Os Meios de Fuga (II)
Os primeiros homens da cosmogonia mítica da Grécia Antiga,
segundo O Banquete de Platão, eram os hermafroditas, criaturas
duplas, homens e mulheres ligados pelas costas, que andavam a girar na agilidade
de suas quatro pernas.
Constituíam a unidade humana completa, o casal fundido numa unidade
biológica de grande potência.
Esses seres estranhos foram separados por Zeus num golpe de espada,
quando tentavam invadir o Monte Olimpo, subindo em
giros rápidos pelas suas encostas, a fim de destronar os Deuses e assumir o
domínio do Mundo. Daí resultou esta humanidade fragmentária a que
pertencemos e que hoje pretende repetir a façanha mitológica,
invertendo-a. Não querem roubar o fogo do Céu, como Prometeu, mas levar ao
Céu o fogo da Terra e com ele incendiar o Cosmos.
No Jardim
das Hespérides viviam as Górgoras,
mulheres terrivelmente feias e dotadas de misteriosos poderes. Medusa era delas a
principal, dotada de uma cabeleira de serpentes. Perseu matou-a e do seu
sangue nasceu Pégaso,
o cavalo alado que se lançou ao Infinito.
Esses arquétipos gregos continuam activos na dinâmica do inconsciente
colectivo de todos nós, como a impulsionar-nos na conquista do Infinito.
Mas esse delírio grego que figurava, como no mito de Pégaso, a
dialéctica das transformações espirituais, arrancando do sangue de Medusa o
cavalo alado, já não desempenha esse papel, na aridez do pensamento
imediatista em que o mundo se perdeu.
A fealdade e a maldade das Górgoras estavam cercadas de flores e
esperanças.
A cabeleira de Medusa era feita de serpentes, mas o sangue que pulsava no seu
coração deu asas a Pégaso.
Nós, unidades separadas em metades biológicas que não se encontram nem se
fundem, pois desejam apenas o gozo de prazeres efémeros e não a
conjugação psicobiológica da alma e do corpo, só pensamos no Infinito em
termos de finito pragmático.
Os meios de fuga se multiplicaram amesquinhando-se. Não queremos nem mesmo
fugir para Passárgada,
pois já não somos os amigos do Rei, como no sonho do poeta.
A realidade terrena perdeu o encanto das belezas naturais, destruídas
pelo vandalismo inconsequente. O nosso anseio de transcendência é apenas
horizontal, voltado sistematicamente para a conquista de prestígio social,
dinheiro e poder temporal. Nessa linha rasteira de ambições perecíveis, sem
nenhum sentido espiritual, fugimos para a negação de nós mesmos e rejeitamos a
nossa essência divina, pois nos tornamos realmente indignos dela.
O homem frustrado de Sartre transformou
a morte, o túmulo e os vermes, ou o pó impalpável das incinerações
cadavéricas, na sua única herança possível. As palavras de alento de Paulo: “Se nós somos
filhos, somos, também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” soam
no vazio, no oco do mundo, que nem eco produz.
Restaram nas nossas mãos profanadoras apenas as heranças animais: a
violência assassina que é o meio normal de que as feras se servem para
afastar os obstáculos do seu caminho; a astúcia da serpente para
engolir e digerir os adversários mais frágeis; a destruição dos bens
alheios em proveito próprio, no vampirismo desenfreado da selva
social; a dominação arrogante dos que não dispõem de forças
para se defenderem; a mentira, a trapaça, a perfídia de que os
próprios selvagens se enojam e, que nós, os civilizados,
transformamos na alquimia da canalhice generalizada, em processos
subtis de esperteza, que, para vergonha do século e da espécie,
consideramos provas de inteligência. Os nossos meios de fuga
reduzem-se à covardia da fuga a nós mesmos.
“Onde todos andam de rastos – advertiu Ingenieros –
ninguém se atreve a andar de pé”. O panorama mundial da actualidade reduziu-se
a um espectáculo de rastejamento universal. Porque é preciso viver,
acima de tudo viver, pois só os materiais da vida terrena significam alguma
coisa nas aspirações terrenas. A existência, em que o homem
se afirma pela dignidade da consciência, pelo esforço constante de
superação de si mesmo, foi trocada por miúdos, em níqueis inflacionados, pelo
viver larvar do dia a dia rotineiro e da subserviência ao
desvalor dos que conquistaram os postos de comando na sociedade
aviltada. Inteligências robustas e promissoras esvaziam-se na consumação de si
mesmas, servindo de maneira humilhante a senhores ocasionais, que
podem assegurar-lhes o falso prestígio de salários altos e posições invejadas pela
corja rastejante. Todos tremem de medo e pavor ante a perspectiva de referência
desairosa proferida por lábios indignos. Todos os sentimentos nobres
foram aviltados e os jovens aprendem, a coronhadas e bufos de
brutamontes e primatas, que mais vale a boca calada e a cabeça baixa do que o
fim estúpido e definitivo nas torturas das prisões infectadas. Porque a
única verdade geralmente aceite é a do nada. Se o domínio é da força e da
violência, a covardia se transforma em regra de ouro que só os tolos não
aceitam. Tudo isso porque se ensinou às gerações sucessivas, através de
dois milénios, que o homem não é mais do que pó que em pó se reverterá. Os
sonhos do antigo Humanismo foram simples delírios de pensadores
esquizofrénicos. A ordem geral, que todos aceitam, é viver para si mesmo e mais
ninguém.
/…
Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 5
Os Meios de Fuga 2 de 2, 9º fragmento desta obra
(imagem de contextualização: O caranguejo,
pintura de William-Adolphe
Bouguereau)