(I de II)
Até ao aparecimento do Espiritismo em forma de doutrina
filosófica, bem definida, apoiada num sistema científico de observação, de
pesquisa e de experimentação, as questões relativas à sobrevivência do homem e
ao seu destino no além-túmulo pertenciam exclusivamente ao empirismo. E
nem se poderia esperar outra coisa, de um mundo que estava saindo inteirinho do
empirismo e, que mal começara a trilhar, com Galileu,
o terreno das ciências positivas. Se em medicina, até Claude
Bernard, a clínica se fazia ao sabor de velhos tabus e sistemas quase
instintivos, como se desejar que, em matéria muito mais subtil, difícil e
complexa, como a ciência do espírito, pudessem os homens se ter adiantado mais
rapidamente?
O Espiritismo abriu a primeira picada no matagal cerrado
das superstições, derrubando a golpes de bom senso, como diz o
poeta leproso Jésus
Gonçalves, os tabus do velho misticismo imponente, enclausurado nas igrejas
dominantes. Graças a ele, ao formidável surto de fenómenos que se
verificou por toda a parte, na ocasião do seu aparecimento – como os rubores do
horizonte e a brisa matinal aparecem no momento de raiar o sol –, foi possível,
embora com as maiores dificuldades, um rápido avanço nesse terreno. O ambiente,
aliás, já estava preparado, através das lutas cada vez maiores e mais sérias
contra a dominação clerical e as absurdas imposições de uma crença destituída
de qualquer base racional. As igrejas estavam, na verdade, vacilantes nos seus
alicerces seculares, incapazes de resistir à investida arrasadora do
raciocínio científico, que parecia destinado a desnudar por completo
as formas mumificadas da religião, mostrando-as ao povo na hediondez de sua
esterilidade e do seu artificialismo de sarcófago.
Allan Kardec, o bom senso encarnado,
compreendeu prontamente o alcance da tarefa que os espíritos lhe depositavam
nas mãos. Ele ia enfrentar o mundo, ia enfrentar todo o convencionalismo
da época, desde os mais velhos sistemas da liturgia religiosa, até aos mais
modernos princípios afoitamente proclamados pelo materialismo nascente.
Cabia-lhe uma luta gigantesca, tinha ele de enfrentar, em campo raso, sem
auxílio de uma única fortificação, o exército dos padres, dos cientistas, dos
filósofos, dos jornalistas e escritores, dos intelectuais e dos crentes, o
bombardeio dos púlpitos, das cátedras e das tribunas. Mas era preciso enfrentar
a tarefa, não havia por onde fugir. Como Galileu,
ele havia tocado fundo o mistério, sabia que as mesas giravam e
sabia por que o faziam. Como Pasteur,
ele tinha visto a acção física, discreta, concreta, dos agentes invisíveis. E
contava, além disso, com o auxílio dos companheiros espirituais, sempre
dispostos a ampará-lo e esclarecê-lo. Foi por isso que, sem nenhuma atitude
espectacular de vidente ou predestinado, sem qualquer encenação oracular, o
sereno professor de pedagogia iniciou o seu trabalho, na cidade de Paris,
centro do mundo e da cultura, que ele transformaria, para escândalo dos
judeus, como diria Paulo, no quartel-general do Espiritismo.
No seu pequeno livro O que é o Espiritismo,
Kardec revela a natureza da doutrina e mostra-nos mais uma vez a firmeza e a
serenidade de sua atitude, dizendo claramente que o Espiritismo não veio ao
mundo para se transformar num sistema novo de religião ou se constituir numa
nova igreja.
“O Espiritismo – diz ele – é ao mesmo tempo, ciência
experimental e doutrina filosófica. Como ciência prática, tem a sua
essência nas relações que se podem estabelecer com os espíritos. Como
filosofia, compreende todas as consequências morais decorrentes dessas relações. Pode
ser definido assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e
destino dos espíritos, bem como das suas relações com o mundo corporal.”
Assim definida a natureza da doutrina, Kardec reafirmava que
não pretendia convertê-la numa escola religiosa. As religiões estavam ameaçadas
e tinham o flanco descoberto. Que podiam elas opor aos ataques arrasadores do
racionalismo a todos os seus dogmas, cânones e sacramentos? Como se
desenvencilharem da acusação de que não eram outra coisa senão as antigas
superstições tribais revestidas de aparatos modernos? O Espiritismo surgia
como tábua de salvação para todas elas. Era o meio de que elas podiam se servir
para justificar racionalmente os seus velhos princípios e, mais do que isso –
maravilha! –, para o demonstrar cientifica, objectiva e,
experimentalmente, aos homens da era científica – a existência da
alma, a realidade demonstrável da sobrevivência. Demonstrado isso, estavam
salvas as religiões. Provada a existência da vida depois da morte, quem se
atreveria a negar a necessidade de um preparo do homem, nesta vida, para
enfrentar depois os problemas da outra, quando se desenvencilhasse do corpo
material?
Os homens de cultura desertavam dos templos. Apenas o povo,
na sua simplicidade natural, continuava apegado, pelo coração, às velhas
crenças. Mas esse mesmo povo começava a ser trabalhado profundamente por
ideologias revolucionárias, que lhe ofereciam, em lugar de um paraíso depois da
morte, outro paraíso, muito mais apetecível, nesta própria vida, aqui mesmo, na
Terra. Para que os homens cultos voltassem aos templos, era necessário que a
religião lhes oferecesse uma arma nova, com que pudessem justificar a sua
crença diante da zombaria dos novos profetas da razão. Para que o povo não
se desviasse, era preciso mostrar-lhe que o paraíso, no espaço ou na Terra, não
se conquista por meros actos exteriores. Essas respostas – que as velhas
religiões não possuíam – O Espiritismo trazia-as na palma da mão, como
um anjo salvador.
Mas... Sim, havia um “mas”. Para que as religiões
pudessem utilizar-se do Espiritismo, era também necessário que aceitassem uma
modificação de atitude, em face dos problemas da razão. O Espiritismo
nascia com características nitidamente racionais. As religiões eram ilógicas,
irracionais, dogmáticas. Vacilaram, a princípio, mas terminaram, como a igreja
judaica diante do Cristianismo nascente, recusando-se a mudar de atitude. E,
por fim – ironia da ingratidão e do egoísmo humano! – quando o Espiritismo, por
si só, independente de qualquer auxílio, levou de vencida os primeiros
obstáculos, reuniu os primeiros sábios e obteve os primeiros êxitos, arredou de
sua atitude negativista e agressiva os primeiros materialistas, as
igrejas, já então, reforçadas pela evidência dos factos, que ele e só ele
produzira, despejaram sobre ele os raios outrora fulminantes da sua maldição.
Os espíritas, que haviam aberto a possibilidade de retorno dos homens, cientes
e inscientes, ao recinto dos templos, foram corridos dali como os apóstolos das
sinagogas foram expulsos como inimigos e hereges. E foi então, só então,
diante da repulsa cada vez mais forte das religiões constituídas, que
as consequências morais da doutrina, de que fala Kardec,
começaram a levar os homens para um novo conceito de religião, para o terreno
mais amplo e livre da religião espírita. Esta não é, propriamente uma
religião, no sentido clássico do termo, que implicaria organização
sacerdotal, sistema litúrgico e sacramental, mas é religião no
sentido natural do termo, como norma espiritual de conduta humana.
/…
José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Do
Empirismo à Ciência (I de II), 11º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles,
pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio,
1509)
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