A NEUROFISIOLOGIA DURANTE AS PARAGENS CARDÍACAS
Através de muitos estudos tanto em modelos animais como
humanos, foi demonstrado que as funções cerebrais ficaram severamente
comprometidas, com perda súbita de consciência, todos os reflexos
corporais, a abolição de actividade do tronco cerebral com perda do reflexo
faríngeo e do reflexo córneo-palpebral e pupilas fixas e dilatadas (Parnia e
Fenwick, 2002).
Também falham as funções do centro respiratório, localizado
junto do tronco cerebral, o que resulta em apneia. A cessação completa da circulação cerebral é observada nas paragens cardíacas induzidas devido a
fibrilação ventricular, durante os testes de implantação de desfibriladores
internos.
Este modelo completo de isquémia cerebral pode ser usado
para estudar os resultados da anoxia do cérebro. O fluxo sanguíneo da artéria
cerebral média, que é uma variante expressiva de monitorização do fluxo
sanguíneo no cérebro, decresce para zero cm/seg. imediatamente a seguir à indução
de fibrilação ventricular (Gopalan e outros, 1999). A actividade eléctrica
tanto no córtex cerebral como nas estruturas mais profundas do cérebro foi
demonstrado estar ausente um instante depois. A monitorização da actividade
eléctrica do córtex (electro encefalograma – EEG) mostrou que as primeiras
mudanças isquémicas são detectadas no EEG, em média, 6,5 seg após a eclosão da
paragem circulatória e, com o prolongamento da isquémia cerebral ocorre sempre
uma progressão para a isoecletricidade entre 10 e 20 seg. (média: 15 seg.) (De
Vries e outros, 1998; Clute e Levy, 1990; Losasso e outros., 1992; Parnia and
Fenwick, 2002).
Depois da desfibrilação o fluxo sanguíneo da artéria
cerebral média, medido pelo Doppler transcraniano, regressa rapidamente (1 a 5 seg) depois da paragem
cardíaca de curta duração (Gopalan e outros, 1999). Contudo, no caso de
paragens cardíacas de mais de 37 seg. a actividade electroencefalográfica
normal pode não se restabelecer durante longos minutos ou horas depois de as
funções cardíacas se terem normalizado, dependendo da duração da paragem
cardíaca, apesar da manutenção duma pressão arterial adequada na fase de
recuperação (Smith e outros, 1990). Adicionalmente, a recuperação de
electroencefalograma subestima a recuperação metabólica do cérebro, e a
assimilação de oxigénio pode permanecer diminuta por tempo considerável depois
da recuperação circulatória (De Vrieset e outros, 1998).
No caso dos enfartes agudos do miocárdio a duração da
paragem cardíaca na Unidade de Cuidados Coronários é habitualmente de 60–120
seg.; numa enfermaria hospitalar ou numa paragem em meio não hospitalar a
paragem pode demorar muito mais. A anoxia causa perda de funções dos sistemas
celulares. A cessação de actividade eléctrica e da transmissão sináptica
em neurónios pode ser considerada como uma defesa instalada ou resposta de
poupança de energia (“penumbra isquémica”) (Coimbra, 1999). Com
tais funções inactivas, os recursos podem ser usados para manter a
sobrevivência celular. A anoxia de apenas alguns minutos de duração
causa uma perda provisória de funções do sistema celular; na anoxia prolongada
ocorre a morte de células com perda permanente de funções.
Durante a ocorrência de embolias um pequeno coágulo obstrui
a corrente sanguínea num pequeno vaso do córtex, resultando anoxia numa parte
do cérebro causando perda funcional do córtex, tal como hemiplegia, cegueira
parcial ou afasia. Quando o coágulo se dissolver ou fragmentar dentro de alguns
minutos a função cortical restabelece-se, e passa a designar-se como ataque
isquémico transitório (AIT). Contudo, quando o coágulo obstrui o vaso cerebral
durante largos minutos ou horas causa a morte de células neuronais com perda
permanente de funções nesta parte do cérebro, e tem lugar o diagnóstico de
acidente vascular cerebral (AVC). Desta forma a anoxia transitória
resulta em perda transitória de funções e na paragem cardíaca ocorre em
segundos uma anoxia total do cérebro, e a atempada e adequada aplicação
da Ressuscitação Cardiopulmonar (RCP) pode inverter essa perda provisória de
funções cerebrais, por ter evitado a perda definitiva de neurónios.
Uma adequada massagem torácica externa produz um fluxo
sanguíneo mínimo, causando o aumento das possibilidades de recuperar as funções
cerebrais (Herlitz e outros, 2002). Uma anoxia de longa duração, causada pela
cessação da corrente sanguínea no cérebro por mais de 5 a 10 minutos, resulta em
prejuízos irreversíveis pela morte de células cerebrais. As mais vulneráveis
áreas do cérebro à anoxia são os neurónios do córtex, e os neurónios do tálamo
e do hipocampo. (Fujioka e outros, 2000; Kinney e outros, 1994), por serem
ambos uma ligação importante entre o tronco cerebral e o córtex no apoio à
possibilidade de uso da consciência.
Do estudo de paragens cardíacas induzidas sabemos que no nosso estudo
prospectivo de doentes holandeses que sobreviveram a paragens cardíacas (Van
Lommel e outros, 2001) bem como no estudo americano (Greyson, 2003) e no estudo
inglês (Parnia e outros, 2001), não somente uma falta total de
actividade eléctrica do córtex deve ter sido a única possibilidade, mas também
a abolição da actividade do tronco cerebral. Contudo, doentes que passam por uma
EQM declaram ter tido uma consciência clara. E por motivo das ocasionais e
verificáveis experiências fora do corpo, como aquela que diz respeito o caso da
dentadura que fez parte do nosso estudo, sabemos que os EQM podem
suceder durante o período de inconsciência e não nos primeiros ou últimos
segundos da paragem cardíaca.
Desse modo teremos que chegar à conclusão surpreendente que,
durante a paragem cardíaca uma EQM é vivida durante uma perda funcional
transitória de todas as funções do córtex e do tronco cerebral.
Como é possível alguém dispor de consciência clara
estando fora do corpo, no momento em que o cérebro já não funciona, em estado
de morte clínica, com electroencefalograma plano? (Sabom, 1998).
Um cérebro nessas condições seria aproximadamente como um computador com a
ficha desligada da corrente, com os circuitos retirados do lugar. Não poderia
ter alucinações, não poderia fazer completamente nada.
Como declarado acima, a disponibilidade paradoxal
de percepção elevadamente lúcida e processos de pensamento lógico durante o
período de circulação cerebral danificada em decurso de paragem cardíaca,
coloca ao nosso presente entendimento da consciência e das suas relações com as
funções cerebrais questões de especial perplexidade.
/...
Dr.
Pim van Lommel, As Experiências de Quase-Morte, A Consciência e o
Cérebro – A NEUROFISIOLOGIA DURANTE AS PARAGENS CARDÍACAS (4º
fragmento) tradução para a língua portuguesa de palavra luz, depois de
autorizada pelo autor.
(imagem de contextualização: O Hospital Rijnstate,
em Arnhem – Holanda)
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