(III)
Ante a efervescência dos convidados do Solar di Bicci e a leitura do
testamento, o Espírito atribulado do Senhor duque, que se encontrava
entorpecido no vágado demorado,
de que fora vítima desde a hora em que Girólamo cometera os crimes sórdidos,
despertou e, dominado por inenarrável fúria, acompanhou a leitura e os
conchavos maléficos realizados no grande refeitório do solar, explodindo em
cólera de louco. Identificando no sobrinho o autor de tantas
desgraças, atirou-se sobre ele, punhos cerrados e dentes rilhados, sem, no entanto,
conseguir atingi-lo.
À semelhança de um animal ferido, o Espírito do duque ululava,
entre sombras espessas, de cujo bojo se destacavam o vulto odiento do sobrinho e
o das personagens presentes, indiferentes ao seu próprio estado. Compreendeu,
ante a leitura ouvida, que se encontrava definitivamente morto e
que o ser sofria e se esganava em superlativa aflição e desconforto era ele mesmo,
sim, em espírito vivo e indestrutível…
Embora a dor que o dilacerava, recordou-se dos filhos trucidados, de Lúcia, da
esposa, enquanto as lágrimas, como aço derretido, lhe escorriam ardentes,
lenhando-o externa e interiormente.
Sem o conforto de uma fé religiosa legítima, acostumado apenas ao culto externo
e vazio da tradição, foi dominado pelo furor do ódio, deixando à margem toda a
ternura e misericórdia de que ouvira falar e, de que se fizera portador aquele Nazareno Crucificado, em nome do
Pai e, que dera a Sua pelas vidas dos homens de todos os tempos, ensinando
mansidão e amor, até ao sacrifício supremo.
Em esgares, transformando-se lentamente, porque vencido pela própria desdita, o
antigo Senhor di Bicci di M., desde aquele momento, se converteu em obsessor de
Girólamo, seguindo-o implacável, tentando uma comunhão psíquica que hoje ou
depois se faria, irreversivelmente, pois o ódio – o amor desvairado – vibra,
poderoso e, encontra sintonia naquele a quem se dirige por um processo natural
de harmonia vibratória, em considerando as baixas faixas mentais e morais em
que se demoram os homens. Poderoso, o ódio atrai à sua força imantadora aqueles
que se comprazem na invigilância e na irresponsabilidade, pois que somente a
abnegação, a humildade, o amor, a caridade – as virtudes clássicas! – são
antídoto específico capaz de dissolvê-lo.
A sombra de que se supunha seguido, conforme relatara
Girólamo, eram os primeiros fios invisíveis do remorso que o atariam à sua
vítima central, por cujos liames se apertariam as teias da trama da vingança
cega e louca do desafecto nascido pela traição e pelo homicídio múltiplo.
Utilizando-se do remorso que teceria as malhas de imantação entre um e o outro,
Dom Giovanni penetraria no recesso da consciência anestesiada do jovem e
exerceria o seu predomínio em curso longo de obsessão vingadora, a se demorar
pela esteira imensa do tempo. Não agora, porém, começariam os primeiros
tormentos do criminoso. A Misericórdia Divina concede a bênção do tempo, em mil
oportunidades, para o celerado reabilitar-se,
mediante o arrependimento honesto em termos de acção pelo trabalho e pelo
socorro ao próximo, através da construção do bem, dentro e fora do ergástulo em
que se demora na carne. Todavia, soezes e frívolos, os facínoras se esquecem da
justiça, e, quando esta não os alcança de imediato, supõem-se livres,
prosseguindo na desenfreada cupidez, alucinação e prepotência, adicionando aos
antigos novos débitos, acumpliciados com as mais vis manifestações do instinto,
não totalmente domado ainda e, que lhes são portas da loucura inominável, em
cujo corredor se atiram, sem possibilidade de próxima salvação. Era o que
ocorria com Girólamo.
Limitado pelas comportas carnais, podia ver as cenas de primitivismo a que se
atirava o pai adoptivo, tentando feri-lo, destruí-lo, exacerbado no próprio
desespero. Deambulando pelo imenso solar, agora sem visitas, com os poucos
servidores já recolhidos, repassava, o moço, as cenas ali vividas e se sentia o
senhor absoluto da herdade, antegozando a hora em que, triunfante, com os
documentos de posse, viesse a residir no palácio, demoradamente ambicionado. A
realidade daquela hora parecia tirar-lhe a razão: sorria em alegria quase louca
e bebia eufórico, seguido pela sombra do perseguidor.
A Senhora Ângela, em espírito, que também estivera presente à leitura do
testamento, permanecera orando, tentando penetrar os crepes pesados que
envolviam o esposo, de modo a acenar-lhe com as bênçãos do perdão ao infractor,
que não jornadearia impune
para sempre, libertando-o dos miasmas do ódio, em que se consumia lentamente.
Fechado a qualquer comunicação exterior, o lampejo da lembrança dos seres
queridos foi logo abafado pelo fervor da paixão odienta e nefasta que o venceu
terrivelmente. Assim, a nobre Entidade, que socorria, a seu turno, os filhinhos
recém-chegados e a antiga serva, abandonou o recinto, buscando a esfera da paz
em que amparava os amores, confiando no Pai de Misericórdia e na Mãe
Santíssima, a Eles entregando o esposo perdido nas trevas da ignorância e da
vingança…
/…
VICTOR HUGO, ESPÍRITO “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
3. O TESTAMENTO (3 de 3), 10º fragmento desta obra. Texto mediúnico ditado
a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)