segunda-feira, 7 de abril de 2025

Saberes e o tempo ~


Estudo sobre a identidade dos Espíritos ~

(in Discussão em torno dos fenómenos de materialização)

Na sábia e conscienciosa obra que Alexandre Aksakof consagrou à refutação das teorias do filósofo Hartmann, depara-se-nos a seguinte conclusão:

“Tendo adquirido por laboriosa senda a convicção de que o princípio individual sobrevive à dissolução do corpo e pode, sob certas condições, manifestar-se de novo por intermédio de um corpo humano, acessível a influências desse género, a prova absoluta da identidade do indivíduo resulta impossível.”

Rendemos sincera admiração e profundo respeito ao sábio russo que revelou, na sua obra, espírito tão sagaz, quanto penetrante. O seu livro é uma das mais preciosas colectâneas de fenómenos bem estudados, onde os espíritas encontram armas decisivas para sustentar a luta contra os seus adversários. Mas, não podemos adoptar todas as suas ideias, por se nos afigurar que o seu propósito, de se manter estritamente nos limites que lhe eram impostos na sua discussão com Hartmann, o fez restringir demasiadamente o carácter de certeza que ressalta da experimentação espírita. Não haverá contradição entre a primeira e a segunda parte da citação acima? Como se pode adquirir “a convicção de que o princípio individual sobrevive”, se não se pode estabelecer a identidade dos seres que se manifestam? Concluindo-se que, colectivamente, todos os humanos sobrevivem, será impossível ter-se particular certeza, em relação a um deles? Examinemos os argumentos em que se baseou o Sr. Aksakof para chegar àquela desoladora conclusão.

Segundo o autor, (i) a presença de uma forma materializada, comprovada pela fotografia, ou nas sessões de materialização, não bastaria para lhe atestar a identidade, como, aliás, também não bastaria o conteúdo intelectual das comunicações. Eis porquê:

“Não me resta mais do que formular o último desideratum, relativamente à prova de identidade fornecida pela materialização, e é que essa prova – do mesmo modo que o exigimos no tocante às comunicações intelectuais e à fotografia transcendental – seja dada na ausência de qualquer pessoa que possa reconhecer a figura materializada. Creio que se poderiam encontrar muitos exemplos desse género nos anais das materializações. Mas, a questão é esta: dado o facto, poderia ele servir de prova absoluta? Evidentemente, não, porque, admitindo que um Espírito se pode manifestar dessa maneira, possível lhe é, e o ipso, prevalecer-se dos atributos de personalidade doutro Espírito e personificá-lo na ausência de quem quer que seja capaz de reconhecê-lo. Tal mascarada seria completamente insípida, visto que absolutamente nenhuma razão de ser teria. Do ponto de vista, porém, da crítica, não poderia ser ilógica a sua possibilidade.”

Parece que Alexandre Aksakof admite como demonstrado que um Espírito pode mostrar-se sob qualquer forma, que lhe apeteça tomar, a fim de representar a sua própria personagem. Ora, isso é o que justamente seria necessário firmar, por meio de factos numerosos e precisos. Se consultarmos os milhões de casos em que o Espírito de um vivo se tornou visível, verificaremos que o duplo é sempre a reprodução rigorosamente fiel do corpo, atingindo essa identidade todas as partes do seu organismo, como o prova irrefutavelmente a modelagem do pé fluídico de William Eglinton, do qual falamos no capítulo anterior. (ii)

– Quando o duplo inteiro de Eglinton se materializa, assemelha-se a tal ponto ao seu corpo físico, que é necessário ver-se o médium adormecido na sua cadeira, para se ficar convencido de que ele não está no lugar onde se encontra a aparição. – Quando a Sra. Fay se mostra entre as duas metades da cortina, com as suas vestes e o seu rosto, perfeitamente semelhantes aos do seu corpo físico, com os mesmos traços fisionómicos, cor dos olhos, do cabelo, da pele, torna-se necessário que a corrente eléctrica lhe atravesse o organismo carnal, para se ter a certeza de não ser este o que se está a ver.

“Vi – diz o Sr. Brackett, (iii) experimentador muito céptico e muito prudente –, centenas de formas materializadas e, em muitos casos, o duplo fluídico do médium assemelhando-se-lhe tanto, que eu teria jurado ser o próprio médiumse não visse o mesmo duplo desmaterializar-se diante de mim e não houvesse, logo após, comprovado que o médium se conservava adormecido.”

Não acreditamos que possa alguém citar um único exemplo de haver um duplo de vivo mudado o seu tipo, exclusivamente por vontade própria. Ao contrário, da observação das aparições espontâneas, tanto quanto das obtidas pela experiência, resulta que, se nenhuma influência exterior for exercida, o Espírito se mostra sempre sob a forma corpórea que lhe caracteriza a personalidade. Dar-se-à tenha ele, depois da morte, um poder que lhe faltava em vida? Poderia o Espírito dar ao seu corpo espiritual forma idêntica à de outro Espírito, de maneira a ser o sósia deste? É o que vamos examinar.

À primeira vista, parece que o fenómeno da transfiguração confirma a opinião de que o Espírito pode mudar de forma. Mas, será mesmo assim? Na realidade, o paciente é inteiramente passivo. Não é, pois, consciente ou voluntariamente que modifica o seu próprio aspecto. Ele sofre uma influência estranha, que substitui pela sua aparência a do médium, pois que, geralmente, este não conhece o Espírito que sobre ele actua. Não se pode, portanto, pretender que o Espírito de um médium seja capaz – e o ipso – de se transformar. Em nenhum caso foi isso ainda demonstrado e a substituição de forma bem se pode atribuir a outro Espírito, visto que, quando o desdobramento se produz de modo espontâneo, a forma do Espírito é sempre a do corpo.

Estudemos agora os casos em que a aparição é manifestamente diferente do médium e do seu duplo.

Porventura já se comprovou que um Espírito, tendo-se mostrado sob uma forma bem definida, tenha mudado de aspecto diante dos espectadores, assumindo outra inteiramente diversa da primeira? Jamais semelhante fenómeno se produziu. A única observação, do nosso conhecimento, que tem alguma relação com este assunto, é a que relata o Sr. Donald Mac Nab, que conseguiu fotografar e tocar, com os seus seis amigos, a materialização de uma rapariga que reproduziu absolutamente um velho desenho datando de vários séculos, desenho que muito impressionara o médiumNada, porém, prova, nesse exemplo, que essa aparição não seja a da moça representada no desenho, tendo bastado perfeitamente, para atraí-la, o pensamento simpático do médium. Não está, pois, de modo algum estabelecido que seja essa uma transformação do duplo do médium, nem tampouco uma criação fluídica objectivada pelo seu cérebro. O que algumas vezes se tem verificado são modificações na forma, na coloração do semblante, na expressão da fisionomia da aparição. Pode variar muito o grau da sua materialidade e, sendo esta fraca, não acentuar bastante os detalhes da semelhança; mas, o tipo geral não muda. As modificações são as de um mesmo modelo e não chegam para representar outro ser.

Tomemos o exemplo de Katie King. Indubitavelmente, ela não era um desdobramento de Florence Cook, porquanto esta, acordada, conversa durante alguns minutos com Katie e o Sr. Crookes, que as vê a ambas. A independência intelectual do Espírito materializado revela-se aí com toda a clareza, nada tendo de duvidoso com relação ao corpo físico, visto que o Sr. Crookes assinalou as diferenças de forma, de tez, de cabeleira e, o que é mais importante, dos caracteres fisiológicos entre as duas.

“Uma noite, contei as pulsações de Katie. O seu pulso batia regularmente 75 batidas, ao passo que o da Srta. Cook, poucos instantes depois, chegava às 90. Colando o ouvido no peito de Katie, ouvi-lhe o coração bater dentro e os seus batimentos ainda eram mais regulares do que os do coração da Srta. Cook, quando, após a sessão, ela me permitiu a mesma experiência. Auscultados, os pulmões de Katie se revelaram mais sãos do que os da sua médium que, na ocasião em que fiz a minha experiência, estava em tratamento médico devido a um forte resfriado.”

Evidentemente, segundo o que se acaba de ler, Katie não era a figura nem do corpo, nem do duplo do médium. Tinha uma individualidade distinta, se bem que nem sempre aparecesse completa. Numa sessão com Varley, engenheiro-chefe das linhas telegráficas da Inglaterra, estando a médium fiscalizada electricamente, Katie só se mostrou materializada a meio, até à cintura apenas, faltando ou conservando-se invisível o resto do corpo.

“Apertei a mão àquele ser estranho – diz o célebre engenheiro – e, ao terminar a sessão, mandou Katie que eu fosse despertar a médium. Encontrei a Srta. Cook em transe, isto é, adormecida, como eu a deixara, e intactos todos os fios de platina. Despertei-a.”

Segundo Epes Sargent, nos primeiros tempos, apenas se via o rosto; não havia cabelos, nem coisa alguma acima da fronte. Parecia uma máscara animada. Após cinco ou seis meses de sessões, apareceu em forma completa. Esses seres então se condensam mais facilmente e mudam de cabelos, de vestuário, de cor da tez, à vontade. Mas, note-se bem que é sempre o mesmo tipo, nunca uma outra forma.

Neste ponto, torna-se necessário precisemos bastante o que entendemos pelo termo tipo. Quando se comparam fotografias de um indivíduo, tiradas em diversas épocas de sua vida, reconhecem-se grandes diferenças entre as que ele tirou na idade de 15 anos e as que o representam aos 30 anos. Tudo se modificou profundamente. Os cabelos embranqueceram ou rarearam, os traços se acentuaram ou ampliaram; notam-se rugas onde antes só se via plena juvenilidade. Entretanto, com um pouco de atenção, se chega a perceber que essas divergências não são fundamentais, que se encerram dentro de limites definidos, dentro do que constitui, durante a vida toda, a característica da individualidade: o tipo. Podemos perfeitamente conceber que o perispírito seja capaz de reproduzir uma dessas formas, pois que evolveu através delas neste mundo. Essa faculdade de fazer que uma imagem reviva de si mesma assemelha-se a um avivamento de lembranças, o qual evoca uma época passada e a torna presente para a memória. Nada se perde no envoltório fluídico, as formas do ser se fixam nele e podem reaparecer sob o influxo da vontade. Isso se demonstra por meio de alguns exemplos.

Voltemos ao testemunho do Sr. Brackett, citado pelo Sr. Erny.

“Numa sessão de materialização, vi um rapaz de grande estatura dizer-se irmão da senhora que me acompanhava e que lhe replicou: “Como poderia eu reconhecê-lo, se não o vejo desde criança?” Para logo, a figura diminuir de forma pouco a pouco, até chegar à do menino que a senhora conhecera. Observei outros casos do mesmo género, acrescenta Brackett.”

Aqui está outro testemunho seu:

“Uma das formas que aparecem em casa da Sra. F... disse ser Berta, minha sobrinha por afinidade. Como eu me mostrasse duvidoso, a forma desapareceu e voltou com a voz e a feição de uma criança de quatro anos, idade em que morrera. Não era um desdobramento, porquanto o médium tem sotaque alemão e Berta não. Quanto ao ser uma figurante paga pela Sra. F..., desafio seja quem for que se desmaterialize diante de mim, como Berta se desmaterializou.”

Façamos aqui uma observação importante. Os dois Espíritos que se reportam à sua meninice têm uma estatura e uma aparência diversas das que se lhes conheceram neste mundo. Pode admitir-se sejam estatura e aparência de uma vida anterior à precedente, o que nos conduz à lei geral, ensinada por Allan Kardecde que um Espírito suficientemente adiantado pode assumir, à sua vontade, qualquer dos tipos pelos quais tenha evolvido no curso de suas existências sucessivas. Com essa questão, porém, não temos que nos ocupar, do ponto de vista da identidade, porquanto apenas nos interessa a última forma, a que conhecemos.

Não se deverá concluir do que fica dito que um Espírito farsante não possa disfarçar-se, de maneira a simular uma personagem histórica, mais ou menos fielmente. Claro que a um farsante será possível sempre criar o redingote cinzento e o chapéu de Napoleão, bem como uma auréola e um par de asas, a fim de que o tomem por um anjo. Se, porventura, ele tiver uma vaga parecença com Bonaparte ou com as tradicionais imagens de São José, poderá enganar os inexperientes, os ingénuos, os desprovidos de senso crítico. Esse género de embuste pode mesmo ser empregue por Espíritos pouco escrupulosos no tocante à escolha dos meios para sustentar certas crenças: mas, grande distância vai dessas caricaturas às experiências cientificamente realizadas, como as que temos citado neste livro.

Outra observação também muito importante decorre do estudo das materializações que mostra claramente que não é o Espírito quem cria a forma sob a qual é ele visto: o facto é que os moldes são verdadeiros modelos anatómicos.

Os Espíritos que assim se manifestam confessam muito facilmente que ainda se acham pouco avançados na hierarquia espiritual. Na maioria dos casos, são limitados os seus conhecimentos e não há suposição injustificada ao dizer-se que são muito ignorantes em matéria de ciências naturais. Nessas condições, parece-nos evidente que não poderiam, de modo algum, construir uma forma suficientemente perfeita para revelar o grau de realidade que os moldes nos dão a conhecer. As peças modeladas não são simples esboços mais ou menos bem acabados de um membro qualquer; é da própria Natureza o que se observa, até nos mínimos detalhes. Temos, pois, a prova de que é um verdadeiro organismo que se imprime em substâncias plásticas e não apenas uma imagem, que seria rudimentar, se fosse produzida por um Espírito. Que organismo então é esse? É o que já existe durante a vida, o que produz moldagens idênticas no decurso dos desdobramentos; é, numa palavra, o perispírito, que a morte não destruiu e que persiste com todas as suas virtualidades, pronto a manifestá-las, desde que seja favorável a ocasião.

Imaginando-se, mesmo, que a forma do nosso corpo está impressa, como imagem, na nossa memória latente, o que é possível, não menos verdade é que todos os detalhes anatómicos, saliências das veias, dos músculos, desenhos da epiderme, etc., não podem existir nessa imagem mental, pelo menos quanto às partes do corpo que geralmente se conservam cobertas pelas roupas.

Entretanto, nos desdobramentos materializados de médiuns, sempre que foi possível tomarem-se-lhes impressões ou moldes, se tem reconhecido que o corpo fluídico assim exteriorizado é a reprodução idêntica do organismo material do médium, do seu pé, por exemplo, como foi notado com Eglinton pelo Dr. Carter Blake, ou de sua mão, conforme aconteceu muitas vezes com Eusápia. É o critério que nos permitirá distinguir da materialização de um Espírito um desdobramento. Se a aparição é o sósia do médium, segue-se que a sua alma é que se manifesta fora do seu organismo carnal. No caso contrário, se a aparição difere anatomicamente do médium, quem está presente é outra individualidade.

Esta observação, que fomos os primeiros a fazer, permite se distinga facilmente se o fantasma é a aparição de um ser desencarnado, ou uma bilocação do médium.

Não será talvez supérfluo insistir fortemente nas numerosas provas que apoiam a nossa maneira de ver.

O astrónomo alemão Zoellner afirma que durante uma das suas experiências com Slade, (iv) se produziu a impressão de uma mão fluídica, num vaso cheio de farinha finíssima, com todas as sinuosidades da epiderme distintamente visíveis, não tendo o observador perdido de vista as mãos do médium, que se conservaram sempre sobre a mesa. Aquela mão era maior do que a de Slade. Doutra feita, produziu-se uma impressão durável numa folha de papel enfumarado na chama de uma lâmpada de petróleo. Slade descalçou-se e mostrou que nenhum vestígio havia dos resíduos da fumaça nos seus pés. A impressão tinha quatro centímetros mais do que o pé do médium e parecia a de um pé comprimido por uma bota, porquanto um dos dedos cobria completamente o outro, tornando-o invisível.

O Dr. Wolf, (v) com a médium Sra. Hollis, pode observar uma mão a fazer evoluções rápidas, pousar sobre um prato cheio de farinha e retirar-se depois de sacudir as partículas que lhe ficaram aderentes. “A impressão representava a mão de um homem adulto, com todos os detalhes anatómicos.” Os dedos marcados na farinha eram mais longos, uma polegada, do que os da Sra. Hollis.

O professor Denton, (vi) inventor do processo de moldagem na parafina, obteve, na primeira sessão com a Sra. Hardy, entre quinze a vinte moldes de dedos de todos os tamanhos. Na maioria dessas formas, notadamente nas maiores ou nas que mais se aproximavam, pelas suas dimensões, dos dedos do médium, ressaltavam nítidos todas as linhas, sulcos e relevos que se notam nos dedos humanos. Uma comissão de sete membros assinou uma acta onde se encontra consignado o seguinte: dentro de uma caixa fechada, produziu-se, pela acção inteligente de uma força desconhecida, o molde exacto de uma mão humana de tamanho natural. O escultor O'Brien, perito em moldagens, examinou sete dos modelos em gesso e os considerou de maravilhosa execução, reproduzindo todas as particularidades anatómicas, assim como as desigualdades da pele, com tão grande pormenor, como a que se obtém na modelagem de um membro, mas com molde constituído de diferentes pedaços, ao passo que os modelos submetidos ao seu exame não apresentavam qualquer vestígio de soldadura, parecendo-lhe resultantes de moldes sem samblagens.

Esse relatório assinala que uma dessas moldagens das mãos “se assemelha singularmente, na forma e no tamanho”, a uma modelagem da mão de um Sr. Henri Wilson, examinada por O'Brien, pouco tempo depois da sua morte, de cujo rosto ele fora fazer a moldagem em gesso. Aí a conservação da forma fluídica se revela materialmente, constituindo uma boa prova da imortalidade.

Numa sessão em casa do Dr. Nichols, com Eglinton, através de um molde de mão de criança foi esta reconhecida, graças a uma ligeira deformidade característica, reproduzida no molde.

O Dr. Nichols reconheceu sem hesitar a mão de sua filha, obtida pelo mesmo processo.

“Esta mão – diz ele – nada tem da forma convencional que os estatuários criam. É uma mão absolutamente natural, anatomicamente correcta, mostrando todos os ossos, todas as veias, todas as menores sinuosidades da pele. É exactamente a mão que eu conhecia, que eu tão bem conheci durante a sua existência corporal, que eu tantas vezes toquei, quando se apresentava materializada.”

Nas experiências dos Srs. Reimers e Oxley, a materialização chamada Bertie deu duas mãos direitas e três esquerdas – todas em posições diferentes, o que não impediu que as linhas e os pregueados fossem idênticos em todos os exemplares. As mãos pertencem indubitavelmente à mesma pessoa. As moldagens das mãos do médium diferem totalmente, quer como forma, quer nas dimensões, das de Bertie. Com o médium Monck, a mesma Bertie também deu os moldes de suas duas mãos, os quais são idênticos aos obtidos com a primeira médium, Sra. Firman, o que estabelece, de modo perfeito, a identidade do Espírito. O Espírito Lily variava de tamanho; ora a sua estatura não ultrapassava a de uma criança bem conformada, ora apresentava as dimensões da de uma rapariga.

“Creio – diz o Sr. Oxley – que ela não apareceu duas vezes sob formas absolutamente idênticas; eu, porém, a reconhecia sempre e nunca a confundi com as outras aparições.”

Poderíamos multiplicar estes depoimentos segundo os quais o Espírito tem um organismo, que ele não forma na ocasião e para os fins da experiência; vamos, porém, ver outras provas. Sabemos que a aparição de Katie King se assemelha inteiramente a uma pessoa natural. Temos sobre esse ponto o testemunho formal de William Crookes. Nas materializações completas é o que sempre se dá. Alfred Russel Wallace, numa carta ao Sr. Erny escreve:

“Algumas vezes, a forma materializada parece uma simples máscara, incapaz de falar e de se tornar tangível a um ser humano. Noutras circunstâncias, a forma tem todos os característicos de um corpo vivo e real, podendo mover-se, falar, mesmo escrever e revelando calor ao tacto. Tem, sobretudo, individualidade e qualidades físicas e mentais totalmente diversas das do médium.”

Numa sessão em Liverpool, com um médium não profissional, o Sr. Burns viu aproximar-se de si um Espírito que com ele estivera relacionado durante longo tempo.

“Apertou-me a mão – diz Burns – com tanta força que ouvi o estalido de uma das articulações dos seus dedos, como só acontece quando se aperta fortemente uma mão. Esse facto anatómico foi corroborado pela sensação que eu experimentava de estar segurando uma mão perfeitamente natural.”

Fazia parte desse círculo de experimentadores o Dr. Hitchman, autor de várias obras de medicina, o qual, numa carta dirigida ao Sr. Aksakof, escreveu: (vii)

“Pelo facto, creio ter adquirido a mais científica certeza, que seja possível obter-se, de que cada uma dessas formas que apareceram era uma individualidade distinta do envoltório material do médium, porquanto, tendo-as examinado com o auxílio de diversos instrumentos, comprovei nelas a existência da respiração e da circulação; medi-lhes a forma, a circunferência do corpo, tomei-lhes o peso, etc.”

Pensa o autor que esses seres têm uma realidade objectiva, mas que a aparência corpórea deles é de natureza diferente da “forma material” que caracteriza a nossa forma terrestre. Depois dessa época, os numerosíssimos fenómenos de telepatia projectaram luz sobre essas aparições cujos caracteres pareciam verdadeiramente sobrenaturais, porém que, melhor conhecidos, podem ser, se não explicados completamente, pelo menos logicamente concebidos.

Reflicta-se por um instante que o duplo de um vivo, logo que saído do seu corpo, é um Espírito, como o será depois da morte; que as suas manifestações físicas e intelectuais são idênticas às que um Espírito desencarnado pode produzir, e ver-se-à que as moldagens constituem prova absoluta da imortalidade.

Logo, no estado actual dos nossos conhecimentos, cremos que a identidade de um Espírito se encontra perfeitamente estabelecida quando ele se mostra a actuar, materializado numa forma idêntica à que teve outrora o seu corpo físico.

É o caso de Estela Livermore e de muitos outros Espíritos que foram identificados de modo a não deixar que subsistisse qualquer dúvida.

Examinando minuciosamente, nas obras originais, os factos mencionados acima e sem formular hipótese, parece-nos que as seguintes conclusões se impõem logicamente:

1º) que os Espíritos têm um organismo fluídico;

2º) que, quando esse corpo fluídico se materializa, reproduz fielmente um corpo físico que o Espírito revestiu durante certo período da sua vida terrestre;

3º) que nenhuma experiência ainda demonstrou que o grau de variação dessa forma possa ir ao ponto de reproduzir outra forma inteiramente distinta daquela sob a qual ela se mostra espontaneamente. Se alguma variação se opera, não passa de uma diferença para mais ou para menos do mesmo tipo;

4º) que, estabelecido, como se acha, experimentalmente, pela fotografia, pelas moldagens, pelas mais variadas acções físicas, que aquele organismo existe nos vivos, pode, por efeito de rigorosa dedução, afirmar-se a sua existência depois da morte, uma vez que ela se nos impõe pelos mesmos factos que a têm positivado com relação aos vivos;

5º) logo, até prova em contrário, a aparição de um Espírito que fala e se desloca no espaço, que se pode reconhecer como sendo uma pessoa que viveu na Terra é prova excelente de sua identidade.

/...
(i) Animismo e Espiritismo, págs. 622 e seguintes.
(ii) Veja-se, na segunda parte desta obra, Capítulo I, o tópico “Materialização de um desdobramento”.
(iii) Alfred Erny, O psiquismo experimental, cap. V, Formas materializadas.
(iv) Zoellner, Wissenschaftliche Abhandlungen, volume II.
(v) Dr. Wolf, Starlings facts, pág. 481.
(vi) The Spiritualist, 1876, t. I, pág. 146.
(vii) Animismo e Espiritismo, pág. 22.


Gabriel DelanneA Alma é Imortal, Terceira parte – O Espiritismo e a ciência; Capítulo IV Discussão em torno dos fenómenos de materialização – Estudo sobre a identidade dos Espíritos, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Pitágoras, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio (1509)

quinta-feira, 20 de março de 2025

apóstolos de verdade ~


A União Artística * do Interior
(prodígios de um adolescente | Herculano Pires por Jorge Rizzini)

Com o lançamento do jornal “O Porvir”, surgiu em Cerqueira César o primeiro grupo de literatos formado por Herculano Pires, Oríchio, Luís Aguiar e o poeta Américo de Carvalho, todos jovens. O carpinteiro Elias Salomão Farah, o mais velho do grupo e que tivera um conto premiado pela “Revista da Semana”, do Rio de Janeiro, e o poeta-telegrafista Benedito Almeida Júnior, vindo de Barra Grande, agregaram-se em seguida. Duílio Gambini, Djalma Noronha, Antônio Roxo Garcia e o poeta Raul Osuna Delgado formavam o grupo da cidade de Avaré, mas já estavam vinculados ao de Cerqueira César. O jornal “O Porvir” foi o elo que uniu esses grupos ao da cidade de Sorocaba constituído por Fuad Bunazar, o poeta Hilário Correa e Alfredo Nagib, que viria a se popularizar em São Paulo como locutor da Rádio Tupi e, posteriormente, se formaria em Direito, especializando-se em Direitos Autorais. Dois intelectuais também se aproximaram do grupo de Cerqueira César, liderado por Herculano Pires: eram eles Pedro José de Camargo e Manuel Cerqueira Leite (este último se tornaria catedrático da Faculdade de Filosofia de Araraquara e livre docente de literatura da Universidade de São Paulo). A literatura acendia o fogo sagrado na imaginação desses rapazes... E eles, unidos, iriam constituir a União Artística do Interior, um empreendimento cultural arrojado para a época e que punha em evidência, mais uma vez, a força idealista de Herculano Pires, não obstante (anotemos) sua pouca idade – Herculano Pires não tinha dezoito anos completos.

Cerqueira César estava vivendo o ciclo obsessivo do algodão. Ninguém mais pensava em rebanhos de gado, criação de porcos e aves, em policultura. O algodão prometia riqueza maior e mais rápida. José Correa Pires não teve dúvida: entregou o comando da pequena tipografia e do jornal ao seu filho e tornou-se gerente de uma máquina de beneficiar algodão, enquanto Ananias Pires e sua família retornavam a Sorocaba. Herculano Pires, então, transformou “O Porvir”, que era jornal político, em jornal literário, um sonho que vinha alimentando fazia tempo... Os seus companheiros de literatura vibraram com o facto, pois traziam sonetos inéditos em todos os bolsos do paletó e das calças...

A acta de fundação da União Artística do Interior (os rapazes diziam UAI para “legitimar a natureza caipira da instituição”), foi lavrada em 5 de junho de 1932. Os seus objectivos: “defesa dos interesses dos nossos escritores, difusão da cultura artística em geral, amparo e incentivo ao desenvolvimento das artes e letras, inclusive a formação de núcleos nas diversas cidades”.

É ainda Herculano Pires quem nos informa em texto publicado quinze anos depois (1947) na “Folha da Manhã”, de São Paulo:

“E não se esquecia da luta contra o analfabetismo, para o que preconizava o estabelecimento de cursos nocturnos de alfabetização de adultos.”

Formavam a comissão fundadora da União Artística do Interior: Herculano PiresBenedito Almeida Júnior, Américo de Carvalho, João Batista Prata, Duílio Gambini, Antônio Roxo Garcia e o contista Luís Aguiar, que residira nas cidades de Cerqueira César, Avaré e Capivari. Deixou-se na acta de fundação uma linha em branco destinada à assinatura de Raul Osuna Delgado. Ele se aborrecera e, poeta temperamental, abandonara a reunião... Mais tarde se uniria ao grupo de amigos.

Herculano Pires foi eleito presidente da instituição. A primeira sugestão sua: “realizar numerosos movimentos literários em várias cidades do interior”, com o fito de incentivar e despertar vocações artísticas. Esse trabalho messiânico foi feito, sistematicamente, apesar da instituição não possuir recursos.

A U.A.I. tinha um patrono que mereceu registo especial. Era Rodrigues de Abreu, poeta de versos fortes e sofridos, autor de Casa DestelhadaA escolha do nome de Rodrigues de Abreu trazia um sentido simbólico, diria depois Herculano Pires, acrescentando que o poeta “era o rapaz do interior, pobre e obscuro, que apesar de esmagado pela miséria e pela doença, conseguira triunfar pela força da inteligência e a grandeza do estro”.

A gestão da primeira directoria da U.A.I. terminou em 1933. Na eleição seguinte, Ruad Bunazar, de Sorocaba, fora eleito presidente. Mas não pôde assumir o cargo devido à saúde precária e Herculano Pires continuou na presidência da instituição. Partira de Bunazar a feliz ideia de a U.A.I. patrocinar um concurso para contos, mas foi Herculano Pires quem o tornou realidade. A comissão julgadora congregava intelectuais de Sorocaba, destacando-se o professor Renato Sêneca Fleury, autor de inúmeros livros infantis que o Brasil inteiro conhecia.

O vencedor foi o sorocabano Sílvio de Almeida, humilde ferroviário, autor do conto Dentro do TúnelElias Salomão Farah, de Cerqueira César, obteve menção honrosa. A entrega dos prémios foi feita (notemos) em sessão solene no auditório da Biblioteca Municipal de Sorocaba.

O sucesso do concurso estimula Herculano Pires a fazer com que a U.A.I., sediada em Cerqueira César, lançasse em 21 de outubro de 1934 um outro, desta vez de poesias. As suas bases foram publicadas nos grandes jornais paulistas e em revistas de circulação nacional como o “Fon-Fon” e “O Malho”. Poetas de todo o país se inscreveram em busca de um lugar ao sol, inclusive do Território do Acre. Mais de duzentos trabalhos foram remetidos à cidadezinha de Cerqueira César, embora os quatro prémios tivessem pouco valor material (livros e um estojo de caneta e lapiseira).

Treze anos depois Herculano Pires iria referir-se ao concurso numa matéria publicada na “Folha de São Paulo”, em 13 de julho de 1947:

“A realização do concurso acarretou um excesso de trabalho para o pessoal da Agência do Correio de Cerqueira César. A pacata repartição, acostumada a um volume mais ou menos certo de correspondência, viu-se de súbito invadida por uma infinidade de pacotes e canudos registados, procedentes de todo o Brasil, trazendo para o concurso a variada produção dos nossos poetas anónimos, sempre numerosos.

Um incidente curioso verificou-se, por esse motivo, e bem merece ser evocado. O Sr. João Mericofer, geralmente conhecido por Zico, era o agente postal da cidade. Temperamento retraído, secarrão, o Zico quase não falava. Desincumbia-se humildemente da sua tarefa diária, dava umas voltas rápidas pela cidadezinha e voltava para o correio. Logo, porém, que o concurso tomou vulto e a correspondência começou a abarrotar a agência, encaminhou-se ele à redacção de “O Porvir”, o semanário local dirigido pelo Sr. José Pires Correia, e fez a sua reclamação:

Esse concurso prejudica o comércio da cidade! Chegam tantas cartas e tantos “registos”, que eu não posso distribuir a correspondência na hora de costume!”

E prossegue o memorialista Herculano Pires:

“Entre os duzentos e tantos trabalhos concorrentes, impunha-se como vitoriosa a forma moderna de poesia. Havia numerosos sonetos e alguns trabalhos extensos, metrificados e rimados com todo o rigor da forma parnasiana. Mas os poemas modernos, de estro livre, eram em muito maior número. Nada, entretanto, de futurismo, simbolismo ou coisa semelhante. A liberdade métrica e a substituição dos efeitos de rima pelas do ritmo e de imagens eram os característicos da maioria dos concorrentes.

Havia versos como estes, de Pedro José de Camargo, de Itapetininga, descrevendo uma mulata sambista, num poema que obteve “menção honrosa”:

Quanto ela ri,
Seus dentes simétricos, leitosos,
São duas carreiras de grãos de milho verde.

E outros de um sabor estranho, lembrando a influência do sangue árabe na nossa formação racial, como este de Pedro Chacair, de Santo António da Alegria:

Pudesse eu ser Maomé moderno,
De espada em punho e o “Crê ou morres” na alma,

E diria a teu pau:

– Crê no amor, ou morres!

Ou ainda do mesmo poeta:

Quero dormir, sonhar!
Que ideal, viver assim,
a vibrar, a esquecer, a enlouquecer aos poucos,
ao sabor voluptuoso de “haschich”!”

Herculano Pires recorda o curioso incidente devido à participação de seu amigo Raul Osuna Delgado, poeta irreverente:

“O Porvir, pequeno semanário de Cerqueira César, tornou-se o órgão oficial do concurso. Divulgava as bases, noticiava o recebimento de originais, informava os concorrentes sobre o andamento do certame. Por isso mesmo, recusou-se a aceitar a reclamação do Zico Mericofer. Mas quando começou a publicar os trabalhos distinguidos com “menção honrosa”, provocou certa vez um verdadeiro escândalo entre os leitores da população pacata e religiosa de Cerqueira César. Foi no domingo em que inseriu o soneto “SE...”, de Raul Osuna Delgado, um jornalista da vizinha cidade de Avaré, já falecido.

Osuna Delgado foi uma das figuras mais interessantes do jornalismo de nosso interior. Inteligente, espírito vibrante, era dotado de uma combatividade que transformou a sua existência numa luta contínua. O actual prefeito avareense, Romeu Bretas, que ainda agora esteve em foco na Assembleia Legislativa do Estado com o “caso” da agressão a um jornalista da terra, teve lutas sérias com Osuna, que naturalmente não “levou a melhor”, dado o regime discricionário que vigorava na ocasião...

Fiel à sua vocação combativa, Osuna Delgado inscrevera no concurso um soneto que mereceu a “menção honrosa” em virtude mesmo da sua audácia. Não negaremos ao leitor o prazer de saborear esse interessante soneto, que tantos aborrecimentos causou ao pessoal de “O Porvir”, quando de sua publicação:

Se aqui junto de Deus existe, realmente,
A desejada paz de inúmeros mortais;
Se aqui junto de Deus, sob a luz dos vitrais,
O cura tem o dom de perdoar a gente;

Se aqui junto de Deus este ou aquele crente
Está longe da mão dos anjos infernais;
Se aqui junto de Deus os grandes temporais
Encontram um titã de força omnipotente;

Se aqui junto de Deus se ocultam mil cruzadas,
Capazes de abater milhões de renegados
Por esse mesmo Deus... então, da igreja eu saio

E olhando para a cruz, além do campanário,
Eu pergunto, de chofre: ilustre e bom vigário,
Que diabo faz, na torre, aquele para-raio?

O padre José Julianetti, já falecido, que por mais de vinte anos foi vigário da paróquia, fez uma pregação especial contra o poeta, o concurso e o jornal...”

Aberto em 21 de outubro de 1934, o concurso encerrou-se a 21 de janeiro de 1935. A comissão julgadora era constituída por dois consagrados intelectuais de São Paulo, os poetas Ribeiro Couto e Menotti Del Picchia, mais Nair Mesquita, directora da revista “Vanítas”, que atribuíra o primeiro prémio ao poema “Rodrigues de Abreu”, de autoria de Jerônimo Leite, poeta do território do Acre. Houve catorze menções honrosas, entre as quais se destacava mais um poeta acreano, José Carlos da Silva Pires, residente em Saboeiro, Alto Juruá.

Entre 1934 e 1935 o Brasil viveu poderosas agitações políticas, que atingiram também elementos da U.A.I.. Aproximava-se o fim da instituição. A última acta, a de número 12, foi lavrada a 28 de maio de 1935 e mostra a sua situação precária. Presentes à reunião apenas três membros: Herculano Pires, que assinou-a, o poeta Américo de Carvalho e o contista Luís Aguiar. O último aparecimento público da nobre instituição se verificou uma semana depois, no dia 5 de junho, através de uma conferência pronunciada pelo médico baiano Adalberto de Assis Nazaré, no Cine Rio Branco, perante público reduzido.

“A U.A.I. – escreveu doze anos depois Herculano Pires – exerceu, durante os seus três anos de funcionamento, influência considerável no interior paulista, em favor da popularização da poesia e das artes modernas. O seu trabalho foi tão revolucionário e atabalhoado quanto o da “Semana de Arte Moderna”, podendo considerar-se como um reflexo caboclo desse grande movimento paulista.”

E, em outra crónica, Herculano assumiu a mesma posição e fez uma justa reivindicação:

“Os historiadores da literatura brasileira ainda não tomaram conhecimento dessa revolução literária das províncias, que partiu de Cerqueira César e empolgou o Brasil. Não teve ela as proporções nem o brilho da famosa Revolução de 22, mas foi, de certa maneira, uma das suas consequências. A U.A.I. representou uma tomada de consciência dos que sofriam no interior o isolamento cultural. Os dois concursos que ela promoveu tiveram grande repercussão na imprensa nacional, e um dia, forçosamente, alguém se lembrará desse feito cerqueirense.”
/...

Jorge RizziniJosé Herculano Pires o Apóstolo de Kardec o Homem, a Vida, a Obra, (2) Prodígios de um adolescente / A União Artística do Interior, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: São Luís com a coroa de espinhos, desenho de Alexandre Cabanel

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Existência de Deus |

Sendo Deus a Causa primeira de todas a coisas, o ponto de partida de tudo, o eixo sobre que assenta o edifício da Criação, é o ponto que importa considerar antes de tudo.

É um princípio elementar que se avalia uma causa pelos seus efeitos, mesmo quando não se vislumbra a causa.

Se um pássaro cortando o ar é atingido com chumbo mortal, julgamos que um hábil atirador o feriu, apesar de não vermos o atirador. Portanto, nem sempre é necessário ter-se visto uma coisa para sabermos que existe. Em tudo, é ao observar os efeitos que chegamos ao conhecimento das causas.

Um outro princípio igualmente elementar passou ao estado de axioma à força de verdadeiro: que qualquer efeito inteligente deve ter uma causa inteligente.

Se perguntássemos quem é o engenheiro de um tal engenhoso mecanismo, que pensaríamos de quem respondesse que este se tinha feito sozinho? Quando vemos uma obra-prima da arte ou da indústria, dizemos que deve ser produto de um homem de génio, porque uma elevada inteligência deve ter presidido à sua concepção; calculamos todavia que deve ter sido feito por um homem, porque sabemos que a coisa não está acima da capacidade humana, mas ninguém se lembrará de dizer que saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante e ainda menos que se trata do trabalho de um animal ou de produto do acaso.

Em todo o lado reconhecemos a presença do homem nas suas obras. A existência dos homens antediluvianos não seria unicamente provada pelos fósseis humanos, mas também e com a mesma certeza pela presença dos terrenos dessa época de objectos trabalhados pelos homens; um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo, serão suficientes para atestar a sua presença. Pela rudeza ou pela perfeição do trabalho reconhecemos o grau de inteligência e de evolução dos que o executam. Se, portanto, vos encontrardes num país habitado exclusivamente por indígenas e descobrirdes uma estátua de Fídias, não hesitareis em dizer que os indígenas teriam sido incapazes de a fazer, terá de ser obra uma inteligência superior à dos indígenas.

Pois bem. Deitando o olhar à nossa volta para as obras da natureza, observando a previsão, a sabedoria, a harmonia que presidem a todas, reconhecemos não existir uma única que não ultrapasse os limites mais elevados da inteligência humana. Uma vez que o homem não as pode produzir, é porque são produto de uma inteligência superior à humana, a não ser que se diga que é efeito sem causa.

A isto alguns opõem o seguinte raciocínio:

As obras ditas da natureza são o produto de forças materiais que agem mecanicamente devido às leis de atracção e retracção; as moléculas dos corpos inertes agregam-se e desagregam-se, crescem e reproduzem-se sempre da mesma maneira, cada qual dentro da sua espécie, graças a estas mesmas leis; cada indivíduo é semelhante àquele de onde saiu; o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração, estão subordinados às causas materiais, tais como o calor, a electricidade, a luz, a humanidade, etc. Passa-se o mesmo com os animais. Os astros formam-se pela atracção molecular e movem-se perpetuamente nas suas órbitas devido ao efeito da gravitação. Esta regularidade mecânica na aplicação das forças naturais não revela de maneira nenhuma uma inteligência livre. O homem mexe o seu braço quando quer como quer, mas quem o mexesse no mesmo sentido desde o nascimento até à sua morte, seria um autómato; ora, as forças orgânicas da natureza são puramente automáticas.

Tudo isto é verdade; mas estas forças são efeitos que devem ter uma causa e ninguém pretende que constituam a Divindade. São materiais e mecânicas; não são de maneira nenhuma inteligentes em si mesmas e isto é ainda verdade; mas são postas em acção, distribuídas, apropriadas para as necessidades de cada coisa por uma inteligência que não é a dos homens. A útil apropriação destas forças é um efeito inteligente que revela uma causa inteligente. Um pêndulo move-se com uma regularidade automática e é esta regularidade que lhe dá o mérito. A força que a faz agir é toda material e de modo nenhum inteligente, mas que seria este pêndulo se uma inteligência não tivesse combinadocalculado o emprego desta força para fazer mover-se com precisão? Por a inteligência não estar no mecanismo do pêndulo e porque a não vemos, seria racional concluir que não existe? Julgamo-la pelos seus efeitos.

A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; o engenho do mecanismo atesta a inteligência e a sabedoria do relojoeiro. Quando um relógio vos dá num determinado ponto a indicação de que necessitais, já alguma vez veio à ideia de alguém dizer: aqui está um relógio muito inteligente?

Assim se passa com o mecanismo do UniversoDeus não se mostra, mas afirma-se pelas suas obras.

Portanto, a existência de Deus é um facto adquirido não só através da revelação mas pela evidencia material dos factos. Os povos primitivos não tiveram revelações e, no entanto, acreditavam instintivamente na existência de um poder sobre-humano; viam coisas que estavam acima do poder humano e concluíam daí que emanavam de um ser superior à humanidade. Não serão mais lógicos que aqueles que pretendem que elas se fizeram sozinhas?

/...


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II | Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus | – Existência de Deus (de 1 a 7) 15º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

o génio céltico ~


a experimentação espírita ~ 

(I de II)

(in Terceira parte, O mundo invisível, Capítulo XI)

Vimos que os druidas só concediam a iniciação a discípulos escolhidos, submetidos a um treino intelectual e moral demorado. Segundo afirmações de autores antigos, esses estudos podiam durar muitos anos e comportar o conhecimento de vinte mil versos. Realmente, o verso, pelo seu ritmo, fixa-se mais facilmente na memória, ele não se altera, nem se deforma como a prosa e, conserva, por mais longo tempo, o seu sentido exacto, a sua primeira originalidade.

Portanto, só após uma longa e paciente reparação é que os discípulos podiam ser admitidos para participar dos ritos sagrados, que eram, na verdade, a comunicação com os espíritos superiores e a prática dos seus ensinos. Esses eram transmitidos ao povo sob uma forma mais concreta e, às vezes, metafórica, sempre aceite com respeito, pois o druida era objecto de uma grande veneração.

Hoje é bem diferente: os recém-chegados, sem preparação, sem estudos, sem cuidados, crêem poder entrar em relação com os seres invisíveis que os cercam. Não se teme a aventurara sem guia, nem bússola, no oceano de forças e de vida em que estamos imersos. Ignora-se, em demasia, que uma multidão de espíritos inferiores rodeie o ambiente terrestre, ao qual ela está ligada pelos seus fluidos materiais. São eles os que respondem, de maior bom grado, aos chamados dos homens com finalidades de divertimento e, muito pouco se pode esperar desse ambiente onde reinam as mais diversas influências, às vezes más, como aquelas muito conhecidas dos mistificadores e dos obsessores. Daí o descrédito que recai, em certos casos, sobre as práticas desprovidas de regra, de método e de seriedade.

Não se deve ficar indiferente, sem dúvida, aos apelos misteriosos, aos ruídos, aos golpes que se ouvem à noite nas nossas casas e, que parecem ser promessas de assistência, de protecção, às vezes bem necessárias. Sim, devemos prestar-nos a convites desse género, pois eles podem provir de amigos invisíveis que nos pedem socorro, ou ser o prenúncio de conselhos, de revelações, de ensinos preciosos nos tempos de provações que vivemos. Porém, logo que encontremos um meio de comunicação que se adapte às nossas possibilidades psíquicas, não devemos hesitar em exigir, dos que se nos manifestam, as provas formais de identidade e empregar em todas as nossas relações com o além esse rigoroso espírito de controlo e de exame escrupuloso que não deixa lugar algum às trapaças dos espíritos levianos. (i)

Os espíritas conservam uma ideia regeneradora, bela e fecunda, que não devem deixar ocultar nem depreciar, sob a acusação de credulidade que lhes é dispensada. As verdades superiores não se adquirem sem dificuldade. Só pelos nossos esforços repetidos para nos livrar das incertezas, das trevas, é que os véus da matéria se levantam e as saídas se abrem para a vida espiritual, a vida infinita!

Espiritismo, após 75 anos de experimentação e de trabalhos, tornou-se uma fonte de luz e de ensinamentos. A sua doutrina resulta de mensagens espirituais obtidas por todos os processos mediúnicos, em todos os países e, se completam, se controlam umas às outras. Até ao momento, as religiões e as filosofias somente apresentavam, sobre as condições de vida no Além, simples hipóteses. Actualmente, os que lá vivem descrevem essa vida por si mesmos e nos falam das leis da reencarnação. Com efeito, com algumas excepções assinaladas entre os anglo-saxões, cujo número diminui dia a dia, há uma quantidade enorme de documentos, de testemunhos concordantes, recolhidos desde a América do Sul até às Índias e ao Japão, a favor da reencarnação.

Não é mais, como no passado, um pensador isolado ou mesmo um grupo de pensadores, que vem mostrar à humanidade o caminho que ele pensa ser verdadeiro; é o mundo invisível, todo ele, que se agita e se esforça para tirar o pensamento humano das suas rotinas, dos seus erros, e de lhe revelar, como nos tempos dos druidas, a lei divina da evolução. São os nossos próprios parentes e amigos mortos que nos expõem a sua situação boa ou má e, a consequência dos seus actos, durante sessões ricas de provas de identidade.

Censura-se sempre os espíritas por darem mais importância à teoria do que à prática experimental. No Congresso Oficial de Psicologia de 1900, um sábio nos objectava: “O Espiritismo não é uma ciência, é uma doutrina”. Certamente, consideramos sempre o facto como sendo a base, o fundamento do Espiritismo.

Sabemos que a ciência vê na experimentação o meio mais seguro de chegar ao conhecimento das causas e das leis; mas estas permanecem obscuras, inacessíveis em muitos casos, sem uma teoria que as esclareça e as torne precisas. Quantos pesquisadores ficaram desorientados no emaranhado dos factos, perdidos no labirinto dos fenómenos e, terminaram por se desanimar e renunciar a todas as pesquisas, devido à falta de um fundamento geral que religasse e explicasse esses factos. O eminente Charles Richet, após ter feito experiências durante toda a sua vida, registou os resultados das suas pesquisas num grande volume (Tratado de Metapsíquica), sem conseguir obter uma conclusão.

Poder-se-ia chegar, pelo estudo dos infinitamente pequenos, a uma concepção geral do Universo? Poder-se-ia, pelas manipulações de laboratório, alcançar a compreensão da unidade da substância? Se Newton não tivesse a ideia prévia da gravitação, teria dado alguma importância à queda da maçã? Se Galileu não tivesse a intuição do movimento da Terra, teria prestado atenção às oscilações do candelabro de bronze da catedral de Pisa? A teoria nos parece inseparável da experiência, ela deve mesmo precedê-la, a fim de guiar o observador, a quem a experiência servirá de controlo.

Censuram-nos por chegarmos a conclusões muito apressadamente! Ora, eis aqui fenómenos que se produzem desde os primeiros séculos da história. Eles são comprovados experimental e cientificamente desde há cerca de cem anos e, ainda assim alguns acham que as nossas conclusões são prematuras! Mas em mil anos, ainda haverá os retardatários que acharão que é muito cedo para os concluir. A humanidade experimenta uma necessidade imperiosa de saber e, a desordem moral que castiga a nossa época é devida, em grande parte, à incerteza que reina ainda sobre esta questão essencial da sobrevivência.

Quando, na minha distante juventude, vi um dia, numa montra de uma livraria as duas primeiras obras de Allan Kardec, logo as adquiri e absorvi o seu conteúdo. Nelas encontrei uma solução clara, completa, lógica do problema universal e, a minha convicção ficou assegurada.

Entretanto, apesar de minha juventude, já havia passado pelas alternativas da crença católica e do cepticismo materialista, mas em parte alguma encontrei a chave do mistério da vida. A teoria espírita dissipou a minha indiferença e as minhas dúvidas. Como tantos outros, pesquisei as provas, os factos exactos que viessem a apoiar a minha fé; mas esses factos demoraram a aparecer. No início, insignificantes, contraditórios, mesclados de fraudes e de mistificações, eles estavam longe de me satisfazer e, eu teria renunciado, mais uma vez, a toda a investigação, se não fosse sustentado por uma teoria sólida e por princípios elevados.

Parece, de facto, que o invisível nos queria experimentar, medir o grau de perseverança, exigir uma certa madureza de espírito, antes de nos dar os seus segredos. Todo o bem moral, toda a conquista da alma e do coração parece que deve ser precedida por uma iniciação dolorosa. Enfim, os fenómenos chegaram, comprováveis e notórios. Foram as aparições materializadas, na presença de muitas testemunhas, cujas sensações concordavam; os casos de escrita directa, em plena luz, chegando do Alto, fora do alcance dos assistentes e, que continham predições que foram, desde então, realizadas.

Depois, foram as entidades de valor que se manifestaram por todos os meios à sua disposição, inicialmente pelas mesas, depois pela escrita automática, enfim, e sobretudo pelas incorporações, processo com o auxílio do qual eu converso com os meus guias espirituais, assim como com os homens. A sua colaboração foi preciosa para a redacção das minhas obras, pelas informações recolhidas sobre as condições de vida no Além e sobre todos os problemas que abordei.

Esses espíritos se comunicaram por diversos médiuns, que não se conheciam. Qualquer que fosse o intermediário escolhido, eles apresentavam sempre caracteres pessoais muito contrastantes, alguns de uma originalidade notável, se bem que de uma grande elevação, com detalhes psicológicos, provas de identidade que constituíam o critério de certeza dos mais absolutos. Como é que esses médiuns, que se ignoravam entre si, ou mesmo os seus subconscientes, poderiam ter-se entendido para imitar e reproduzir caracteres tão distintos e, portanto, sempre idênticos a si mesmos, com uma constância e uma fidelidade que persistem há cinquenta anos? Pois, há quase meio século que esses fenómenos se desenrolam à minha volta com uma regularidade matemática, salvo em casos de algumas lacunas, como, por exemplo, quando um dos médiuns desaparece e é preciso um certo tempo para se encontrar um outro sensitivo apropriado.

Eu possuo sete grandes volumes de comunicações recebidas no grupo que por muito tempo dirigi e que respondem a todas as questões que a inquietude humana apresenta à sabedoria dos invisíveis. Ora, todos aqueles que consultaram posteriormente esses arquivos ficaram impressionados pela beleza do estilo, assim como pela profundidade das ideias apresentadas. Talvez, um dia, essas mensagens sejam publicadas. Então, ver-se-á que nas minhas obras, eu não fui inspirado somente pelas minhas próprias vistas, mas sobretudo por aquelas do Além. Reconhecer-se-á, sob a variedade das formas, uma grande unidade de princípios e uma perfeita analogia com os ensinos obtidos dos espíritos guias, por todos os meios e, nos quais Allan Kardec se inspirou para traçar as grandes linhas da sua doutrina.

Depois da guerra (a 1ª Guerra Mundial) os nossos instrutores continuaram a manifestar-se por vários médiuns. Através desses diversos mediadores, a personalidade de cada um deles se confirmou pelo seu carácter próprio, de modo a afastar toda a possibilidade de simulação. Pode acompanhar-se, de ano a ano, na La revue Spirite, a quintessência dos ensinos que nos foram dados sobre assuntos sempre substanciais e elevados.

Então, ao aproximar-se o Congresso de 1925, foi o grande Iniciador, ele mesmo, que nos veio certificar do seu concurso e nos esclarecer com os seus conselhos. Actualmente ainda é ele, Allan Kardec, quem nos anima a publicar este estudo sobre o génio céltico e a reencarnação, como se poderá verificar pelas mensagens publicadas mais adiante.

Peço desculpas aos meus leitores por fazer intervir tanto a minha própria personalidade, mas como poderia dedicar-me a uma análise dessa natureza senão sobre mim mesmo e sobre os meus trabalhos? 

Chego, agora, a viver com os espíritos quase tanto quanto com os homens, a sentir a sua influência e distinguir a sua presença pelas sensações fluídicas que experimento. Sei que essas almas constituem a minha família espiritual. Liames bem antigos me unem a elas, liames que se fortificam todos os dias, pela protecção que elas me concedem e o reconhecimento que lhes consagro.

O peso dos anos se faz sentir e a minha cabeça branca se inclina em direcção ao túmulo, mas sei que a morte é apenas uma saída que se abre para a vida infinita. Atravessando esse limiar, estou certo de encontrar essas queridas almas protectoras, assim como os numerosos amigos com os quais lutei aqui por uma causa sagrada. Iremos juntos visitar esses mundos maravilhosos que contemplei e admirei frequentemente no silêncio das noites e que são, para mim, testemunhos do poder, da sabedoria e do génio do Criador.

Na sua obra Evolução Biológica e Espiritual do HomemOliver Lodge fala com entusiasmo “dessas grandes estrelas que são um milhão de vezes maiores do que o Sol e cenários de fenómenos prodigiosos”.

Mais tarde, reviveremos juntos, nesses mundos, a fim de continuar os nossos trabalhos, a nossa ascensão comum em direcção às regiões serenas de paz e de luz.

E quando relembro todas as belezas dessa revelação, todas as promessas de um futuro sem-fim, sinto-me tomado por uma imensa piedade por todos aqueles que, nas suas provas, não são sustentados pela perspectiva das vidas futuras e, cujo estreito horizonte se limita ao nosso mundo de sangue, de lama e de lágrimas.

/...
(i) Ver o meu livro No Invisível, Espiritismo e Mediunidade.


Léon Denis, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Terceira Parte – O mundo invisível, Capítulo XI – A experimentação espírita (I de II), 1º fragmento da terceira parte última desta obra.
(imagem de contextualização: Serenite | 1912, detalhe, pintura de Edgard Maxence)