pecado contra o espírito.” Temos pecado ignominiosamente contra o espírito através de guerras e matanças, atentados brutais, perseguições e torturas, assassinatos covardes de prisioneiros inermes, toda uma série hedionda de manifestações de bestialidade, enlouquecidos pela arrogância da força bruta. Negamos a liberdade de pensamento, que é o selo da dignidade humana, e com as armas defensivas das nações partimos para a agressão interna, transformando cada nação num sistema fechado de aniquilamento dos seus próprios filhos, na violência desmedida contra os direitos do espírito. Aviltamos o mundo e aviltamo-nos, desde os campos de concentração nazi-fascista até aos campos de trabalho forçado e morte lenta do sistema comunista, até às mortes programadas pelos computadores das chamadas nações democráticas e as agressões genocidas das grandes potências contra pequenas e heróicas nações indefesas. Tocamos agora a barreira do nosso próprio poder liberticida. O desafio é simples: carregamos os botões da destruição total ou retomamos a condição humana. Pagamos o preço fatal do pecado contra o espírito ou o resgataremos de joelhos sobre a infinidade de covas em que sepultamos as vítimas da nossa arrogância, com o desprezo da prepotência e os rituais bárbaros da intimidação colectiva.

Nunca os bárbaros foram tão bárbaros como na pele do homem do Século XX. Nunca o poder das armas esmagou e silenciou populações inermes em todo o mundo, na mais trágica demonstração de covardia de todos os tempos. Mas os dragões minúsculos e invisíveis dos átomos agora esperam os mandatários da violência para triturá-los com os seus dentes nucleares, na mais refinada forma de igualitarismo democrático, de nivelação total de carrascos e vítimas, sob o signo da morte global. Onde os covardes acharão coragem para morrer como homens?

Mas mesmo que cheguemos a essa escatologia trágica, os sonhos de liberdade não serão liquidados. A Terra devastada e envenenada pelas emanações atómicas continuará a girar nos espaços siderais. Os resíduos da infâmia desaparecerão de sua face calcinada. O seu poder de recuperação e renovação não será extinto, porque se alimenta nas fontes cósmicas. Germinarão de novo as plantas, os animais reconstruirão a sua fertilidade e uma nova raça humana a povoará, para que os desígnios de Deus se cumpram após a falência dos homens. Então ela não será mais um planeta andrajoso, coberto de ruínas, um túmulo de indignidade humana, mas um monumento vivo e radiante à dignidade dos que, numa raça de víboras, souberam resistir até ao último instante. Talvez nesse tempo os monstros que devoraram o planeta no delírio da arrogância possam despertar, em algum lugar do Infinito, para a consciência de sua brutalidade. Da situação miserável em que caíram, com as suas mandíbulas de fera, apropriadas à condição que preferiram, mastigando ossos e destroços, talvez consigam vislumbrar – num céu escuro e opaco – as tímidas cintilações das estrelas longínquas, apavoradas com a visão das suas monstruosidades. Só assim poderão renascer para novas existências, como os "luzbéis" arrependidos de um mito bíblico jamais escrito.

Cada aspecto de um tema requer linguagem apropriada para o seu desenvolvimento. Essa linguagem não é estudada, não é preparada de antemão, pois a sua natureza é genésica; ela brota das entranhas do próprio tema pela necessidade vital de expressão adequada. Não traçamos esse panorama assombroso com os recursos da imaginação. Ele não é uma criação fantasiosa, é um dado real que surge da situação desesperante do mundo. O impacto de sua percepção aturde primeiro o observador que teve a temeridade de encará-lo. Depois esse impacto se transmite ao público para despertá-lo de uma apatia forçada, reerguendo-lhe as energias anestesiadas pelo medo e restabelecendo-lhe a capacidade de pensar e analisar. A morte da liberdade é a morte do homem. Porque o homem nasce da liberdade e é liberdade. A sua carne e o seu espírito são a vitória da liberdade imolada. Nas metamorfoses genésicas ele passa de um reino da natureza para outro. Desenvolve o seu poder estruturador na pedra e nela permanece em estado cataléptico até ao momento de projectar-se nas estruturações vegetais, em que desenvolve a sua sensibilidade e se transforma na doação de que falava Hegel, abrindo-se em ramagens, flores e frutos. Pouco a pouco aglutina as primeiras formações animais, como nos mostram as pesquisas sobre a evolução dos reinos naturais. Desenvolve então a motilidade – nada, voa, anda, desligado da matriz terrena – e as potencialidades da inteligência. Como animal ele está ainda envolto numa pele densa e forte, coberta de pelos ou escamas, de invólucros protectores para a conquista das suas experiências vitais. Mas no homem a carne se refina e se apura, a pele se torna fina e flexível, a sensibilidade se aguça, a mente se abre na delicada estrutura cerebral como uma flor que desabrocha, o espírito imolado recobra a sua natureza, que é a liberdade.

Todo esse imenso e complexo processo criador atinge a sua frutificação nas conquistas da inteligência humana, semelhante a Deus, dotada de poder criador. E é essa obra-prima que ele mesmo avilta e esmaga quando se entrega aos resíduos das fases anteriores da evolução criadora, segundo BergsonQuando as mãos animalescas da insensatez reduzem tudo isso a um cadáver sangrento e sem vida, pela fria decisão de um tribunal dogmático, arbitrariamente em nome de Deus, da Pátria ou da Sociedade, o homem peca contra o espírito, o que vale dizer: contra a sua própria natureza de Ser espiritual. É verdade que não destruiu o homem nem a vida, mas aniquilou um trabalho milenar dos poderes criadores do espírito. Por outro lado, atentou contra a dignidade humana e o direito à vida, ao reajuste dos seus possíveis desajustamentos sociais e culturais, ao progresso que ainda poderia realizar no desenvolvimento das suas potencialidades espirituais. Além disso, cada acto dessa natureza é um incentivo à violência, à brutalidade, ao crime, aos desrespeitos aviltantes ao supremo direito do homem, o direito à liberdade.

Não há sofismas, por mais aparentemente brilhantes, por mais aprovados e institucionalizados nas falíveis convenções humanas, que possam justificar esse acto contrário aos desígnios de Deus inscritos na consciência humana.

A tudo isso devemos acrescentar as dolorosas consequências do crime na vida dos familiares do condenado. Quantas dores e lágrimas, que de suplícios e humilhações, desesperos e angústias esmagarão criaturas inocentes que jamais aceitarão essa pretensa justiça produzida nas retortas escusas das convenções humanas, manchadas por interesses inferiores, por ambições vorazes e pretensões orgulhosas de infalibilidade do falível julgamento humano. As sociedades e civilizações que se defendem sacrificando as suas próprias vítimas, os injustiçados pelos desníveis sócio-económicos de estruturas forjadas pelas leis da selva, são duplamente criminosas. A queda do homem na sociedade, que Rousseau definiu apoiado nas suas próprias experiências de vítima dando forma social ao mito bíblico da queda, é uma realidade flagrante em todo o mundo. Só há um meio de redenção das sociedades criminosas: o abandono dos métodos de coação violenta e a adopção de meios humanos de recuperação e resgate dos indivíduos transviados.

O princípio ético de preservação da liberdade exige a reformulação social e cultural do mundo. Por isso, René Hubert recomenda uma pedagogia estética que corresponda ao sentido profundo do acto de amor do processo educacional. Só pelo desenvolvimento da consciência estética, síntese consciencial que liberta o homem da arrogância e da brutalidade, aprimorando-lhe a sensibilidade estética – como Kant já reconhecera – poderemos estabelecer na Terra uma civilização de justiça e harmonia, condizente com as aspirações mais profundas e generalizadas da espécie humana. A liberdade é também um princípio estético fundamental, como Schiller demonstrou nos seus estudos de estética. Sem liberdade não há criação artística válida nem ética verdadeira.
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José Herculano Pires, Os Sonhos de Liberdade, – Uma Possibilidade Humana, 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites