CAPÍTULO I
~~ Fundamentos científicos da concepção neo-espírita da vida
e da história ~
Que somos? (VII)
Certo é que o eminente psiquiatra
Lombroso não mais sustentasse nos seus últimos anos, depois das suas célebres experiências no
fenomenismo espírita, a teoria anticientífica que confunde o génio com a
loucura, nem houvesse escrito as páginas (das quais teve que se envergonhar
mais tarde) nas quais colocava os médiuns e os espíritas na categoria de
loucos
e anormais; e é certo também que o nosso sábio
Ingenieros, tendo
vivido alguns anos mais (já engajado na corrente metapsíquica), se arrependeu
de ter estabelecido uma triste semelhança entre a
loucura genial de
Nietzsche e
a
loucura genial de Jesus, nem tivesse sustentado a afirmação
positivo-materialista de que já “não há alma”, considerada como uma entidade
“real ou espiritual”, que a alma é uma
função-adjunta no curso
da evolução biológica.
Deixando de lado os prejuízos de escola, que os factos se
encarregam de destruir, pouco a pouco, voltemos ao fenómeno de dupla
personalidade.
Citamos o caso de Félida, estudado pelo doutor
Azam.
Félida era oriunda de Bordéus, filha de pais saudáveis; na
idade de treze anos começaram a produzir-se nela as mudanças de personalidade,
primeiro com curtos intervalos que foram tomados por acessos de loucura e
denunciados como tais ao doutor Azam, à época médico do Asilo Público de
Alienados, que a atendeu e a estudou pessoalmente durante três anos
(1857-1859), enquanto permaneceu solteira, e desde esta última data até 1876,
valendo-se das observações do seu marido.
Mais tarde, as mudanças foram mais prolongadas, permanecendo
durante meses em estados alternados.
As lembranças de Félida existiam somente para os factos
ocorridos durante as condições semelhantes, desconhecendo numa o que se passava
na outra, ao ponto de ficar grávida numa delas e ignorá-lo durante os primeiros
estados da sua segunda personalidade.
O trânsito de um estado para o outro se produzia mediante o
sono ou, atendo-nos às palavras do dr. Azam, mediante um “torpor profundo
parecido ao sono”.
Em Félida existiam duas personalidade completas
e distintas, perfeitamente caracterizadas: uma (a segunda) era alegre,
jovial e psiquicamente saudável; tinha gostos, sentimentos, lembranças
características e até mostrava maior inteligência do que a outra; esta última,
que é normal, mostrava-se triste, taciturna, a sua conversação era séria, parca
no falar, a sua vontade era firme, os seus sentimentos afectivos pouco
desenvolvidos, até ao ponto de mostrar-se indiferente com a sua família e
rebelar-se contra a autoridade do seu marido; sofria dores intensas em todo o
corpo.
Vejamos o quadro que dela nos faz o doutor Azam:
“Félida X está sentada e tem sobre os seus joelhos um
trabalho qualquer de costura; de repente, sem que nada possa prever e depois de
uma dor na fronte, mais forte do que o comum, cai a cabeça sobre o peito, as
suas mãos permanecem inactivas ao longo do corpo; dorme ou aparenta dormir, mas
com um sono especial, pois nem o ruído nem outra excitação, beliscos ou picadas
a despertam; ao demais, esta espécie de sono é absolutamente súbita; dura dois
ou três minutos – antes era mais longo –; desperta, mas não se encontra no
estado intelectual em que estava quando adormeceu. Tudo parece diferente:
levanta a cabeça e, abrindo os olhos, saúda sorridente aos que chegam; a sua
fisionomia se ilumina e respira alegria; a sua palavra é breve, enquanto
continua contente o trabalho do enxoval que começou no seu estado precedente;
se se levanta, o passo é ágil e apenas se queixa de muitas dores que alguns
minutos antes sofria; atendendo aos cuidados da casa, sai, anda pelo povoado,
visita, faz um trabalho qualquer e o seu aspecto é o de uma jovem da sua idade,
saudável.
O seu carácter mudou completamente; de triste se torna
alegre e a sua vivacidade aproxima-se da turbulência; a sua imaginação está
mais exaltada; por motivos insignificantes se emociona, triste ou alegremente;
de indiferente se torna sensível ao extremo.
Em ambas as vidas, as suas faculdades
intelectuais e morais, ainda que diferentes, estão íntegras; nenhuma ideia
delirante, nem a apreciação falsa ou alucinação; na sua segunda condição, todas
as suas faculdades parecem mais desenvolvidas e completas. Esta segunda vida,
na qual não sente dor física, é superior à outra, sobretudo pelo facto já
indicado de que Félida se lembra não somente de tudo o que aconteceu durante os
acessos anteriores, como de toda a sua vida normal, enquanto que nesta, nada
recorda do que aconteceu nos ataques.”
Eis aqui duas personalidades psiquicamente
distintas, manifestando-se alternadamente por um mesmo organismo, por meio de
um mesmo coração e de um mesmo cérebro, não obstante diferençar-se nos
sentimentos e em inteligência e expressar caracteres opostos, continuando uma
só existência individual nos trabalhos e misteres próprios dessa
individualidade, sem recordar, uma das personalidades, o que faz e pensa a
outra e tendo consciência esta do que fazem as duas durante os acessos
anteriores e consecutivos: uma, jovial e alegre, terna e afectuosa; a outra,
sóbria, triste, retraída e indiferente aos afectos; saudável uma, doente a
outra, vivendo num mesmo corpo.
Este facto é inconciliável com a psicofisiologia e, não
como se tem pretendido, com a unidade e indivisibilidade do eu.
Não se trata, neste caso, como em outros análogos, de duas
individualidades, mas de duas personalidades: aqui se apoia a
confusão de muitos psicólogos e também de muitos metapsiquistas. Félida não tem
duas vidas, duas almas, duas individualidades num só espírito, como todos os
demais com uma consciência normal e uma subconsciência que guarda a
lembrança e a personalidade característica do que foi em uma existência
anterior; e essa personalidade característica do que foi, transcende
periodicamente e anula a consciência normal e se manifesta não como é Félida no
seu estado normal, mas como foi na sua personalidade anterior, sem ter a
lucidez suficiente para recordar o seu passado; vive-o somente, até que por um
acesso ou alteração alternativa, muda a sua personalidade e volta ao seu estado
normal, dominando por último o segundo estado. Significa que esta segunda
personalidade não se radica num hemisfério do cérebro e a outra na outra
metade, hipótese absurda e à margem de toda a experiência científica.
Por outro lado, não se explica como um hemisfério cerebral
pode inibir a outra parte nas suas funções, como surge e se resolve este
conflito cerebral e como dois órgãos cerebrais produtores de duas individualidades
distintas podem concordar com as funções de um só coração.
Mesmo assim, não pretendemos negar a correlação
psicofisiológica. Sabemos, porque assim tem estabelecido a psicologia
experimental, que no funcionamento normal do o organismo, cada
órgão, célula nervosa, fibra, ou o centro cerebral, desempenha uma função sob a
acção consciente ou inconsciente do espírito. Mas uma coisa é aceitar verdades
demonstradas e, a outra, muito diferente, tomar como tal as hipóteses ou
confundir as condições fisiológicas dos fenómenos psíquicos com a sua causa, ou
anular no espírito uma faculdade determinada, pelo facto de que não se
manifesta nas condições orgânicas defeituosas ou não existentes para o seu
funcionamento normal.
Dos factos expostos acima, deduz-se que os centros
receptores sensoriais, os centros motores e os centros de transformação e de
associação para os fenómenos psíquicos, as células nervosas, gânglios, fibras,
isto é,
o eixo cérebro-espinhal e os músculos e órgãos sensoriais, não
mais são do que a estrutura exterior, o revestimento material de uma
organização etérea, animada pelo espírito, pelo
eu pensante,
consciente e volitivo, vinculada ao dínamo-psiquismo celular, ao qual este está
subordinado e ambos o estão ao espírito. Este é a verdadeira causa psíquica
individual organizadora e directriz na qual radica todo o poder e toda a
faculdade anímica e que, em estados supranormais, pode perceber mesmo sem os
órgãos do corpo somático. E como o faz notar
G. Dwelshauvers, no
seu livro
O Inconsciente, “põe em jogo as células cerebrais dos
centros localizados, supõe uma excitação preliminar e esta provém de um acto
psicobiológico que, em si mesmo, não pode ser localizado. E se é impossível
localizar a menor das sensações, o é muito mais assinalar um lugar determinado
do córtex cerebral ao que antes se denominava faculdades de abstracção:
vontade, sentimento, imaginação e memória”.
Com efeito, quando o espírito realiza um acto
psicofisiológico, elabora um pensamento, toma uma resolução ou provoca uma
lembrança, actua sobre os centros respectivos e ao não conceder espontaneidade
a cada célula cerebral dos centros localizados, ou seja, o princípio funcional
do acto psíquico que se desenvolve por seu próprio impulso, há que se admitir
ou que esta espontaneidade ou impulsão provém de outra célula cerebral,
localizada em determinado centro, necessariamente persistente para a manutenção
do equilíbrio e da ordem psico-funcional (o que nem a Psicofisiologia nem a
Neurobiologia demonstraram), ou que a excitação preliminar, que o princípio do
acto psíquico superior provém do espírito, considerado este como unidade
psíquica, como entidade essencial e distinta do organismo, que se vale dos centros
para o funcionamento psíquico normal. Essa unidade psíquica não constitui os
centros nem é o resultado de um suposto polipsiquismo celular, tão inadmissível
do ponto de vista psicológico, como contrário aos fenómenos metapsíquicos e
espíritas, que provam a sua existência e independência, tão menosprezada pelos
sábios que não saíram do limite restrito da Psicofisiologia. (*)
Uma coisa é dizer que determinados centros
correspondem normalmente a determinadas funções ou actos
psíquicos e outra, muito diferente, que sejam os centros cerebrais ou, na sua
falta, medulares, os que elaboram ou produzem por si mesmos ou por associações
o fenómeno psíquico. Este último não foi demonstrado pela ciência experimental.
/…
(*) É possível conciliar a unidade do eu com a
pluralidade funcional das células que constituem os centros cerebrais,
subordinando, subentende-se, aquela ao poder unitário psicodinâmico,
centralizador e director do espírito. Todo o homem, como diz Frederic Myers, é ao
mesmo tempo unitário e infinitamente complexo; herda dos seus antepassados um
organismo múltiplo, colonial, polizóico e por acaso polipsíquico no grau
extremo; mas também com uma alma ou espírito absolutamente exequível à nossa
análise, que rege e unifica esse organismo; alma que tem a sua origem em um
meio espiritual ou metaetéreo e que mesmo quando encarnado em um corpo,
permanece em comunicação com esse meio e retorna a ele depois da morte do
corpo. (A Personalidade Humana, pág. 28).
Manuel S. Porteiro, Espiritismo Dialéctico, CAPÍTULO I Fundamentos
científicos da concepção neo-espírita da vida e da história – Que somos? (VII),
7º fragmento da obra.