| Só as religiões estacionárias podem temer as descobertas da
ciência; estas descobertas só são funestas para as que se deixam distanciar das
ideias progressistas, imobilizando-se no absolutismo das suas crenças; têm em
geral uma ideia tão mesquinha da Divindade, que não percebem que assimilar as
leis da natureza reveladas pela ciência é glorificar a Deus nas suas obras; na
sua cegueira, preferem homenagear o Espírito do mal. Uma religião que
não estivesse em nenhum ponto em contradição com as leis da natureza, nada teria
a recear do progresso e seria invulnerável.
O Génesis compõe-se de duas partes: a história da formação do mundo material e
a da humanidade, considerada no seu duplo princípio corporal e espiritual. A
ciência limitou-se à procura das leis que regem a matéria; mesmo no homem, só
estudou o invólucro carnal. A este respeito conseguiu perceber, com uma
precisão incontestável, as principais partes do mecanismo do Universo e do
organismo humano. Neste ponto capital, pode então completar a Génese de Moisés e
dela retirar as partes defeituosas.
Mas a história do homem, considerado como ser espiritual,
liga-se a uma ordem especial de ideias que não é do domínio da ciência
propriamente dita e que esta, por este motivo, não tomou como tema das suas
investigações. A filosofia, que tem mais particularmente nas suas atribuições
este tipo de estudo, sobre este ponto só formulou teorias contraditórias, desde
a espiritualidade pura até à negação do princípio espiritual e até mesmo de
Deus, sem outras bases para além das ideias pessoais dos seus autores; deixou
portanto a questão indefinida, à falta de um controlo suficiente.
Esta questão, no entanto, é para o homem a mais importante,
pois trata-se do problema do seu passado e do seu futuro; a do mundo material
só lhe toca indirectamente. O que lhe interessa antes de mais nada é saber de
onde vem, para onde vai; se já viveu e se voltará a viver e qual a sorte que
lhe está reservada.
Sobre todas estas questões, a ciência fica muda. A
filosofia só dá opiniões que vão em sentido diametralmente oposto, mas
pelo menos permite discutir, o que faz com que muita gente se coloque do seu
lado, dando-lhe preferência à religião, que não discute.
Todas as religiões estão de acordo quanto ao princípio da
existência da alma, sem no entanto o demonstrarem; mas não estão de acordo nem
sobre a sua origem, nem sobre o seu passado, nem sobre o futuro, nem
principalmente sobre o essencial, sobre as condições de que depende a sua sorte
futura. Na sua maior parte, fazem do seu futuro um quadro imposto à fé dos seus
adeptos, que só pode ser aceite por uma fé cega mas que não pode resistir a um
exame sério. Estando o destino que dão à alma ligado, nos seus dogmas, às
ideias que se tinham sobre o mundo material e ao mecanismo do Universo nos
tempos primitivos, é inconciliável com o estado dos conhecimentos actuais. Só
podendo perder com a observação e a discussão, acham mais simples banir uma e a
outra.
Destas divergências respeitantes ao futuro do homem nasceram
a dúvida e a incredulidade. No entanto, a incredulidade deixa um vazio penoso;
o homem encara com ansiedade o desconhecido para onde, mais tarde ou mais cedo,
deve fatalmente ir; a ideia do nada gela-o; a sua consciência diz-lhe que, para
lá do presente, há para ele qualquer coisa: mas o quê? A sua razão desenvolvida
já não lhe permite aceitar as histórias com que lhe embalaram a infância, tomar
a alegoria pela realidade. Qual é o sentido desta alegoria? A ciência rasgou
uma ponta do véu, mas não lhe revelou o que lhe interessa mais saber. Questiona
em vão, nada lhe responde de forma peremptória e apropriada para acalmar as
suas apreensões; em todo o lado, encontra a afirmação chocando com a negação,
sem provas mais positivas de um lado e de outro; daí a incerteza
e a incerteza sobre coisas da vida faz com que o homem se atire com uma
espécie de frenesim para as da vida material.
É este o efeito inevitável das épocas de transição:
o edifício do passado desmorona-se e o do futuro não está ainda construído.
O homem é como um adolescente que já não tem a fé ingénua dos seus primeiros
tempos e não possui ainda os conhecimentos da idade madura; só tem vagas
aspirações que não sabe definir.
/...
ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as
Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo IV, PAPEL DA CIÊNCIA NA GÉNESE,
números de 10 a 14, fragmento. Tradução portuguesa de Maria Manuel
Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Amaldiçoados com figuras
do submundo, Juízo Final, afresco, detalhe da parede do altar
da Capela Sistina, Vaticano, Michelangelo)
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