domingo, 13 de julho de 2025

a liberdade é também um princípio estético fundamental ~


uma possibilidade | humana

As grandes fases da evolução humana caracterizam-se pelo predomínio da liberdade. Mas a sequência histórica de cada uma dessas fases assinala o retorno à escravidão. Basta isso para nos mostrar que a liberdade é impossível no destino humano. Os tempos primitivos mostram-nos o homem atrelado ao clã e à horda. O seu instinto gregário é um impositivo da sua fragilidade em face da natureza carregada de ameaças e perigos. No clã, na horda ou na tribo ele se vê obrigado, para garantir a sua sobrevivência e a da prole, a organizar as primeiras estruturas sociais e a estabelecer ligações ou alianças com outros grupos. Os mais fortes dominam cada grupo e se constituem na garantia da liberdade do grupo. Se não houvesse outras exigências além da garantia da sobrevivência, o possível da liberdade humana teria morrido ao nascer. Mas o anseio de transcendência, determinado pelo sentimento inato da subjectividade do Ser, coloca ao lado da força física do Cacique o poder espiritual do Pagé. E na proporção em que o grupo cresce e penetra na historicidade dos factos, que gera a tradição e a mitologia das façanhas e dos espantos, a experiência e a prudência impõem-se através dos conselhos tribais. Equilibra-se o poder da força bruta com o poder da razão, dando nascimento aos Manes e deuses tutelares. A realidade confusa do mundo estrutura-se em dois planos: o das coisas e seres concretos e o do imaginário imprevisível. As forças cósmicas, transformadas em figuras antropomórficas, vigiam do alto do céu e do fundo das matas a aventura do homem na Terra. A multiplicidade de poderes em acção garante a liberdade individual nas condições dialécticas da existência. Está esboçado o panorama dos sonhos de liberdade, em que as aspirações de justiça marcarão o roteiro das civilizações. Bastam essas aspirações, sempre em choque com as pretensões atrevidas da força bruta, para mostrar que a consciência humana se fundamenta no pressuposto da liberdade.

As civilizações agrárias e pastoris, florescendo no seio da Natureza, estabelecem a sintonia dos ritmos telúricos com os ritmos do processo existencial. O homem percebe que a rigidez do seu condicionamento ao chão, e consequentemente ao meio, não o priva da liberdade de pensamento e acção. Descobre que agir sobre o meio é modificá-lo, ao mesmo tempo em que se modifica a si mesmo nas dimensões da temporalidade. Essa descoberta ampara e estimula os seus anseios de liberdade, mostrando-lhe que ele possui a jurisdição de si mesmo. Dessa descoberta nasce o sentimento de responsabilidade que vai marcar ao mesmo tempo os limites do seu poder, do seu dever e das suas possibilidades de ascendência. Nas grandes civilizações orientais, de estrutura massiva, a exigência de ampliação da sua responsabilidade a dimensões abstractas leva-o a recorrer à teocracia, que gera as investiduras divinas dos reis e príncipes, condição humana que lhe parece insuficiente para a direcção do Estado. O gigantismo das civilizações teocráticas obriga-o a abdicar de sua jurisdição individual e entregar-se ao poder supremo dos deuses. Este poder, por sua própria natureza abstracta, projecta-se nas estruturas legais que possam abranger a multiplicidade dos aspectos da ordem instituída. Em consequência, o poder divino acrescido ao homem, por ele mesmo, leva-o a sufocar a liberdade individual. A sociedade regride às condições da estrutura tribal, com o predomínio da força bruta que engaja cada indivíduo à engrenagem gigantesca do Estado, segundo a aguda observação de Denis de Rougemont. O homem não é mais um indivíduo, mas uma arruela ou um pino da estrutura mecânica, regida pelo poder dos deuses através dos seus mandatários divinos. O cacique tribal transformou-se no Rei Ungido que representa a Divindade e o Pagé mágico que se multiplicou nos sacerdotes que confabulam com Deus e controlam as actividades dos súbditos. Nasce das cinzas dos pastores e agricultores ingénuos, há muito soterrados nos campos, o Leviatã de Hobbes. O modelo dos Estados sagrados e totalitários constituiu-se dos três poderes que a Revolução Francesa terá de enfrentar para restabelecer a liberdade sob a inspiração do Contrato Social de Rousseau.

É no antigo Império Persa que vamos assistir à morte das civilizações teocráticas, quando um novo poder, nascido das guerras de conquista, o poder militar, se imporá pela força das armas sobre o poder teocrático. Da divisão dos poderes na Pérsia nascerão na Grécia os Estados antípodas de Esparta e Atenas, o primeiro rigidamente totalitário e militar, esmagando os anseios da liberdade individual, e o segundo, ainda teocrático e escravagista, mas tocado pelo fogo de Prometeu, ao sopro revivificador da Filosofia, libertando o indivíduo das garras do Leviatã e abrindo perspectivas para o desenvolvimento do pensamento livre e, portanto, da cultura. Mas a Esparta projecta-se em Roma e gera o Império dos Césares que determinará um retrocesso histórico. O cidadão romano é o novo tipo de homem, engajado à estrutura estatal, que esmagara a Grécia e se embriagará com o sangue generoso dos seus filósofos. A Roma camponesa não conseguira asfixiar em si mesma, ao transformar-se no Leviatã, os princípios de justiça que a nortearam nos primórdios do seu desenvolvimento. Esses princípios levarão a velha Loba ao afrouxamento da sua estrutura, nos tempos de fastígio, e permitirá o restabelecimento da liberdade individual na mais corrosiva de suas formas, a da libertinagem. Dois factores contraditórios a levarão à queda: a mensagem cristã provinda da civilização agrária e pastoril da Palestina e a voracidade das hordas bárbaras do Norte. A fusão desses factores gerou o milénio medieval, ressurreição dos Estados Teocráticos na Europa devastada. A liberdade individual foi novamente esmagada pelo Império da Igreja, mas o fermento do Evangelho levedou lentamente, ao rogo das guerras e das fogueiras inquisitórias, a massa dos povos bárbaros e acendeu na Renascença, com novo ímpeto e maior ardor, os anseios de liberdade. Graças a isso, as fases de grandeza espiritual de Atenas filosófica e estética, da palestina profética, puderam ressurgir das cinzas para um novo e poderoso surto da evolução humana. O homem renascentista não nasceu engajado a uma estrutura estatal. Descendia, embora por vias tortuosas, dos israelitas discutidores, dos atenienses filosofantes e dos romanos da República, tendo por modelos e guias o racionalismo suicida de Abelardo e os sonhos de liberdade de Descartes Rousseau.

Nem mesmo o contragolpe de Bonaparte conseguiu sufocar as aspirações libertárias da França, que repercutiram no mundo e floresceram na América. A hecatombe nazi-fascista ameaçaria novamente os povos e o desenvolvimento do chamado complexo industrial militar frustraria as esperanças da liberdade do pós-guerra. Mas os triunfos da força revertem na negação de si mesmos, ante o desenvolvimento cultural, firmado nos princípios humanistas dos novos tempos. Porque o dilema que hoje nos desafia na Estrada de Tebas é irreversível: ou deciframos o enigma da esfinge nuclear ou ela nos devorará. Temos de compreender que o avanço científico é uma conquista da civilização e não da barbárie, um repto do homem a si mesmo, para que ele confirme a sua natureza espiritual ou a negue, entregando-se à inconsciência das feras. A violência desencadeada no mundo, dos nossos dias, e impunemente aplicada em nome de princípios superiores, tem o seu limite fatalmente marcado pelo genocídio dos cogumelos atómicos. Nenhum poder é concedido ao homem sem o preço marcado na sua própria consciência. O preço da violência é a morte e, neste caso, a destruição total da Humanidade. A chamada guerra dos botões é uma reticência trágica para todos os que desenvolveram o poder do espírito e com ele penetraram nos segredos da matéria. Há um ensino de Jesus que devemos lembrar nesta hora, porque agora ele se torna claro e objectivo: “Todos os pecados serão perdoados ao homem, menos o pecado contra o espírito.” Temos pecado ignominiosamente contra o espírito através de guerras e matanças, atentados brutais, perseguições e torturas, assassinatos covardes de prisioneiros inermes, toda uma série hedionda de manifestações de bestialidade, enlouquecidos pela arrogância da força bruta. Negamos a liberdade de pensamento, que é o selo da dignidade humana, e com as armas defensivas das nações partimos para a agressão interna, transformando cada nação num sistema fechado de aniquilamento dos seus próprios filhos, na violência desmedida contra os direitos do espírito. Aviltamos o mundo e aviltamo-nos, desde os campos de concentração nazi-fascista até aos campos de trabalho forçado e morte lenta do sistema comunista, até às mortes programadas pelos computadores das chamadas nações democráticas e as agressões genocidas das grandes potências contra pequenas e heróicas nações indefesas. Tocamos agora a barreira do nosso próprio poder liberticida. O desafio é simples: carregamos os botões da destruição total ou retomamos a condição humana. Pagamos o preço fatal do pecado contra o espírito ou o resgataremos de joelhos sobre a infinidade de covas em que sepultamos as vítimas da nossa arrogância, com o desprezo da prepotência e os rituais bárbaros da intimidação colectiva.

Nunca os bárbaros foram tão bárbaros como na pele do homem do Século XX. Nunca o poder das armas esmagou e silenciou populações inermes em todo o mundo, na mais trágica demonstração de covardia de todos os tempos. Mas os dragões minúsculos e invisíveis dos átomos agora esperam os mandatários da violência para triturá-los com os seus dentes nucleares, na mais refinada forma de igualitarismo democrático, de nivelação total de carrascos e vítimas, sob o signo da morte global. Onde os covardes acharão coragem para morrer como homens?

Mas mesmo que cheguemos a essa escatologia trágica, os sonhos de liberdade não serão liquidados. A Terra devastada e envenenada pelas emanações atómicas continuará a girar nos espaços siderais. Os resíduos da infâmia desaparecerão de sua face calcinada. O seu poder de recuperação e renovação não será extinto, porque se alimenta nas fontes cósmicas. Germinarão de novo as plantas, os animais reconstruirão a sua fertilidade e uma nova raça humana a povoará, para que os desígnios de Deus se cumpram após a falência dos homens. Então ela não será mais um planeta andrajoso, coberto de ruínas, um túmulo de indignidade humana, mas um monumento vivo e radiante à dignidade dos que, numa raça de víboras, souberam resistir até ao último instante. Talvez nesse tempo os monstros que devoraram o planeta no delírio da arrogância possam despertar, em algum lugar do Infinito, para a consciência de sua brutalidade. Da situação miserável em que caíram, com as suas mandíbulas de fera, apropriadas à condição que preferiram, mastigando ossos e destroços, talvez consigam vislumbrar – num céu escuro e opaco – as tímidas cintilações das estrelas longínquas, apavoradas com a visão das suas monstruosidades. Só assim poderão renascer para novas existências, como os "luzbéis" arrependidos de um mito bíblico jamais escrito.

Cada aspecto de um tema requer linguagem apropriada para o seu desenvolvimento. Essa linguagem não é estudada, não é preparada de antemão, pois a sua natureza é genésica; ela brota das entranhas do próprio tema pela necessidade vital de expressão adequada. Não traçamos esse panorama assombroso com os recursos da imaginação. Ele não é uma criação fantasiosa, é um dado real que surge da situação desesperante do mundo. O impacto de sua percepção aturde primeiro o observador que teve a temeridade de encará-lo. Depois esse impacto se transmite ao público para despertá-lo de uma apatia forçada, reerguendo-lhe as energias anestesiadas pelo medo e restabelecendo-lhe a capacidade de pensar e analisar. A morte da liberdade é a morte do homem. Porque o homem nasce da liberdade e é liberdade. A sua carne e o seu espírito são a vitória da liberdade imolada. Nas metamorfoses genésicas ele passa de um reino da natureza para outro. Desenvolve o seu poder estruturador na pedra e nela permanece em estado cataléptico até ao momento de projectar-se nas estruturações vegetais, em que desenvolve a sua sensibilidade e se transforma na doação de que falava Hegel, abrindo-se em ramagens, flores e frutos. Pouco a pouco aglutina as primeiras formações animais, como nos mostram as pesquisas sobre a evolução dos reinos naturais. Desenvolve então a motilidade – nada, voa, anda, desligado da matriz terrena – e as potencialidades da inteligência. Como animal ele está ainda envolto numa pele densa e forte, coberta de pelos ou escamas, de invólucros protectores para a conquista das suas experiências vitais. Mas no homem a carne se refina e se apura, a pele se torna fina e flexível, a sensibilidade se aguça, a mente se abre na delicada estrutura cerebral como uma flor que desabrocha, o espírito imolado recobra a sua natureza, que é a liberdade.

Todo esse imenso e complexo processo criador atinge a sua frutificação nas conquistas da inteligência humana, semelhante a Deus, dotada de poder criador. E é essa obra-prima que ele mesmo avilta e esmaga quando se entrega aos resíduos das fases anteriores da evolução criadora, segundo BergsonQuando as mãos animalescas da insensatez reduzem tudo isso a um cadáver sangrento e sem vida, pela fria decisão de um tribunal dogmático, arbitrariamente em nome de Deus, da Pátria ou da Sociedade, o homem peca contra o espírito, o que vale dizer: contra a sua própria natureza de Ser espiritual. É verdade que não destruiu o homem nem a vida, mas aniquilou um trabalho milenar dos poderes criadores do espírito. Por outro lado, atentou contra a dignidade humana e o direito à vida, ao reajuste dos seus possíveis desajustamentos sociais e culturais, ao progresso que ainda poderia realizar no desenvolvimento das suas potencialidades espirituais. Além disso, cada acto dessa natureza é um incentivo à violência, à brutalidade, ao crime, aos desrespeitos aviltantes ao supremo direito do homem, o direito à liberdade.

Não há sofismas, por mais aparentemente brilhantes, por mais aprovados e institucionalizados nas falíveis convenções humanas, que possam justificar esse acto contrário aos desígnios de Deus inscritos na consciência humana.

A tudo isso devemos acrescentar as dolorosas consequências do crime na vida dos familiares do condenado. Quantas dores e lágrimas, que de suplícios e humilhações, desesperos e angústias esmagarão criaturas inocentes que jamais aceitarão essa pretensa justiça produzida nas retortas escusas das convenções humanas, manchadas por interesses inferiores, por ambições vorazes e pretensões orgulhosas de infalibilidade do falível julgamento humano. As sociedades e civilizações que se defendem sacrificando as suas próprias vítimas, os injustiçados pelos desníveis sócio-económicos de estruturas forjadas pelas leis da selva, são duplamente criminosas. A queda do homem na sociedade, que Rousseau definiu apoiado nas suas próprias experiências de vítima dando forma social ao mito bíblico da queda, é uma realidade flagrante em todo o mundo. Só há um meio de redenção das sociedades criminosas: o abandono dos métodos de coação violenta e a adopção de meios humanos de recuperação e resgate dos indivíduos transviados.

O princípio ético de preservação da liberdade exige a reformulação social e cultural do mundo. Por isso, René Hubert recomenda uma pedagogia estética que corresponda ao sentido profundo do acto de amor do processo educacional. Só pelo desenvolvimento da consciência estética, síntese consciencial que liberta o homem da arrogância e da brutalidade, aprimorando-lhe a sensibilidade estética – como Kant já reconhecera – poderemos estabelecer na Terra uma civilização de justiça e harmonia, condizente com as aspirações mais profundas e generalizadas da espécie humana. A liberdade é também um princípio estético fundamental, como Schiller demonstrou nos seus estudos de estética. Sem liberdade não há criação artística válida nem ética verdadeira.
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José Herculano Pires, Os Sonhos de Liberdade, – Uma Possibilidade Humana, 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites

quinta-feira, 19 de junho de 2025

o sentido da vida ~


síntese final (*)

Podemos, já agora, chegar ao fim do nosso trabalho, tentando elaborar uma síntese final do Espiritismo, nos seguintes princípios gerais:

1) Deus é a inteligência suprema do Universo, causa primária de todas as coisas e, o homem é a individualização do princípio inteligente universal, reflectindo a imagem do Criador no seio da criação;

2) O Universo é um processo geral de evolução, em que todas as coisas e todos os seres caminham do menor para o maior, do mal para o bem, das trevas para a luz, do caos para a ordem, do inconsciente para o consciente, através de leis imutáveis, que a tudo presidem e relacionam, tanto no plano material quanto no moral e espiritual;

3) O homem é a resultante de longa elaboração do princípio inteligente, no seio da matéria através das formas orgânicas, mas ainda não chegou ao seu fim, continuando essa elaboração a processar-se no tempo e no espaço, em direcção a um ideal de perfeição, imanente no próprio Universo;

4) Há seres inferiores e superiores ao homem, pertencentes à escala humana e, dos quais podemos ver alguns exemplos na própria Terra, entre as raças primitivas e os indivíduos geniais, destacando-se entre eles a figura ímpar do Cristo, como modelo perfeito da mais alta expressão humana conhecida no planeta;

5) O homem, graças à sua natureza espiritual, pode aceder ao conhecimento do chamado Universo supranormal ou hiperfísico, entrando em relação directa ou indirecta com os seres imateriais, inclusive os próprios homens libertados do organismo físico pelo processo comum da morte.

Rumo às Estrelas

Assim, como afirma Dennis Bradley, não estamos parados na Terra, fixados, como dolorosos bonecos movidos por cordões invisíveis, num pequenino ponto do Universo, a face material do planeta em que decorrem as nossas dores e angústias passageiras. Não somos galés da fatalidade, nem simples fogos-de-artifício que se acendem e apagam, ininterruptamente, no breve intervalo entre o berço e o túmulo. Não somos também o absurdo joguete de uma realidade universal “nominalista”, que, através das nossas individualidades múltiplas e sem sentido, procuraria a consciência de si mesma. Além da concepção estratificada dos dogmas de fé e além da suposição incoerentemente transcendental da ciência materialista, o Espiritismo leva-nos à convicção racional de que somos espíritos em evolução através do tempo e do espaço, partículas de um todo que é a Humanidade universal e, caminhamos da Terra em direcção às estrelas.

“Na casa de meu pai há muitas moradas”, afirmou o Cristo aos seus discípulos. No Universo infinito há inumeráveis mundos habitados. E o destino do homem não é o simples mergulho de uma gota d’água no oceano, mas o encontro consciente de uma realidade superior, de que nos dão notícia os que, como o Buda e o Cristo, atingiram os cumes da consciência liberta da prisão da forma.

Vinde a mim, todos os que andais em trabalho e vos achais carregados e, eu vos aliviarei, repete o Espiritismo aos homens de hoje. Porque os seus ensinamentos dão segurança ao espírito atribulado, consolam os aflitos e desesperados e, abrem à Humanidade sem rumo da era científica, ameaçada de auto-destruição, as portas largas e luminosas de uma compreensão mais humana da vida e do mundo.

Que o contradigam os negativistas, os que não crêem nem podem crer nessa nova e mais ampla visão universal. Mas, quando quiserem acusar-nos de visionários, de sonhadores inconsequentes, de amantes do maravilhoso, que verifiquem primeiro as suas próprias convicções, as bases frágeis em que assentam, já não dizemos os seus sonhos, mas os seus pesadelos. E, quando quiserem negar a evidência dos factos, em que baseamos solidamente a nossa crença, que realizem pesquisas e investigações mais profundas, mais sistemáticas, mais constantes, mais sérias, mais científicas do que as realizadas pelos que nos deram a incomparável bagagem da bibliografia metapsíquica e espírita. Não nos podem contentar, já agora, as simples palavras e as suposições dos que se dizem entendidos. Mais alto do que os argumentos falam os factos. E os factos aí estão, na frente de todos, como um desafio permanente.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida (*) / Síntese Final; Rumo às Estrelas, 18º fragmento e o último desta obra.
(imagem de contextualização: Cristo na casa de Marta e Maria (1654-1655), óleo sobre tela de Johannes Vermeer)

terça-feira, 13 de maio de 2025

o grande enigma ~


a ideia de Deus | e a experimentação psíquica ~

Até aqui, no nosso estudo da questão de Deus, mantivemo-nos no terreno dos princípios. Nesse domínio, a ideia de Deus nos aparece qual chave da abóbada da doutrina espiritualista. Vejamos agora se não tem a mesma importância no domínio dos factos, na ordem experimental. (i)

À primeira vista, pode parecer estranho ouvir dizer que a ideia de Deus representa um papel importante no estudo experimental, na observação dos factos espíritas.

Notemos primeiramente que há tendência, por parte de certos grupos, para dar ao Espiritismo carácter sobremaneira experimental, para fazer-se exclusivamente o estudo dos fenómenos, desprezando-se o que tem cunho filosófico, tendência para rejeitar tudo o que possa recordar, por pouco que seja, as doutrinas do passado, para, em suma, limitar tudo ao terreno científico. Nesses meios, procura afastar-se a crença e a afirmação de Deus, por supérfluas, ou, pelo menos, por serem de demonstração impossível. Pensa-se, assim, atrair os homens de ciência, os positivistas, os livres-pensadores, todos aqueles que sentem uma espécie de aversão pelo sentimento religioso, por tudo o que tem certa aparência mística ou doutrinal.

Por outro lado, desejar-se-ia fazer do Espiritismo um ensino filosófico e moral, baseado nos factos, ensino susceptível de substituir as velhas doutrinas, os sistemas caducos, e satisfazer o grande número de Almas que buscam, antes de tudo, consolação para as suas dores; uma filosofia simples, popular, que lhes dê tréguas às tristezas da vida.

De um lado e de outro, há multidões a contentar; muito mais, até, de um lado que do outro, porque a multidão daqueles que lutam e sofrem excede em muito a dos homens de estudo.

A sustentar essas duas teses vemos, de uma parte e de outra, homens sinceros e convencidos, a cujas qualidades nos congratulamos de render homenagem.

Por quem optar? Em que sentido convirá orientar-se o Espiritismo para assegurar a sua evolução?

O resultado das nossas pesquisas e das nossas observações leva-nos a reconhecer que a grandeza do Espiritismo, a influência que adquire sobre as massas, provém, principalmente, da sua doutrina; os factos são os fundamentos em que o edifício se apoia. Certamente! As fundações representam papel essencial em todo o edifício, mas não é nas fundações, isto é, nas estruturas subterrâneas, que o pensamento e a consciência podem encontrar abrigo.

(i) Vide as minhas obras precedentes: Cristianismo e Espiritismo, No Invisível e, ainda, Espíritos e Médiuns – tratado de Espiritismo experimental.

Aos nossos olhos, a missão real do Espiritismo não é somente esclarecer as inteligências por um conhecimento mais preciso e mais completo das leis físicas do mundo; tal consiste, primacialmente, em desenvolver a vida moral nos homens, a vida moral que o materialismo e o sensualismo têm amesquinhado tanto. Levantar os caracteres e fortificar as consciências, tal é o papel do Espiritismo. Sob este ponto de vista, pode ser remédio eficaz para os males que assediam a sociedade contemporânea, remédio a esse acréscimo inaudito do egoísmo e das paixões, que nos arrastam ao abismo. Julgamos dever exprimir aqui a nossa inteira convicção: não é fazendo do Espiritismo somente uma ciência positiva, experimental; não é eliminando nele o que há de elevado, o que atrai o pensamento acima dos horizontes estreitos, isto é, a ideia de Deus, o uso da prece, que se facilitará a sua missão; ao contrário, concorrer-se-ia para torná-lo estéril, sem acção sobre o progresso das massas.

Certamente! Ninguém mais do que nós admira as conquistas da Ciência; sempre tivemos prazer de render justiça aos esforços corajosos dos sábios que fizeram recuar a cada dia os limites do desconhecido.

Mas a Ciência não é tudo. Sem dúvida ela tem contribuído para esclarecer a Humanidade; entretanto, tem-se mostrado sempre impotente para torná-la mais feliz e melhor.

A grandeza do espírito humano não consiste somente no conhecimento; está também no ideal elevado. Não foi a Ciência, e sim o sentimento, a fé e o entusiasmo que fizeram Jeanne d'Arc e todas as grandes epopeias da História.

Os enviados do Alto, os grandes predestinados, os videntes e os profetas não escolheram por móbil a ciência: escolheram a crença.

Eles vieram para mostrar o caminho que conduz a Deus.

Que é feito da ciência do passado? As vagas do esquecimento a submergiram, tal qual submergirão a ciência dos nossos dias. Quais serão os métodos e as teorias contemporâneas em vinte séculos? Em compensação, os nomes dos grandes missionários têm sobrevivido através dos tempos. O que sobrevive a tudo, no desastre das civilizações, é o que eleva a alma humana acima de si mesma, para um fim sublime, para Deus!

Há outra coisa mais. Mesmo limitando-nos ao terreno do estudo experimental, há uma consideração capital em que devemos inspirar-nos. É a natureza das relações que existem entre os homens e o mundo dos Espíritos; é o estudo das condições a preencher para tirar dessas relações os melhores efeitos.

Logo que chegamos aos ditos fenómenos, ficamos impressionados pela composição desse mundo invisível que nos cerca, pelo carácter das multidões de Espíritos que nos rodeiam e que procuram sem cessar pôr-se em relação com os homens. Em torno do nosso atrasado planeta flutua uma vida poderosa, invisível, onde dominam os Espíritos levianos e zombeteiros, com os quais se misturam Espíritos perversos e malfazejos. Aí há muitos apaixonados, cheios de vícios, criminosos. Deixaram a Terra com a alma repleta de ódio, com o pensamento saturado de vingança: esperam na sombra o momento propício para satisfazer os seus rancores, as suas fúrias, à custa dos experimentadores imprudentes e imprevidentes que, sem precaução, sem reserva, abrem de par em par as vias que fazem comunicar o nosso mundo com o dos Espíritos.

É desse meio que nos vêm as mistificações sem-número, os embustes audaciosos, as manobras bem conhecidas dos Espíritos experimentados, manobras pérfidas, que, em certos casos, conduzem os médiuns à obsessão, à possessão, à perda das suas mais belas faculdades, a tal ponto que certos críticos, fazendo a enumeração das vítimas desses factos, contando todos os abusos que decorrem de uma prática imprevista e frívola do Espiritismo, têm perguntado se não seria ele uma fonte de perigos, de misérias, uma nova causa de decadência para a Humanidade. (ii)

Felizmente, ao lado do mal está o remédio. Para nos livrar das influências más existe um recurso supremo. Possuímos um meio poderoso para afastar os Espíritos do abismo e para fazer do Espiritismo um elemento de regeneração, um sustentáculo, um confortante. Esse recurso, esse preservativo é a prece, é o pensamento dirigido para Deus! O pensamento de Deus é qual uma luz que dissipa a sombra e afasta os Espíritos das trevas; é uma arma que dispersa os Espíritos malfazejos e nos preserva dos seus embustes. A prece, quando é ardente, improvisada – e não recitação monótona –, tem um poder dinâmico e magnético considerável; (iii) ela atrai os Espíritos elevados e assegura-nos a sua protecção. Graças a eles podemos sempre comunicar com aqueles que nos amaram na Terra, aqueles que foram a carne da nossa carne, o sangue do nosso sangue e que, da sombra do Espaço, nos estendem os braços.

(ii) Vide J. Maxwell, Fenómenos Psíquicos, páginas 232 a 235; Léon Denis, No Invisível, cap. XXII. Vide também Relatório de Congresso Espírita de Bruxelas, 1910, págs. 112, 124.

(iii) Obtemos a prova objectiva desse facto por meio das Chapas fotográficas. No estado de prece, pelo contacto dos dedos, conseguimos impregnar as chapas de radiações muito mais activas, de eflúvios mais intensos do que no estado normal.

Temos verificado, muitas vezes, na nossa carreira de experimentadores: quando, numa reunião espírita, todos os pensamentos e vontades se unem num transporte poderoso, numa convicção profunda; quando sobem para Deus pela prece, jamais falha o socorro. Todas essas vontades reunidas constituem um feixe de forças, a arma segura contra o mal. Ao apelo que se eleva para o céu, há sempre algum Espírito de escol que responde. Esse Espírito protector, a convite do Alto, vem dirigir os nossos trabalhos, afastar dali os Espíritos inferiores, deixando somente intervir aqueles cujas manifestações são úteis para eles próprios ou para os encarnados.

Há aí um princípio infalível. Com o pensamento purificado e a elevação para Deus, o Espiritismo experimental pode ser uma luz, uma força moral, uma fonte de consolações. Sem esses requisitos ele poderá ser a incerteza, a porta aberta a todas as armadilhas do Invisível; uma entrada franca a todas as influências, a todos os sopros do abismo, a esses sopros de ódio, a essas tempestades do mal que passam sobre a Humanidade, à semelhança de trombas, e a cobrem de desordem e de ruínas.

Sim, é bom, é necessário abrir veredas para a comunicação com o mundo dos Espíritos; mas, antes de tudo, deve evitar-se que essas veredas sirvam aos nossos inimigos, para nos invadirem. Lembremo-nos de que há nos mundos invisíveis muitos elementos impuros. Dar-lhes entrada, seria derramar sobre a Terra males inúmeros; seria entregar aos Espíritos perversos uma verdadeira multidão de almas fracas e desarmadas.

Para entrar em relação com as Potências superiores, com os Espíritos esclarecidos, é preciso a vontade e a fé, o desinteresse absoluto e a elevação dos pensamentos. Fora destas condições, o experimentador seria o joguete dos Espíritos levianos.

“O que se assemelha se ajusta”, diz o provérbio. Com efeito, a lei das afinidades rege tanto o mundo das Almas quanto o dos corpos.

Há, pois, tanto sob o ponto de vista teórico quanto do prático e, ainda, sob o ponto de vista do progresso do Espiritismo, a necessidade de se desenvolver o senso moral, de nos ligarmos às crenças fortes e aos princípios superiores, de não abusar das evocações, de não entrar em comunicação com os Espíritos senão em condições de recolhimento e de paz moral.

Espiritismo foi dado ao homem como meio de se esclarecer, de se melhorar, de adquirir qualidades indispensáveis à sua evolução. Se se destruíssem nas Almas ou somente se desprezassem a ideia de Deus e as aspirações elevadas, o Espiritismo poderia tornar-se coisa perigosa. Eis a razão pela qual não hesitamos em dizer que entregarmo-nos às práticas espíritas sem purificar os nossos pensamentos, sem os fortificar pela prece e pela fé, seria executar obra funesta, cuja responsabilidade poderia cair pesadamente sobre os seus autores.

Chegamos agora a um ponto particularmente delicado da questão. Atribui-se muitas vezes aos espíritas o não viverem sempre de acordo com os seus princípios; fazendo-se observar que entre eles o sensualismo, os apetites materiais e o amor ao lucro ocupam lugar muitas vezes considerável. Acusam-nos, principalmente, de divisões intestinas, rivalidades de grupos e de pessoas, que são grandes obstáculos à organização das forças espíritas e à sua marcha para diante.

Não nos interessa insistir sobre essas proposições; não queremos pronunciar aqui nenhum juízo desfavorável para quem quer que seja. Permita-se-nos somente fazer notar que não será reduzindo o Espiritismo ao papel de simples ciência de observação, que se conseguirá iludir, atenuar essas fraquezas. Ao contrário, não faremos mais que as agravar. O Espiritismo exclusivamente experimental já não terá autoridade, nem força moral necessárias para ligar as Almas. Alguns supõem ver no afastamento da ideia de Deus uma aproveitável medida ao Espiritismo. Por nossa parte, diremos que é a insuficiência actual desta noção e, ao mesmo tempo, a insuficiência dos nobres sentimentos e das altas aspirações, que produzem a falta de coesão e criam as dificuldades da organização no Espiritismo.

Desde que a ideia de Deus se enfraquece numa Alma, a noção do eu, isto é, da personalidade, aumenta logo; e aumenta ao ponto de se tornar tirânica e absorvente. Uma dessas noções não cresce e se fortifica senão em detrimento da outra. Quem não adora a Deus, adora-se a si mesmo, disse um pensador.

O que é bom para os meios de experimentação espírita, é bom para a sociedade inteira. A ideia de Deus – nós o demonstramos – liga-se estreitamente à ideia de Lei, e assim à de dever e de sacrifício. A ideia de Deus liga-se a todas as noções indispensáveis à ordem, à harmonia, à elevação dos seres e das sociedades. Eis por que, logo que a ideia de Deus se enfraquece, todas essas noções se debilitam; desaparecem, pouco a pouco, para dar lugar ao personalismo, à presunção, ao ódio por toda a autoridade, por toda a direcção, por toda a lei superior. E é assim que, pouco a pouco, grau a grau, se chega a esse estado social que se traduz por uma divisa célebre, que ouvimos ecoar por toda a parte: Nem Deus, nem Senhor!

Tem-se de tal modo abusado da ideia de Deus, através dos séculos; tem-se torturado, imolado, em seu nome, tantas vítimas inocentes; em nome de Deus tem-se de tal modo regado o mundo de sangue humano, que o homem moderno se desviou Dele. Tememos muito que a responsabilidade desse estado de coisas recaia sobre aqueles que fizeram, do Deus de bondade e de eterna misericórdia, um Deus de vingança e de terror. Mas, não nos compete estabelecer responsabilidades. O nosso fim é, antes, procurar um terreno de conciliação e de aproximação, em que todos os bons Espíritos se possam reunir.

Seja como for, os homens modernos, na grande maioria, já não querem suportar acima deles nem Deus, nem lei, nem constrangimento; já não querem compreender que a liberdade, sem a sabedoria e sem a razão, é impraticável. A liberdade, sem a virtude, leva à licença, e a licença conduz à corrupção, ao rebaixamento dos caracteres e das consciências, numa palavra, à anarquia. Será somente quando tivermos atravessado novas e mais rudes provas que consentiremos em reflectir. Então, a verdade se fará luz e a grande palavra de Voltaire se verificará aos nossos olhos: “O ateísmo e o fanatismo são os dois pólos de um mundo de confusão e de horror!” (A História de Jeni.).

É verdade que muito se fala de altruísmo, nova denominação do amor da Humanidade, e se pretende que esse sentimento deve bastar. Mas, como se fará do amor da Humanidade uma coisa vivida, realizada, quando não chegamos, não direi a amar-nos, mas somente a suportar-nos uns aos outros? Para se agruparem os sentimentos e as aspirações, é necessário um ideal poderoso. Pois bem! Esse ideal não o encontrareis no ser humano, finito, limitado; não o encontrareis nas coisas deste mundo, todas efémeras, transitórias. Ele não existe senão no Ser infinito, eterno. Somente Ele é bastante vasto para recolher, absorver todos os transportes, todas as forças, todas as aspirações da alma humana, para reconhecê-los e fecundá-los. Esse ideal é Deus!

Mas que é o ideal? É a perfeição. Deus, sendo a perfeição realizada, é ao mesmo tempo o ideal objectivo, o ideal vivo!
/…


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, VII A ideia de Deus e a experimentação psíquica, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: La Madonna de Port Lligat, detalhe | 1950, Salvador Dali)

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Saberes e o tempo ~


Estudo sobre a identidade dos Espíritos ~

(in Discussão em torno dos fenómenos de materialização)

Na sábia e conscienciosa obra que Alexandre Aksakof consagrou à refutação das teorias do filósofo Hartmann, depara-se-nos a seguinte conclusão:

“Tendo adquirido por laboriosa senda a convicção de que o princípio individual sobrevive à dissolução do corpo e pode, sob certas condições, manifestar-se de novo por intermédio de um corpo humano, acessível a influências desse género, a prova absoluta da identidade do indivíduo resulta impossível.”

Rendemos sincera admiração e profundo respeito ao sábio russo que revelou, na sua obra, espírito tão sagaz, quanto penetrante. O seu livro é uma das mais preciosas colectâneas de fenómenos bem estudados, onde os espíritas encontram armas decisivas para sustentar a luta contra os seus adversários. Mas, não podemos adoptar todas as suas ideias, por se nos afigurar que o seu propósito, de se manter estritamente nos limites que lhe eram impostos na sua discussão com Hartmann, o fez restringir demasiadamente o carácter de certeza que ressalta da experimentação espírita. Não haverá contradição entre a primeira e a segunda parte da citação acima? Como se pode adquirir “a convicção de que o princípio individual sobrevive”, se não se pode estabelecer a identidade dos seres que se manifestam? Concluindo-se que, colectivamente, todos os humanos sobrevivem, será impossível ter-se particular certeza, em relação a um deles? Examinemos os argumentos em que se baseou o Sr. Aksakof para chegar àquela desoladora conclusão.

Segundo o autor, (i) a presença de uma forma materializada, comprovada pela fotografia, ou nas sessões de materialização, não bastaria para lhe atestar a identidade, como, aliás, também não bastaria o conteúdo intelectual das comunicações. Eis porquê:

“Não me resta mais do que formular o último desideratum, relativamente à prova de identidade fornecida pela materialização, e é que essa prova – do mesmo modo que o exigimos no tocante às comunicações intelectuais e à fotografia transcendental – seja dada na ausência de qualquer pessoa que possa reconhecer a figura materializada. Creio que se poderiam encontrar muitos exemplos desse género nos anais das materializações. Mas, a questão é esta: dado o facto, poderia ele servir de prova absoluta? Evidentemente, não, porque, admitindo que um Espírito se pode manifestar dessa maneira, possível lhe é, e o ipso, prevalecer-se dos atributos de personalidade doutro Espírito e personificá-lo na ausência de quem quer que seja capaz de reconhecê-lo. Tal mascarada seria completamente insípida, visto que absolutamente nenhuma razão de ser teria. Do ponto de vista, porém, da crítica, não poderia ser ilógica a sua possibilidade.”

Parece que Alexandre Aksakof admite como demonstrado que um Espírito pode mostrar-se sob qualquer forma, que lhe apeteça tomar, a fim de representar a sua própria personagem. Ora, isso é o que justamente seria necessário firmar, por meio de factos numerosos e precisos. Se consultarmos os milhões de casos em que o Espírito de um vivo se tornou visível, verificaremos que o duplo é sempre a reprodução rigorosamente fiel do corpo, atingindo essa identidade todas as partes do seu organismo, como o prova irrefutavelmente a modelagem do pé fluídico de William Eglinton, do qual falamos no capítulo anterior. (ii)

– Quando o duplo inteiro de Eglinton se materializa, assemelha-se a tal ponto ao seu corpo físico, que é necessário ver-se o médium adormecido na sua cadeira, para se ficar convencido de que ele não está no lugar onde se encontra a aparição. – Quando a Sra. Fay se mostra entre as duas metades da cortina, com as suas vestes e o seu rosto, perfeitamente semelhantes aos do seu corpo físico, com os mesmos traços fisionómicos, cor dos olhos, do cabelo, da pele, torna-se necessário que a corrente eléctrica lhe atravesse o organismo carnal, para se ter a certeza de não ser este o que se está a ver.

“Vi – diz o Sr. Brackett, (iii) experimentador muito céptico e muito prudente –, centenas de formas materializadas e, em muitos casos, o duplo fluídico do médium assemelhando-se-lhe tanto, que eu teria jurado ser o próprio médiumse não visse o mesmo duplo desmaterializar-se diante de mim e não houvesse, logo após, comprovado que o médium se conservava adormecido.”

Não acreditamos que possa alguém citar um único exemplo de haver um duplo de vivo mudado o seu tipo, exclusivamente por vontade própria. Ao contrário, da observação das aparições espontâneas, tanto quanto das obtidas pela experiência, resulta que, se nenhuma influência exterior for exercida, o Espírito se mostra sempre sob a forma corpórea que lhe caracteriza a personalidade. Dar-se-à tenha ele, depois da morte, um poder que lhe faltava em vida? Poderia o Espírito dar ao seu corpo espiritual forma idêntica à de outro Espírito, de maneira a ser o sósia deste? É o que vamos examinar.

À primeira vista, parece que o fenómeno da transfiguração confirma a opinião de que o Espírito pode mudar de forma. Mas, será mesmo assim? Na realidade, o paciente é inteiramente passivo. Não é, pois, consciente ou voluntariamente que modifica o seu próprio aspecto. Ele sofre uma influência estranha, que substitui pela sua aparência a do médium, pois que, geralmente, este não conhece o Espírito que sobre ele actua. Não se pode, portanto, pretender que o Espírito de um médium seja capaz – e o ipso – de se transformar. Em nenhum caso foi isso ainda demonstrado e a substituição de forma bem se pode atribuir a outro Espírito, visto que, quando o desdobramento se produz de modo espontâneo, a forma do Espírito é sempre a do corpo.

Estudemos agora os casos em que a aparição é manifestamente diferente do médium e do seu duplo.

Porventura já se comprovou que um Espírito, tendo-se mostrado sob uma forma bem definida, tenha mudado de aspecto diante dos espectadores, assumindo outra inteiramente diversa da primeira? Jamais semelhante fenómeno se produziu. A única observação, do nosso conhecimento, que tem alguma relação com este assunto, é a que relata o Sr. Donald Mac Nab, que conseguiu fotografar e tocar, com os seus seis amigos, a materialização de uma rapariga que reproduziu absolutamente um velho desenho datando de vários séculos, desenho que muito impressionara o médiumNada, porém, prova, nesse exemplo, que essa aparição não seja a da moça representada no desenho, tendo bastado perfeitamente, para atraí-la, o pensamento simpático do médium. Não está, pois, de modo algum estabelecido que seja essa uma transformação do duplo do médium, nem tampouco uma criação fluídica objectivada pelo seu cérebro. O que algumas vezes se tem verificado são modificações na forma, na coloração do semblante, na expressão da fisionomia da aparição. Pode variar muito o grau da sua materialidade e, sendo esta fraca, não acentuar bastante os detalhes da semelhança; mas, o tipo geral não muda. As modificações são as de um mesmo modelo e não chegam para representar outro ser.

Tomemos o exemplo de Katie King. Indubitavelmente, ela não era um desdobramento de Florence Cook, porquanto esta, acordada, conversa durante alguns minutos com Katie e o Sr. Crookes, que as vê a ambas. A independência intelectual do Espírito materializado revela-se aí com toda a clareza, nada tendo de duvidoso com relação ao corpo físico, visto que o Sr. Crookes assinalou as diferenças de forma, de tez, de cabeleira e, o que é mais importante, dos caracteres fisiológicos entre as duas.

“Uma noite, contei as pulsações de Katie. O seu pulso batia regularmente 75 batidas, ao passo que o da Srta. Cook, poucos instantes depois, chegava às 90. Colando o ouvido no peito de Katie, ouvi-lhe o coração bater dentro e os seus batimentos ainda eram mais regulares do que os do coração da Srta. Cook, quando, após a sessão, ela me permitiu a mesma experiência. Auscultados, os pulmões de Katie se revelaram mais sãos do que os da sua médium que, na ocasião em que fiz a minha experiência, estava em tratamento médico devido a um forte resfriado.”

Evidentemente, segundo o que se acaba de ler, Katie não era a figura nem do corpo, nem do duplo do médium. Tinha uma individualidade distinta, se bem que nem sempre aparecesse completa. Numa sessão com Varley, engenheiro-chefe das linhas telegráficas da Inglaterra, estando a médium fiscalizada electricamente, Katie só se mostrou materializada a meio, até à cintura apenas, faltando ou conservando-se invisível o resto do corpo.

“Apertei a mão àquele ser estranho – diz o célebre engenheiro – e, ao terminar a sessão, mandou Katie que eu fosse despertar a médium. Encontrei a Srta. Cook em transe, isto é, adormecida, como eu a deixara, e intactos todos os fios de platina. Despertei-a.”

Segundo Epes Sargent, nos primeiros tempos, apenas se via o rosto; não havia cabelos, nem coisa alguma acima da fronte. Parecia uma máscara animada. Após cinco ou seis meses de sessões, apareceu em forma completa. Esses seres então se condensam mais facilmente e mudam de cabelos, de vestuário, de cor da tez, à vontade. Mas, note-se bem que é sempre o mesmo tipo, nunca uma outra forma.

Neste ponto, torna-se necessário precisemos bastante o que entendemos pelo termo tipo. Quando se comparam fotografias de um indivíduo, tiradas em diversas épocas de sua vida, reconhecem-se grandes diferenças entre as que ele tirou na idade de 15 anos e as que o representam aos 30 anos. Tudo se modificou profundamente. Os cabelos embranqueceram ou rarearam, os traços se acentuaram ou ampliaram; notam-se rugas onde antes só se via plena juvenilidade. Entretanto, com um pouco de atenção, se chega a perceber que essas divergências não são fundamentais, que se encerram dentro de limites definidos, dentro do que constitui, durante a vida toda, a característica da individualidade: o tipo. Podemos perfeitamente conceber que o perispírito seja capaz de reproduzir uma dessas formas, pois que evolveu através delas neste mundo. Essa faculdade de fazer que uma imagem reviva de si mesma assemelha-se a um avivamento de lembranças, o qual evoca uma época passada e a torna presente para a memória. Nada se perde no envoltório fluídico, as formas do ser se fixam nele e podem reaparecer sob o influxo da vontade. Isso se demonstra por meio de alguns exemplos.

Voltemos ao testemunho do Sr. Brackett, citado pelo Sr. Erny.

“Numa sessão de materialização, vi um rapaz de grande estatura dizer-se irmão da senhora que me acompanhava e que lhe replicou: “Como poderia eu reconhecê-lo, se não o vejo desde criança?” Para logo, a figura diminuir de forma pouco a pouco, até chegar à do menino que a senhora conhecera. Observei outros casos do mesmo género, acrescenta Brackett.”

Aqui está outro testemunho seu:

“Uma das formas que aparecem em casa da Sra. F... disse ser Berta, minha sobrinha por afinidade. Como eu me mostrasse duvidoso, a forma desapareceu e voltou com a voz e a feição de uma criança de quatro anos, idade em que morrera. Não era um desdobramento, porquanto o médium tem sotaque alemão e Berta não. Quanto ao ser uma figurante paga pela Sra. F..., desafio seja quem for que se desmaterialize diante de mim, como Berta se desmaterializou.”

Façamos aqui uma observação importante. Os dois Espíritos que se reportam à sua meninice têm uma estatura e uma aparência diversas das que se lhes conheceram neste mundo. Pode admitir-se sejam estatura e aparência de uma vida anterior à precedente, o que nos conduz à lei geral, ensinada por Allan Kardecde que um Espírito suficientemente adiantado pode assumir, à sua vontade, qualquer dos tipos pelos quais tenha evolvido no curso de suas existências sucessivas. Com essa questão, porém, não temos que nos ocupar, do ponto de vista da identidade, porquanto apenas nos interessa a última forma, a que conhecemos.

Não se deverá concluir do que fica dito que um Espírito farsante não possa disfarçar-se, de maneira a simular uma personagem histórica, mais ou menos fielmente. Claro que a um farsante será possível sempre criar o redingote cinzento e o chapéu de Napoleão, bem como uma auréola e um par de asas, a fim de que o tomem por um anjo. Se, porventura, ele tiver uma vaga parecença com Bonaparte ou com as tradicionais imagens de São José, poderá enganar os inexperientes, os ingénuos, os desprovidos de senso crítico. Esse género de embuste pode mesmo ser empregue por Espíritos pouco escrupulosos no tocante à escolha dos meios para sustentar certas crenças: mas, grande distância vai dessas caricaturas às experiências cientificamente realizadas, como as que temos citado neste livro.

Outra observação também muito importante decorre do estudo das materializações que mostra claramente que não é o Espírito quem cria a forma sob a qual é ele visto: o facto é que os moldes são verdadeiros modelos anatómicos.

Os Espíritos que assim se manifestam confessam muito facilmente que ainda se acham pouco avançados na hierarquia espiritual. Na maioria dos casos, são limitados os seus conhecimentos e não há suposição injustificada ao dizer-se que são muito ignorantes em matéria de ciências naturais. Nessas condições, parece-nos evidente que não poderiam, de modo algum, construir uma forma suficientemente perfeita para revelar o grau de realidade que os moldes nos dão a conhecer. As peças modeladas não são simples esboços mais ou menos bem acabados de um membro qualquer; é da própria Natureza o que se observa, até nos mínimos detalhes. Temos, pois, a prova de que é um verdadeiro organismo que se imprime em substâncias plásticas e não apenas uma imagem, que seria rudimentar, se fosse produzida por um Espírito. Que organismo então é esse? É o que já existe durante a vida, o que produz moldagens idênticas no decurso dos desdobramentos; é, numa palavra, o perispírito, que a morte não destruiu e que persiste com todas as suas virtualidades, pronto a manifestá-las, desde que seja favorável a ocasião.

Imaginando-se, mesmo, que a forma do nosso corpo está impressa, como imagem, na nossa memória latente, o que é possível, não menos verdade é que todos os detalhes anatómicos, saliências das veias, dos músculos, desenhos da epiderme, etc., não podem existir nessa imagem mental, pelo menos quanto às partes do corpo que geralmente se conservam cobertas pelas roupas.

Entretanto, nos desdobramentos materializados de médiuns, sempre que foi possível tomarem-se-lhes impressões ou moldes, se tem reconhecido que o corpo fluídico assim exteriorizado é a reprodução idêntica do organismo material do médium, do seu pé, por exemplo, como foi notado com Eglinton pelo Dr. Carter Blake, ou de sua mão, conforme aconteceu muitas vezes com Eusápia. É o critério que nos permitirá distinguir da materialização de um Espírito um desdobramento. Se a aparição é o sósia do médium, segue-se que a sua alma é que se manifesta fora do seu organismo carnal. No caso contrário, se a aparição difere anatomicamente do médium, quem está presente é outra individualidade.

Esta observação, que fomos os primeiros a fazer, permite se distinga facilmente se o fantasma é a aparição de um ser desencarnado, ou uma bilocação do médium.

Não será talvez supérfluo insistir fortemente nas numerosas provas que apoiam a nossa maneira de ver.

O astrónomo alemão Zoellner afirma que durante uma das suas experiências com Slade, (iv) se produziu a impressão de uma mão fluídica, num vaso cheio de farinha finíssima, com todas as sinuosidades da epiderme distintamente visíveis, não tendo o observador perdido de vista as mãos do médium, que se conservaram sempre sobre a mesa. Aquela mão era maior do que a de Slade. Doutra feita, produziu-se uma impressão durável numa folha de papel enfumarado na chama de uma lâmpada de petróleo. Slade descalçou-se e mostrou que nenhum vestígio havia dos resíduos da fumaça nos seus pés. A impressão tinha quatro centímetros mais do que o pé do médium e parecia a de um pé comprimido por uma bota, porquanto um dos dedos cobria completamente o outro, tornando-o invisível.

O Dr. Wolf, (v) com a médium Sra. Hollis, pode observar uma mão a fazer evoluções rápidas, pousar sobre um prato cheio de farinha e retirar-se depois de sacudir as partículas que lhe ficaram aderentes. “A impressão representava a mão de um homem adulto, com todos os detalhes anatómicos.” Os dedos marcados na farinha eram mais longos, uma polegada, do que os da Sra. Hollis.

O professor Denton, (vi) inventor do processo de moldagem na parafina, obteve, na primeira sessão com a Sra. Hardy, entre quinze a vinte moldes de dedos de todos os tamanhos. Na maioria dessas formas, notadamente nas maiores ou nas que mais se aproximavam, pelas suas dimensões, dos dedos do médium, ressaltavam nítidos todas as linhas, sulcos e relevos que se notam nos dedos humanos. Uma comissão de sete membros assinou uma acta onde se encontra consignado o seguinte: dentro de uma caixa fechada, produziu-se, pela acção inteligente de uma força desconhecida, o molde exacto de uma mão humana de tamanho natural. O escultor O'Brien, perito em moldagens, examinou sete dos modelos em gesso e os considerou de maravilhosa execução, reproduzindo todas as particularidades anatómicas, assim como as desigualdades da pele, com tão grande pormenor, como a que se obtém na modelagem de um membro, mas com molde constituído de diferentes pedaços, ao passo que os modelos submetidos ao seu exame não apresentavam qualquer vestígio de soldadura, parecendo-lhe resultantes de moldes sem samblagens.

Esse relatório assinala que uma dessas moldagens das mãos “se assemelha singularmente, na forma e no tamanho”, a uma modelagem da mão de um Sr. Henri Wilson, examinada por O'Brien, pouco tempo depois da sua morte, de cujo rosto ele fora fazer a moldagem em gesso. Aí a conservação da forma fluídica se revela materialmente, constituindo uma boa prova da imortalidade.

Numa sessão em casa do Dr. Nichols, com Eglinton, através de um molde de mão de criança foi esta reconhecida, graças a uma ligeira deformidade característica, reproduzida no molde.

O Dr. Nichols reconheceu sem hesitar a mão de sua filha, obtida pelo mesmo processo.

“Esta mão – diz ele – nada tem da forma convencional que os estatuários criam. É uma mão absolutamente natural, anatomicamente correcta, mostrando todos os ossos, todas as veias, todas as menores sinuosidades da pele. É exactamente a mão que eu conhecia, que eu tão bem conheci durante a sua existência corporal, que eu tantas vezes toquei, quando se apresentava materializada.”

Nas experiências dos Srs. Reimers e Oxley, a materialização chamada Bertie deu duas mãos direitas e três esquerdas – todas em posições diferentes, o que não impediu que as linhas e os pregueados fossem idênticos em todos os exemplares. As mãos pertencem indubitavelmente à mesma pessoa. As moldagens das mãos do médium diferem totalmente, quer como forma, quer nas dimensões, das de Bertie. Com o médium Monck, a mesma Bertie também deu os moldes de suas duas mãos, os quais são idênticos aos obtidos com a primeira médium, Sra. Firman, o que estabelece, de modo perfeito, a identidade do Espírito. O Espírito Lily variava de tamanho; ora a sua estatura não ultrapassava a de uma criança bem conformada, ora apresentava as dimensões da de uma rapariga.

“Creio – diz o Sr. Oxley – que ela não apareceu duas vezes sob formas absolutamente idênticas; eu, porém, a reconhecia sempre e nunca a confundi com as outras aparições.”

Poderíamos multiplicar estes depoimentos segundo os quais o Espírito tem um organismo, que ele não forma na ocasião e para os fins da experiência; vamos, porém, ver outras provas. Sabemos que a aparição de Katie King se assemelha inteiramente a uma pessoa natural. Temos sobre esse ponto o testemunho formal de William Crookes. Nas materializações completas é o que sempre se dá. Alfred Russel Wallace, numa carta ao Sr. Erny escreve:

“Algumas vezes, a forma materializada parece uma simples máscara, incapaz de falar e de se tornar tangível a um ser humano. Noutras circunstâncias, a forma tem todos os característicos de um corpo vivo e real, podendo mover-se, falar, mesmo escrever e revelando calor ao tacto. Tem, sobretudo, individualidade e qualidades físicas e mentais totalmente diversas das do médium.”

Numa sessão em Liverpool, com um médium não profissional, o Sr. Burns viu aproximar-se de si um Espírito que com ele estivera relacionado durante longo tempo.

“Apertou-me a mão – diz Burns – com tanta força que ouvi o estalido de uma das articulações dos seus dedos, como só acontece quando se aperta fortemente uma mão. Esse facto anatómico foi corroborado pela sensação que eu experimentava de estar segurando uma mão perfeitamente natural.”

Fazia parte desse círculo de experimentadores o Dr. Hitchman, autor de várias obras de medicina, o qual, numa carta dirigida ao Sr. Aksakof, escreveu: (vii)

“Pelo facto, creio ter adquirido a mais científica certeza, que seja possível obter-se, de que cada uma dessas formas que apareceram era uma individualidade distinta do envoltório material do médium, porquanto, tendo-as examinado com o auxílio de diversos instrumentos, comprovei nelas a existência da respiração e da circulação; medi-lhes a forma, a circunferência do corpo, tomei-lhes o peso, etc.”

Pensa o autor que esses seres têm uma realidade objectiva, mas que a aparência corpórea deles é de natureza diferente da “forma material” que caracteriza a nossa forma terrestre. Depois dessa época, os numerosíssimos fenómenos de telepatia projectaram luz sobre essas aparições cujos caracteres pareciam verdadeiramente sobrenaturais, porém que, melhor conhecidos, podem ser, se não explicados completamente, pelo menos logicamente concebidos.

Reflicta-se por um instante que o duplo de um vivo, logo que saído do seu corpo, é um Espírito, como o será depois da morte; que as suas manifestações físicas e intelectuais são idênticas às que um Espírito desencarnado pode produzir, e ver-se-à que as moldagens constituem prova absoluta da imortalidade.

Logo, no estado actual dos nossos conhecimentos, cremos que a identidade de um Espírito se encontra perfeitamente estabelecida quando ele se mostra a actuar, materializado numa forma idêntica à que teve outrora o seu corpo físico.

É o caso de Estela Livermore e de muitos outros Espíritos que foram identificados de modo a não deixar que subsistisse qualquer dúvida.

Examinando minuciosamente, nas obras originais, os factos mencionados acima e sem formular hipótese, parece-nos que as seguintes conclusões se impõem logicamente:

1º) que os Espíritos têm um organismo fluídico;

2º) que, quando esse corpo fluídico se materializa, reproduz fielmente um corpo físico que o Espírito revestiu durante certo período da sua vida terrestre;

3º) que nenhuma experiência ainda demonstrou que o grau de variação dessa forma possa ir ao ponto de reproduzir outra forma inteiramente distinta daquela sob a qual ela se mostra espontaneamente. Se alguma variação se opera, não passa de uma diferença para mais ou para menos do mesmo tipo;

4º) que, estabelecido, como se acha, experimentalmente, pela fotografia, pelas moldagens, pelas mais variadas acções físicas, que aquele organismo existe nos vivos, pode, por efeito de rigorosa dedução, afirmar-se a sua existência depois da morte, uma vez que ela se nos impõe pelos mesmos factos que a têm positivado com relação aos vivos;

5º) logo, até prova em contrário, a aparição de um Espírito que fala e se desloca no espaço, que se pode reconhecer como sendo uma pessoa que viveu na Terra é prova excelente de sua identidade.

/...
(i) Animismo e Espiritismo, págs. 622 e seguintes.
(ii) Veja-se, na segunda parte desta obra, Capítulo I, o tópico “Materialização de um desdobramento”.
(iii) Alfred Erny, O psiquismo experimental, cap. V, Formas materializadas.
(iv) Zoellner, Wissenschaftliche Abhandlungen, volume II.
(v) Dr. Wolf, Starlings facts, pág. 481.
(vi) The Spiritualist, 1876, t. I, pág. 146.
(vii) Animismo e Espiritismo, pág. 22.


Gabriel DelanneA Alma é Imortal, Terceira parte – O Espiritismo e a ciência; Capítulo IV Discussão em torno dos fenómenos de materialização – Estudo sobre a identidade dos Espíritos, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Pitágoras, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio (1509)