Até aqui, no nosso estudo da questão de Deus, mantivemo-nos
no terreno dos princípios. Nesse domínio, a ideia de Deus nos aparece qual
chave da abóbada da doutrina espiritualista. Vejamos agora se não tem a
mesma importância no domínio dos factos, na ordem experimental. (i)
À primeira vista, pode parecer estranho ouvir dizer que a
ideia de Deus representa um papel importante no estudo experimental, na
observação dos factos espíritas.
Notemos primeiramente que há tendência, por parte de certos
grupos, para dar ao Espiritismo carácter sobremaneira experimental, para
fazer-se exclusivamente o estudo dos fenómenos, desprezando-se o que tem cunho
filosófico, tendência para rejeitar tudo o que possa recordar, por pouco que
seja, as doutrinas do passado, para, em suma, limitar tudo ao terreno
científico. Nesses meios, procura afastar-se a crença e a afirmação
de Deus, por supérfluas, ou, pelo menos, por serem de demonstração impossível. Pensa-se,
assim, atrair os homens de ciência, os positivistas, os livres-pensadores,
todos aqueles que sentem uma espécie de aversão pelo sentimento religioso, por
tudo o que tem certa aparência mística ou doutrinal.
Por outro lado, desejar-se-ia fazer do Espiritismo um
ensino filosófico e moral, baseado nos factos, ensino susceptível de substituir
as velhas doutrinas, os sistemas caducos, e satisfazer o grande número de Almas
que buscam, antes de tudo, consolação para as suas dores; uma filosofia
simples, popular, que lhes dê tréguas às tristezas da vida.
De um lado e de outro, há multidões a contentar; muito
mais, até, de um lado que do outro, porque a multidão daqueles que lutam e
sofrem excede em muito a dos homens de estudo.
A sustentar essas duas teses vemos, de uma parte e de
outra, homens sinceros e convencidos, a cujas qualidades nos congratulamos de
render homenagem.
Por quem optar? Em que sentido convirá orientar-se o Espiritismo para
assegurar a sua evolução?
O resultado das nossas pesquisas e das nossas observações
leva-nos a reconhecer que a grandeza do Espiritismo,
a influência que adquire sobre as massas, provém, principalmente, da sua
doutrina; os factos são os fundamentos em que o edifício se apoia. Certamente!
As fundações representam papel essencial em todo o edifício, mas não é nas
fundações, isto é, nas estruturas subterrâneas, que o pensamento e a
consciência podem encontrar abrigo.
(i) Vide as minhas obras precedentes: Cristianismo e Espiritismo, No
Invisível e, ainda, Espíritos e Médiuns – tratado de Espiritismo
experimental.
Aos nossos olhos, a missão real do Espiritismo não
é somente esclarecer as inteligências por um conhecimento mais preciso e mais
completo das leis físicas do mundo; tal consiste, primacialmente, em
desenvolver a vida moral nos homens, a vida moral que o materialismo e o
sensualismo têm amesquinhado tanto. Levantar os caracteres e
fortificar as consciências, tal é o papel do Espiritismo. Sob este
ponto de vista, pode ser remédio eficaz para os males que assediam a sociedade
contemporânea, remédio a esse acréscimo inaudito do egoísmo e das paixões, que
nos arrastam ao abismo. Julgamos dever exprimir aqui a nossa inteira convicção:
não é fazendo do Espiritismo somente uma ciência positiva, experimental; não
é eliminando nele o que há de elevado, o que atrai o pensamento
acima dos horizontes estreitos, isto é, a ideia de Deus, o uso da
prece, que se facilitará a sua missão; ao contrário, concorrer-se-ia para
torná-lo estéril, sem acção sobre o progresso das massas.
Certamente! Ninguém mais do que nós admira as conquistas
da Ciência; sempre tivemos prazer de render justiça aos esforços
corajosos dos sábios que fizeram recuar a cada dia os limites do
desconhecido.
Mas a Ciência não é tudo. Sem dúvida ela tem
contribuído para esclarecer a Humanidade; entretanto, tem-se mostrado sempre
impotente para torná-la mais feliz e melhor.
A grandeza do espírito humano não consiste somente no
conhecimento; está também no ideal elevado. Não foi a Ciência, e sim o
sentimento, a fé e o entusiasmo que fizeram Jeanne d'Arc e
todas as grandes epopeias da História.
Os enviados do Alto, os grandes predestinados, os
videntes e os profetas não escolheram por móbil a ciência: escolheram a crença.
Eles vieram para mostrar o caminho que conduz a Deus.
Que é feito da ciência do passado? As vagas do esquecimento
a submergiram, tal qual submergirão a ciência dos nossos dias. Quais serão os
métodos e as teorias contemporâneas em vinte séculos? Em compensação, os nomes
dos grandes missionários têm sobrevivido através dos tempos. O que
sobrevive a tudo, no desastre das civilizações, é o que eleva a alma humana
acima de si mesma, para um fim sublime, para Deus!
Há outra coisa mais. Mesmo limitando-nos ao terreno do
estudo experimental, há uma consideração capital em que devemos
inspirar-nos. É a natureza das relações que existem entre os homens e o
mundo dos Espíritos; é o estudo das condições a preencher para tirar dessas
relações os melhores efeitos.
Logo que chegamos aos ditos fenómenos, ficamos
impressionados pela composição desse mundo invisível que nos cerca, pelo
carácter das multidões de Espíritos que nos rodeiam e que procuram sem cessar
pôr-se em relação com os homens. Em torno do nosso atrasado planeta
flutua uma vida poderosa, invisível, onde dominam os Espíritos levianos e zombeteiros, com os quais
se misturam Espíritos perversos e malfazejos. Aí há muitos apaixonados, cheios
de vícios, criminosos. Deixaram a Terra com a alma repleta de ódio, com o
pensamento saturado de vingança: esperam na sombra o momento
propício para satisfazer os seus rancores, as suas fúrias, à custa dos
experimentadores imprudentes e imprevidentes que,
sem precaução, sem reserva, abrem de par em par as vias que fazem comunicar o
nosso mundo com o dos Espíritos.
É desse meio que nos vêm as mistificações sem-número,
os embustes audaciosos, as manobras bem conhecidas dos
Espíritos experimentados, manobras pérfidas, que, em certos casos, conduzem
os médiuns à obsessão, à possessão, à perda das suas mais
belas faculdades, a tal ponto que certos críticos, fazendo a enumeração das
vítimas desses factos, contando todos os abusos que decorrem de uma
prática imprevista e
frívola do Espiritismo, têm perguntado se não seria ele uma fonte de
perigos, de misérias, uma nova causa de decadência para a Humanidade. (ii)
Felizmente, ao lado do mal está o remédio. Para nos
livrar das influências más existe um recurso supremo. Possuímos um meio
poderoso para afastar os Espíritos do abismo e para fazer do Espiritismo um
elemento de regeneração, um sustentáculo, um confortante. Esse recurso,
esse preservativo é a prece, é o pensamento dirigido para Deus! O
pensamento de Deus é qual uma luz que dissipa a sombra e afasta os Espíritos
das trevas; é uma arma que dispersa os Espíritos malfazejos e nos preserva dos
seus embustes. A prece, quando é ardente, improvisada – e não
recitação monótona –, tem um poder dinâmico e magnético considerável; (iii) ela
atrai os Espíritos elevados e assegura-nos a sua protecção. Graças a
eles podemos sempre comunicar com aqueles que nos amaram na Terra, aqueles que
foram a carne da nossa carne, o sangue do nosso sangue e que, da sombra do
Espaço, nos estendem os braços.
(ii) Vide J. Maxwell, Fenómenos
Psíquicos, páginas 232 a 235; Léon Denis, No Invisível, cap. XXII. Vide
também Relatório de Congresso Espírita de Bruxelas, 1910, págs. 112, 124.
(iii) Obtemos a prova objectiva desse facto por meio das Chapas
fotográficas. No estado de prece, pelo contacto dos dedos, conseguimos
impregnar as chapas de radiações muito mais activas, de eflúvios mais intensos
do que no estado normal.
Temos verificado, muitas vezes, na nossa carreira de
experimentadores: quando, numa reunião espírita, todos os pensamentos e
vontades se unem num transporte poderoso, numa convicção profunda; quando
sobem para Deus pela prece, jamais falha o socorro. Todas essas vontades
reunidas constituem um feixe de forças, a arma segura contra o mal. Ao
apelo que se eleva para o céu, há sempre algum Espírito de escol que
responde. Esse Espírito protector, a convite do Alto, vem dirigir os
nossos trabalhos, afastar dali os Espíritos inferiores, deixando somente
intervir aqueles cujas manifestações são úteis para eles próprios ou para
os encarnados.
Há aí um princípio infalível. Com o pensamento
purificado e a elevação para Deus, o Espiritismo experimental
pode ser uma luz, uma força moral, uma fonte de consolações. Sem
esses requisitos ele poderá ser a incerteza, a porta aberta a todas as
armadilhas do Invisível; uma entrada franca a todas as influências, a todos os
sopros do abismo, a esses sopros de ódio, a essas tempestades do mal que passam
sobre a Humanidade, à semelhança de trombas, e a cobrem de desordem e de
ruínas.
Sim, é bom, é necessário abrir veredas para a comunicação
com o mundo dos Espíritos; mas, antes de tudo, deve evitar-se que essas
veredas sirvam aos nossos inimigos, para nos invadirem. Lembremo-nos
de que há nos mundos invisíveis muitos elementos impuros. Dar-lhes
entrada, seria derramar sobre a Terra males inúmeros; seria entregar aos
Espíritos perversos uma verdadeira multidão de almas fracas e desarmadas.
Para entrar em relação com as Potências superiores, com
os Espíritos esclarecidos, é preciso a vontade e a fé, o desinteresse
absoluto e a elevação dos pensamentos. Fora destas condições, o
experimentador seria o joguete dos Espíritos levianos.
“O que se assemelha se ajusta”, diz o provérbio. Com
efeito, a lei das afinidades rege tanto o mundo das Almas quanto o dos corpos.
Há, pois, tanto sob o ponto de vista teórico quanto do
prático e, ainda, sob o ponto de vista do progresso do Espiritismo,
a necessidade de se desenvolver o senso moral, de nos ligarmos às crenças
fortes e aos princípios superiores, de não abusar das evocações, de não entrar
em comunicação com os Espíritos senão em condições de recolhimento e de paz
moral.
O Espiritismo foi dado ao homem como meio de se
esclarecer, de se melhorar, de adquirir qualidades indispensáveis à sua
evolução. Se se destruíssem nas Almas ou somente se desprezassem a
ideia de Deus e as aspirações elevadas, o Espiritismo poderia tornar-se coisa
perigosa. Eis a razão pela qual não hesitamos em dizer que
entregarmo-nos às práticas espíritas sem purificar os nossos pensamentos, sem
os fortificar pela prece e pela fé, seria executar obra funesta, cuja
responsabilidade poderia cair pesadamente sobre os seus autores.
Chegamos agora a um ponto particularmente delicado da
questão. Atribui-se muitas vezes aos espíritas o
não viverem sempre de acordo com os seus princípios; fazendo-se
observar que entre eles o sensualismo, os apetites materiais e o amor ao lucro
ocupam lugar muitas vezes considerável. Acusam-nos, principalmente, de
divisões intestinas, rivalidades de grupos e de pessoas, que são grandes
obstáculos à organização das forças espíritas e à sua marcha para diante.
Não nos interessa insistir sobre essas proposições; não
queremos pronunciar aqui nenhum juízo desfavorável para quem quer que seja.
Permita-se-nos somente fazer notar que não será reduzindo o Espiritismo ao
papel de simples ciência de observação, que se conseguirá iludir, atenuar essas
fraquezas. Ao contrário, não faremos mais que as agravar. O Espiritismo
exclusivamente experimental já não terá autoridade, nem força moral necessárias
para ligar as Almas. Alguns supõem ver no afastamento da ideia de Deus uma
aproveitável medida ao Espiritismo. Por nossa parte, diremos que é a
insuficiência actual desta noção e, ao mesmo tempo, a insuficiência dos nobres
sentimentos e das altas aspirações, que produzem a falta de coesão e criam as
dificuldades da organização no Espiritismo.
Desde que a ideia de Deus se enfraquece numa Alma, a
noção do eu, isto é, da personalidade, aumenta logo; e aumenta ao ponto de se
tornar tirânica e absorvente. Uma dessas noções não cresce e se
fortifica senão em detrimento da outra. Quem não adora a Deus, adora-se a si
mesmo, disse um pensador.
O que é bom para os meios de experimentação espírita,
é bom para a sociedade inteira. A ideia de Deus – nós o
demonstramos – liga-se estreitamente à ideia de Lei, e assim à de dever e
de sacrifício. A ideia de Deus liga-se a todas as noções
indispensáveis à ordem, à harmonia, à elevação dos seres e das sociedades. Eis
por que, logo que a ideia de Deus se enfraquece, todas essas noções se
debilitam; desaparecem, pouco a pouco, para dar lugar ao personalismo,
à presunção, ao ódio por toda a autoridade, por toda a direcção, por toda a lei
superior. E é assim que, pouco a pouco, grau a grau, se chega a esse estado
social que se traduz por uma divisa célebre, que ouvimos ecoar por toda a
parte: Nem Deus, nem Senhor!
Tem-se de tal modo abusado da ideia de Deus, através dos
séculos; tem-se torturado, imolado, em seu nome,
tantas vítimas inocentes; em nome de Deus tem-se de tal modo regado o
mundo de sangue humano, que o homem moderno se desviou Dele. Tememos
muito que a responsabilidade desse estado de coisas recaia sobre aqueles que
fizeram, do Deus de bondade e de eterna misericórdia, um Deus de vingança e de
terror. Mas, não nos compete estabelecer responsabilidades. O nosso
fim é, antes, procurar um terreno de conciliação e de aproximação, em que todos
os bons Espíritos se possam reunir.
Seja como for, os homens modernos, na grande maioria, já
não querem suportar acima deles nem Deus, nem lei, nem constrangimento; já não
querem compreender que a liberdade, sem a sabedoria e sem a razão, é
impraticável. A liberdade, sem a virtude, leva à licença, e a licença
conduz à corrupção, ao rebaixamento dos caracteres e das consciências, numa
palavra, à anarquia. Será somente quando tivermos atravessado
novas e mais rudes provas que consentiremos em reflectir. Então, a verdade se
fará luz e a grande palavra de Voltaire se
verificará aos nossos olhos: “O ateísmo e o fanatismo são os dois pólos de um
mundo de confusão e de horror!” (A História de Jeni.).
É verdade que muito se fala de altruísmo,
nova denominação do amor da Humanidade, e se pretende que esse sentimento deve
bastar. Mas, como se fará do amor da Humanidade uma coisa vivida,
realizada, quando não chegamos, não direi a amar-nos, mas somente a
suportar-nos uns aos outros? Para se agruparem os sentimentos e as
aspirações, é necessário um ideal poderoso. Pois bem! Esse ideal não o
encontrareis no ser humano, finito, limitado; não o encontrareis nas coisas
deste mundo, todas efémeras, transitórias. Ele não existe senão no Ser
infinito, eterno. Somente Ele é bastante vasto para recolher, absorver todos os
transportes, todas as forças, todas as aspirações da alma humana, para
reconhecê-los e fecundá-los. Esse ideal é Deus!
Mas que é o ideal? É a perfeição. Deus, sendo a perfeição
realizada, é ao mesmo tempo o ideal objectivo, o ideal vivo!
/…
Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte /
Deus e o Universo, VII A ideia de Deus e a experimentação psíquica,
18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: La Madonna de Port
Lligat, detalhe | 1950, Salvador
Dali)