(II)
E chegamos, assim, ao ponto em que os podemos defrontar com
a religião no próprio terreno da ciência, que lhe parecia antagónico. Do
empirismo supersticioso até ao limiar da ciência, que longo percurso tivemos de
fazer! Mas ainda não estamos livres das práticas empíricas. Estas, pelo
contrário, continuam a exercer poderosa atracção sobre os próprios adeptos do
Espiritismo.
Diz um velho ditado que o uso do cachimbo faz a boca torta.
E muitos espíritas, não podendo deixar de aceitar os factos e as verdades com
que tiveram de se defrontar, mas não tendo forças para sair prontamente dos
hábitos adquiridos, procuram introduzir no Espiritismo práticas e sistemas
alheios à natureza real da doutrina. O Espiritismo não é uma igreja, os centros
e sedes de outras associações doutrinárias não são templos ritualistas, nem
possuem sacerdotes para ministrar sacramentos, mas o espírita de boca
torta não concebe um casamento sem a bênção da igreja ou um nascimento sem as
águas lustrais do baptismo.
E então se apega ao médium, tábua de salvação para vivos e mortos e, apela ao
mundo dos espíritos, que lhe envie – eterna simplicidade do povo! – um espírito
de padre, para ministrar os sacramentos que ele se recusa a tomar na própria
fonte de origem, aqui na Terra!
Mas ainda não é só. Alguns adeptos, inconformados com a
simplicidade racional da doutrina, viciados ainda no transcendentalismo
artificial das religiões ritualistas, procuram refúgio noutras concepções, que
parecem mais vastas, mais profundas e mais ricas. É ainda a atracção do
maravilhoso. Allan Kardec diz:
“O sobrenatural se esvai à luz da ciência, da filosofia e do
raciocínio, como os deuses do paganismo desapareceram à luz do Cristianismo.”
Esses adeptos, porém, ainda não receberam luz suficiente das
verdades espíritas e continuam fascinados pelo sobrenatural, maravilhoso.
Alegam então que a Teosofia não se restringe aos problemas
da sobrevivência e da intercomunicação, indo muito mais longe, na interpretação
da própria natureza de Deus e na explicação de mistérios que os espiritistas
ainda ignoram por completo. Afirmam que os rosa-cruzes possuem uma visão mais
dinâmica e profunda do Universo, que certas escolas esotéricas e mentalistas
possuem fórmulas capazes de resolver mais prontamente, do que pelos meios
espíritas, os graves problemas do psiquismo. E há os que preferem as fórmulas
nebulosas de sincretismo religioso, formas híbridas de ritualismo e de sistemas
sacramentais, como as correntes de Umbanda, em que as superstições
afro-caboclas se misturam exuberantemente aos elementos do culto
católico-romano. E há os que, ansiosos por descobrir “mistérios” que o
Espiritismo não aceita, se apegam a interpretações confusas, como as do
chamado Redentorismo, ou ao misticismo incoerente e artificioso de Roustaing.
A todos esses espíritas desprevenidos devemos lembrar que o
esforço maior do Espiritismo é realizado no sentido de libertar o homem das
suposições sem base, das explicações transcendentes, das superstições de tabus
religiosos. O Espiritismo não deseja reforçar as tendências instintivas do
homem para o maravilhoso, mas conduzi-lo com mão firme, segura e
serenamente, para o conhecimento real das verdadeiras maravilhas
do Universo, tanto as da natureza exterior quanto as do plano espiritual.
A imaginação humana é muito fértil e não é difícil, a
qualquer homem dotado de grandes recursos de inteligência, arquitectar um
sistema de explicações do Universo, desde as formas rudimentares da matéria até
aos esplendores da natureza divina. Também do espaço, muitos sistemas
dessa espécie podem ser-nos transmitidos por espíritos “esclarecidos”, a título
de revelação. Mas Kardec já nos deu a lição, dos seus ensinamentos e do
seu exemplo, no tocante a essas revelações do tipo roustainguista.
Há uma
pauta segura para a avaliação das coisas, venham elas de cima ou aqui de baixo
mesmo. Há uma linha de raciocínio que nos serve de guia seguro no
labirinto das suposições e das teorias. E há o critério científico de
observação, de comparação e de análise, que deve presidir ao trabalho do homem
no terreno espiritual, como em qualquer outro. Por isso mesmo, no campo da
religião, domínio aberto do empirismo e do maravilhoso, o Espiritismo
nos oferece o antídoto da fé raciocinada, verdadeira vacina contra
os exageros místicos e a chave de controlo para o desenvolvimento equilibrado
da era da intuição, da qual se aproxima a humanidade.
/…
José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Do
Empirismo à Ciência (2 de 2), 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles,
pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio,
1509)