(II de II)
Fica então demonstrado que William Sharp escrevia, por um impulso estranho à
sua vontade, as obras de Fiona
Macleod, o que deixa supor que ele era médium inspirado.
Isso, aliás, ressalta, em toda a parte, de modo certo, de
várias passagens das memórias publicadas pela sua viúva. Assim, por exemplo, na
página 424, ela escreve:
“Encontrei-me, muitas vezes, ao lado dela, quando caía em
transe; então todo o ambiente palpitava, tudo entrava em intensa vibração.
Deploro não ter logo tomado nota dessas experiências, que eram frequentes e
constituíam um traço característico de nossa vida íntima.”
E William
Sharp, escrevendo à sua esposa, na data de 20 de fevereiro de 1895, assim
se exprimia:
“Que coisa bizarra e electrizante é o facto de existirem em
mim duas pessoas, ainda que íntimas! E, entretanto, elas são tão diferentes!
Sinto às vezes como se Fiona estivesse adormecida no quarto ao lado e eu me
surpreendesse na atitude de escutar para lhe perceber os passos ou ver abrir a
porta e Fiona aparecer. Quando, porém, ela se comunica comigo, é a falar,
interiormente, em voz baixa. Espero agora, com ansiedade, saber como
desenvolverá ela o assunto do novo romance The Mountain Lovers.
Como é estranha esta impressão de me sentir aqui sozinho com ela.” (pág. 244).
A certeza de ter uma companheira invisível, na vida, estava
de tal modo arraigada nele que ela o levava a coisas curiosas. Assim, por
ocasião da data do seu aniversário, ele escreveu a si próprio uma carta de
felicitações provinda de Fiona; em seguida escreveu outra de agradecimentos a
ela mesma e colocou ambas no correio. Encontraram-se na sua biblioteca vários
volumes com a dedicatória: “A William
Sharp, a sua colaboradora e amiga Fiona
Macleod.”
Ao que parece, essas dedicatórias eram autênticas, sob certo
ponto de vista, pois que provinham de uma personalidade mediúnica que as
firmava e eram transcritas automaticamente pelo médium.
Um amigo de juventude de William
Sharp narra na Light (1910, pág. 598) um episódio que confirma
ulteriormente a sua mediunidade. Escreve ele:
“Há vários anos (por volta de 1878), conheci William
Sharp e tornei-me seu amigo. Ele não era ainda casado e morava num
pequeno apartamento, perto do nosso. Certo dia, aconteceu-me fazer-lhe
referências, em conversa, ao neo-espiritualismo e ele declarou que nunca
assistira a experiências dessa natureza e que as veria com prazer, se uma
oportunidade se lhe apresentasse. Convidei-o então para tomar parte no nosso
círculo familiar. Alguém perguntou: “Quem são os guias espirituais do sr.
Sharp?” A mesa respondeu, lentamente, um nome da família escocesa “Macleod”
(não me lembro bem do nome próprio que deu). Isto me levou a perguntar ao sr.
Sharp: “Os seus antepassados eram escoceses?”
Alguns anos mais tarde, convidei-o para ir a minha casa, por
ter necessidade de um conselho seu, a respeito do título de um livro de versos
que desejava publicar e, confiei-lhe que havia escrito vários poemas do volume
por “inspiração”. Ele exortou-me, vivamente, a ocultar isso se não quisesse
comprometer-me perante os críticos... Noutra ocasião e a propósito dos poemas
de Fiona, ele me exprimiu a mesma preocupação: “Fiona morre se descobrem o
segredo da sua existência.”
Parece-me que tudo isto basta para esclarecer o mistério.
Sharp era médium inspirado, mas temia que o descobrissem. As admiráveis
colecções de versos que publicou constituíam impressões de uma inteligência
espiritual que era verdadeiramente o seu espírito guia: “o seu nome devia ser
realmente aquele que tinha sido transmitido, pela primeira vez, no nosso
círculo familiar: Macleod – o que se verificou vários anos
antes que Fiona Macleod se manifestasse a Sharp.”
Sem dúvida, se nos propuséssemos examinar os factos sob um
ponto de vista estritamente psicológico, poderíamos pensar num caso de
personalidades alternantes. Há, porém, muitas diferenças entre os casos
patológicos das personalidades múltiplas provenientes do fenómeno de
desintegração psíquica e o caso que estudamos aqui. No Journal of the
Society for Psychical Research (vol. XIX, pág. 57), assinalaram-se
algumas dessas diferenças radicais:
“As duas personalidades de William
Sharp – escreve o crítico – eram coordenadas entre si, sob certo ponto
de vista: não se notava nenhuma superioridade nítida e precisa de uma sobre a
outra, tanto moral como intelectualmente; as alternativas, com as quais se
manifestavam, não pareciam associadas a elementos patológicos. Eram ambas
acentuadas por um temperamento muito sensitivo e em alta tensão, mas nenhuma
das duas mostrou nunca lacunas no seu equilíbrio mental e no controle de si
mesmas. Ambas produziram obras literárias de uma beleza especial, embora Fiona
ultrapassasse muito a outra em originalidade, em poder descritivo e em
imaginação. Além disso, o traço característico das personalidades alternantes:
o das notáveis variações de humor entre elas – variações que determinam
mudanças mais ou menos grandes no carácter e conduzem a uma alternativa real
das personalidades – é considerado pelos psicólogos como sendo dependente do
facto de que há ou não lacunas mnemónicas entre os diferentes estados
mentais... Ora, não havia lacuna mental entre William Sharp e Fiona
Macleod e a conclusão de que deve tratar-se de duas personalidades
diferentes parece fundar-se na impressão precisa e insofismável de que assim
era, experimentada pelas próprias personalidades, impressão que não parecia,
todavia, excluir a outra, segundo a qual havia entre elas uma unidade
misteriosa, oculta sob as diferenças.”
Assim como fiz notar anteriormente, esta última impressão de
Sharp sobre a existência de uma unidade fundamental, apesar da diferença
existente entre a personalidade de Fiona e a sua própria, era causada por
especiais reminiscências segundo as quais lhe parecia ter vivido uma outra
existência sob a forma de uma mulher.
A esse respeito, declaro francamente que essas espécies de
impressões experimentadas por William
Sharp não se prestam, de modo algum, a esclarecer o mistério, longe
disso! Com efeito, se a hipótese psicológica das personalidades alternantes
parece facilmente eliminável, estando em contradição evidente com o conjunto
dos factos, as outras duas hipóteses, que devem ser tomadas em consideração,
reconhecendo-se-lhes igualdade de direitos (pois que as impressões
experimentadas pelo protagonista não contam para a pesquisa das coisas), não
parecem facilmente conciliáveis entre si. Se apenas se trata de uma entidade
espiritual, que tivesse transmitido telepaticamente as suas criações literárias
ao médium, o caso em questão poderia ser explicado muito facilmente; a hipótese
reencarnacionista, porém, contribui para obscurecê-la. Com efeito, nestas
condições, seria necessário admitir que uma fracção da personalidade integral
do médium – fracção representando uma de suas próprias individualizações
encarnadas, que existiu em época recuada – tenha podido emergir e se manifestar
à sua individualização actualmente encarnada, nas condições de intelectualidade
que a caracterizaram.
Compreende-se que esta suposição é muito fantástica,
literalmente gratuita e teoricamente inconcebível. A melhor solução do mistério
consistiria então em retornar à hipótese de uma Fiona
Macleod, espírito-guia de William
Sharp e, aí parar. Nesse caso, se poderia resolver legítima e
racionalmente o problema das reminiscências, fazendo notar que as impressões do
médium, que se sentia às vezes invadido por sentimentos femininos com
reminiscências de uma vida passada sob a forma de uma mulher, deveriam ser
atribuídas à circunstância da realização de interferências fugitivas entre a
consciência normal do médium e a memória pessoal do espírito-guia que lhe
controlava então o órgão cerebral e lhe influenciava telepaticamente o
pensamento.
Faço notar que, nas experiências de psicometria, encontra-se
muitas vezes a circunstância de terem os sensitivos a impressão de ser
identificados na personalidade de um vivo ou de um morto, com o qual entram em
relação, ao ponto de experimentarem as idiossincrasias de temperamento deles,
com o despertar de reminiscências a respeito das suas modalidades de
existência, impressões do meio no qual viveram, como se estivessem
momentaneamente unificados com eles, embora conservando a própria consciência.
Na minha monografia Os Enigmas da Psicometria,
citei exemplos nos quais essa identificação do sensitivo nos acontecimentos da
existência de outras pessoas se realiza, mesmo quando se trata de colocação em
relação com animais.
/...
Ernesto
Bozzano, Literatura do Além-túmulo – Capítulo
V (II de II), 6º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac
| 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)