(prodígios de um adolescente | Herculano Pires por Jorge
Rizzini)
Com o lançamento do jornal “O Porvir”, surgiu em Cerqueira
César o primeiro grupo de literatos formado
por Herculano Pires, Oríchio, Luís Aguiar e o poeta Américo de
Carvalho, todos jovens. O carpinteiro Elias Salomão Farah,
o mais velho do grupo e que tivera um conto premiado pela “Revista da Semana”,
do Rio de Janeiro, e o poeta-telegrafista Benedito Almeida Júnior, vindo
de Barra Grande, agregaram-se em seguida. Duílio Gambini, Djalma
Noronha, Antônio Roxo Garcia e o poeta Raul Osuna Delgado formavam o
grupo da cidade de Avaré, mas já estavam vinculados ao de Cerqueira César. O
jornal “O Porvir” foi o elo que uniu esses grupos ao da cidade de Sorocaba
constituído por Fuad Bunazar, o poeta Hilário Correa e Alfredo Nagib, que viria a se popularizar em São
Paulo como locutor da Rádio Tupi e, posteriormente, se formaria em Direito,
especializando-se em Direitos Autorais. Dois intelectuais também se aproximaram
do grupo de Cerqueira César, liderado por Herculano Pires: eram
eles Pedro José de Camargo e Manuel Cerqueira Leite (este
último se tornaria catedrático da Faculdade de Filosofia de Araraquara e livre
docente de literatura da Universidade de São Paulo). A literatura
acendia o fogo sagrado na imaginação desses rapazes... E eles, unidos,
iriam constituir a União Artística do Interior, um empreendimento cultural
arrojado para a época e que punha em evidência, mais uma vez, a força idealista
de Herculano Pires, não obstante (anotemos) sua pouca idade –
Herculano Pires não tinha dezoito anos completos.
Cerqueira César estava vivendo o ciclo obsessivo do algodão.
Ninguém mais pensava em rebanhos de gado, criação de porcos e aves, em
policultura. O algodão prometia riqueza maior e mais rápida. José Correa Pires
não teve dúvida: entregou o comando da pequena tipografia e do jornal ao seu
filho e tornou-se gerente de uma máquina de beneficiar algodão, enquanto
Ananias Pires e sua família retornavam a Sorocaba. Herculano Pires, então, transformou “O Porvir”, que era
jornal político, em jornal literário, um sonho que vinha alimentando fazia
tempo... Os seus companheiros de literatura vibraram com o facto, pois traziam
sonetos inéditos em todos os bolsos do paletó e das calças...
A acta de fundação da União Artística do Interior (os
rapazes diziam UAI para “legitimar a natureza caipira da
instituição”), foi lavrada em 5 de junho de 1932. Os seus objectivos:
“defesa dos interesses dos nossos escritores, difusão da cultura artística em
geral, amparo e incentivo ao desenvolvimento das artes e letras, inclusive a
formação de núcleos nas diversas cidades”.
É ainda Herculano Pires quem nos informa em texto publicado
quinze anos depois (1947) na “Folha da Manhã”, de São Paulo:
“E não se esquecia da luta contra o analfabetismo, para o que preconizava o
estabelecimento de cursos nocturnos de alfabetização de adultos.”
Formavam a comissão fundadora da União Artística do
Interior: Herculano Pires, Benedito Almeida Júnior, Américo
de Carvalho, João Batista Prata, Duílio Gambini, Antônio Roxo Garcia e o
contista Luís Aguiar, que residira nas cidades de Cerqueira César,
Avaré e Capivari. Deixou-se na acta de fundação uma linha em branco destinada à
assinatura de Raul Osuna Delgado. Ele se aborrecera e, poeta
temperamental, abandonara a reunião... Mais tarde se uniria ao grupo de amigos.
Herculano Pires foi eleito presidente da
instituição. A primeira sugestão sua: “realizar numerosos movimentos
literários em várias cidades do interior”, com o fito de incentivar e despertar
vocações artísticas. Esse trabalho messiânico foi feito,
sistematicamente, apesar da instituição não possuir recursos.
A U.A.I. tinha um patrono que mereceu registo especial.
Era Rodrigues de Abreu, poeta de versos fortes e sofridos,
autor de Casa Destelhada. A escolha do nome de Rodrigues de
Abreu trazia um sentido simbólico, diria depois Herculano Pires, acrescentando que o poeta “era o
rapaz do interior, pobre e obscuro, que apesar de esmagado pela miséria e pela
doença, conseguira triunfar pela força da inteligência e a grandeza do estro”.
A gestão da primeira directoria da U.A.I. terminou em 1933.
Na eleição seguinte, Ruad Bunazar, de Sorocaba, fora eleito
presidente. Mas não pôde assumir o cargo devido à saúde precária e Herculano Pires continuou na presidência da
instituição. Partira de Bunazar a feliz ideia de a U.A.I. patrocinar um
concurso para contos, mas foi Herculano Pires quem o tornou realidade. A
comissão julgadora congregava intelectuais de Sorocaba, destacando-se o
professor Renato
Sêneca Fleury, autor de inúmeros livros infantis que o Brasil inteiro
conhecia.
O vencedor foi o sorocabano Sílvio de Almeida,
humilde ferroviário, autor do conto Dentro do Túnel. Elias
Salomão Farah, de Cerqueira César, obteve menção honrosa. A entrega dos
prémios foi feita (notemos) em sessão solene no auditório da Biblioteca
Municipal de Sorocaba.
O sucesso do concurso estimula Herculano Pires a fazer com que a U.A.I., sediada em
Cerqueira César, lançasse em 21 de outubro de 1934 um outro, desta vez
de poesias. As suas bases foram publicadas nos grandes jornais
paulistas e em revistas de circulação nacional como o “Fon-Fon” e “O Malho”.
Poetas de todo o país se inscreveram em busca de um lugar ao sol, inclusive do
Território do Acre. Mais de duzentos trabalhos foram remetidos à cidadezinha de
Cerqueira César, embora os quatro prémios tivessem pouco valor material (livros
e um estojo de caneta e lapiseira).
Treze anos depois Herculano Pires iria referir-se ao concurso numa
matéria publicada na “Folha de São Paulo”, em 13 de julho de 1947:
“A realização do concurso acarretou um excesso de trabalho
para o pessoal da Agência do Correio de Cerqueira César. A pacata repartição,
acostumada a um volume mais ou menos certo de correspondência, viu-se de súbito
invadida por uma infinidade de pacotes e canudos registados,
procedentes de todo o Brasil, trazendo para o concurso a variada produção dos
nossos poetas anónimos,
sempre numerosos.
Um incidente curioso verificou-se, por esse motivo, e bem
merece ser evocado. O Sr. João Mericofer, geralmente conhecido por
Zico, era o agente postal da cidade. Temperamento retraído, secarrão,
o Zico quase não falava. Desincumbia-se humildemente da sua tarefa diária, dava
umas voltas rápidas pela cidadezinha e voltava para o correio. Logo, porém, que
o concurso tomou vulto e a correspondência começou a abarrotar a agência,
encaminhou-se ele à redacção de “O Porvir”, o semanário local dirigido pelo Sr.
José Pires Correia, e fez a sua reclamação:
Esse concurso prejudica o comércio da cidade! Chegam tantas
cartas e tantos “registos”, que eu não posso distribuir a correspondência na
hora de costume!”
E prossegue o memorialista Herculano Pires:
“Entre os duzentos e tantos trabalhos concorrentes,
impunha-se como vitoriosa a forma moderna de poesia. Havia numerosos sonetos e
alguns trabalhos extensos, metrificados e rimados com todo o rigor da
forma parnasiana.
Mas os poemas modernos, de estro livre, eram em muito maior número. Nada,
entretanto, de futurismo, simbolismo ou coisa semelhante. A liberdade métrica e
a substituição dos efeitos de rima pelas do ritmo e de imagens eram os
característicos da maioria dos concorrentes.
Havia versos como estes, de Pedro José de Camargo,
de Itapetininga, descrevendo uma mulata sambista, num poema que obteve “menção
honrosa”:
Quanto ela ri,
Seus dentes simétricos, leitosos,
São duas carreiras de grãos de milho verde.
E outros de um sabor estranho, lembrando a influência do
sangue árabe na nossa formação racial, como este de Pedro Chacair,
de Santo António da Alegria:
Pudesse eu ser Maomé moderno,
De espada em punho e o “Crê ou morres” na alma,
E diria a teu pau:
– Crê no amor, ou morres!
Ou ainda do mesmo poeta:
Quero dormir, sonhar!
Que ideal, viver assim,
a vibrar, a esquecer, a enlouquecer aos poucos,
ao sabor voluptuoso de “haschich”!”
E Herculano Pires recorda o curioso incidente devido à
participação de seu amigo Raul Osuna Delgado, poeta irreverente:
“O Porvir, pequeno semanário de Cerqueira César, tornou-se o
órgão oficial do concurso. Divulgava as bases, noticiava o recebimento de
originais, informava os concorrentes sobre o andamento do certame. Por isso
mesmo, recusou-se a aceitar a reclamação do Zico Mericofer. Mas
quando começou a publicar os trabalhos distinguidos com “menção honrosa”,
provocou certa vez um verdadeiro escândalo entre os leitores da população
pacata e religiosa de Cerqueira César. Foi no domingo em que inseriu o soneto
“SE...”, de Raul Osuna Delgado, um jornalista da vizinha cidade de
Avaré, já falecido.
Osuna Delgado foi uma das figuras mais
interessantes do jornalismo de nosso interior. Inteligente, espírito vibrante,
era dotado de uma combatividade que transformou a sua existência numa luta contínua.
O actual prefeito avareense, Romeu Bretas, que ainda agora esteve
em foco na Assembleia Legislativa do Estado com o “caso” da agressão a um
jornalista da terra, teve lutas sérias com Osuna, que naturalmente
não “levou a melhor”, dado o regime discricionário que vigorava na ocasião...
Fiel à sua vocação combativa, Osuna Delgado inscrevera
no concurso um soneto que mereceu a “menção honrosa” em virtude mesmo da sua
audácia. Não negaremos ao leitor o prazer de saborear esse interessante soneto,
que tantos aborrecimentos causou ao pessoal de “O Porvir”, quando de sua
publicação:
Se aqui junto de Deus existe, realmente,
A desejada paz de inúmeros mortais;
Se aqui junto de Deus, sob a luz dos vitrais,
O cura tem o dom de perdoar a gente;
Se aqui junto de Deus este ou aquele crente
Está longe da mão dos anjos infernais;
Se aqui junto de Deus os grandes temporais
Encontram um titã de força omnipotente;
Se aqui junto de Deus se ocultam mil cruzadas,
Capazes de abater milhões de renegados
Por esse mesmo Deus... então, da igreja eu saio
E olhando para a cruz, além do campanário,
Eu pergunto, de chofre: ilustre e bom vigário,
Que diabo faz, na torre, aquele para-raio?
O padre José Julianetti, já falecido, que por
mais de vinte anos foi vigário da paróquia, fez uma pregação especial contra o
poeta, o concurso e o jornal...”
Aberto em 21 de outubro de 1934, o concurso encerrou-se a 21
de janeiro de 1935. A comissão julgadora era constituída por dois
consagrados intelectuais de São Paulo, os poetas Ribeiro
Couto e Menotti
Del Picchia, mais Nair Mesquita, directora da revista
“Vanítas”, que atribuíra o primeiro prémio ao poema “Rodrigues de Abreu”, de
autoria de Jerônimo Leite, poeta do território do Acre. Houve
catorze menções honrosas, entre as quais se destacava mais um poeta
acreano, José Carlos da Silva Pires, residente em Saboeiro, Alto
Juruá.
Entre 1934 e 1935 o Brasil viveu poderosas agitações
políticas, que atingiram também elementos da U.A.I.. Aproximava-se o fim da
instituição. A última acta, a de número 12, foi lavrada a 28 de maio de 1935 e
mostra a sua situação precária. Presentes à reunião apenas três membros: Herculano Pires, que assinou-a, o poeta Américo de
Carvalho e o contista Luís Aguiar. O último aparecimento
público da nobre instituição se verificou uma semana depois, no dia 5 de junho,
através de uma conferência pronunciada pelo médico baiano Adalberto de
Assis Nazaré, no Cine Rio Branco, perante público reduzido.
“A U.A.I. – escreveu doze anos depois Herculano Pires – exerceu, durante os seus
três anos de funcionamento, influência considerável no interior paulista, em
favor da popularização da poesia e das artes modernas. O seu trabalho
foi tão revolucionário e atabalhoado quanto o da “Semana de Arte Moderna”,
podendo considerar-se como um reflexo caboclo desse
grande movimento paulista.”
E, em outra crónica, Herculano assumiu a mesma posição e fez uma justa
reivindicação:
“Os historiadores da literatura brasileira ainda não
tomaram conhecimento dessa revolução literária das províncias, que partiu de
Cerqueira César e empolgou o Brasil. Não teve ela as proporções nem o
brilho da famosa Revolução de 22, mas foi, de certa maneira, uma das suas
consequências. A U.A.I. representou uma tomada de consciência dos que sofriam
no interior o isolamento cultural. Os dois concursos que ela promoveu tiveram
grande repercussão na imprensa nacional, e um dia, forçosamente, alguém se
lembrará desse feito cerqueirense.”
/...
Jorge Rizzini, José Herculano Pires o Apóstolo de
Kardec o Homem, a Vida, a Obra, (2) Prodígios de um adolescente
/ A União Artística do Interior, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: São
Luís com a coroa de espinhos, desenho de Alexandre
Cabanel)