terça-feira, 24 de dezembro de 2024

o génio céltico ~


a experimentação espírita ~ 

(I de II)

(in Terceira parte, O mundo invisível, Capítulo XI)

Vimos que os druidas só concediam a iniciação a discípulos escolhidos, submetidos a um treino intelectual e moral demorado. Segundo afirmações de autores antigos, esses estudos podiam durar muitos anos e comportar o conhecimento de vinte mil versos. Realmente, o verso, pelo seu ritmo, fixa-se mais facilmente na memória, ele não se altera, nem se deforma como a prosa e, conserva, por mais longo tempo, o seu sentido exacto, a sua primeira originalidade.

Portanto, só após uma longa e paciente reparação é que os discípulos podiam ser admitidos para participar dos ritos sagrados, que eram, na verdade, a comunicação com os espíritos superiores e a prática dos seus ensinos. Esses eram transmitidos ao povo sob uma forma mais concreta e, às vezes, metafórica, sempre aceite com respeito, pois o druida era objecto de uma grande veneração.

Hoje é bem diferente: os recém-chegados, sem preparação, sem estudos, sem cuidados, crêem poder entrar em relação com os seres invisíveis que os cercam. Não se teme a aventurara sem guia, nem bússola, no oceano de forças e de vida em que estamos imersos. Ignora-se, em demasia, que uma multidão de espíritos inferiores rodeie o ambiente terrestre, ao qual ela está ligada pelos seus fluidos materiais. São eles os que respondem, de maior bom grado, aos chamados dos homens com finalidades de divertimento e, muito pouco se pode esperar desse ambiente onde reinam as mais diversas influências, às vezes más, como aquelas muito conhecidas dos mistificadores e dos obsessores. Daí o descrédito que recai, em certos casos, sobre as práticas desprovidas de regra, de método e de seriedade.

Não se deve ficar indiferente, sem dúvida, aos apelos misteriosos, aos ruídos, aos golpes que se ouvem à noite nas nossas casas e, que parecem ser promessas de assistência, de protecção, às vezes bem necessárias. Sim, devemos prestar-nos a convites desse género, pois eles podem provir de amigos invisíveis que nos pedem socorro, ou ser o prenúncio de conselhos, de revelações, de ensinos preciosos nos tempos de provações que vivemos. Porém, logo que encontremos um meio de comunicação que se adapte às nossas possibilidades psíquicas, não devemos hesitar em exigir, dos que se nos manifestam, as provas formais de identidade e empregar em todas as nossas relações com o além esse rigoroso espírito de controlo e de exame escrupuloso que não deixa lugar algum às trapaças dos espíritos levianos. (i)

Os espíritas conservam uma ideia regeneradora, bela e fecunda, que não devem deixar ocultar nem depreciar, sob a acusação de credulidade que lhes é dispensada. As verdades superiores não se adquirem sem dificuldade. Só pelos nossos esforços repetidos para nos livrar das incertezas, das trevas, é que os véus da matéria se levantam e as saídas se abrem para a vida espiritual, a vida infinita!

Espiritismo, após 75 anos de experimentação e de trabalhos, tornou-se uma fonte de luz e de ensinamentos. A sua doutrina resulta de mensagens espirituais obtidas por todos os processos mediúnicos, em todos os países e, se completam, se controlam umas às outras. Até ao momento, as religiões e as filosofias somente apresentavam, sobre as condições de vida no Além, simples hipóteses. Actualmente, os que lá vivem descrevem essa vida por si mesmos e nos falam das leis da reencarnação. Com efeito, com algumas excepções assinaladas entre os anglo-saxões, cujo número diminui dia a dia, há uma quantidade enorme de documentos, de testemunhos concordantes, recolhidos desde a América do Sul até às Índias e ao Japão, a favor da reencarnação.

Não é mais, como no passado, um pensador isolado ou mesmo um grupo de pensadores, que vem mostrar à humanidade o caminho que ele pensa ser verdadeiro; é o mundo invisível, todo ele, que se agita e se esforça para tirar o pensamento humano das suas rotinas, dos seus erros, e de lhe revelar, como nos tempos dos druidas, a lei divina da evolução. São os nossos próprios parentes e amigos mortos que nos expõem a sua situação boa ou má e, a consequência dos seus actos, durante sessões ricas de provas de identidade.

Censura-se sempre os espíritas por darem mais importância à teoria do que à prática experimental. No Congresso Oficial de Psicologia de 1900, um sábio nos objectava: “O Espiritismo não é uma ciência, é uma doutrina”. Certamente, consideramos sempre o facto como sendo a base, o fundamento do Espiritismo.

Sabemos que a ciência vê na experimentação o meio mais seguro de chegar ao conhecimento das causas e das leis; mas estas permanecem obscuras, inacessíveis em muitos casos, sem uma teoria que as esclareça e as torne precisas. Quantos pesquisadores ficaram desorientados no emaranhado dos factos, perdidos no labirinto dos fenómenos e, terminaram por se desanimar e renunciar a todas as pesquisas, devido à falta de um fundamento geral que religasse e explicasse esses factos. O eminente Charles Richet, após ter feito experiências durante toda a sua vida, registou os resultados das suas pesquisas num grande volume (Tratado de Metapsíquica), sem conseguir obter uma conclusão.

Poder-se-ia chegar, pelo estudo dos infinitamente pequenos, a uma concepção geral do Universo? Poder-se-ia, pelas manipulações de laboratório, alcançar a compreensão da unidade da substância? Se Newton não tivesse a ideia prévia da gravitação, teria dado alguma importância à queda da maçã? Se Galileu não tivesse a intuição do movimento da Terra, teria prestado atenção às oscilações do candelabro de bronze da catedral de Pisa? A teoria nos parece inseparável da experiência, ela deve mesmo precedê-la, a fim de guiar o observador, a quem a experiência servirá de controlo.

Censuram-nos por chegarmos a conclusões muito apressadamente! Ora, eis aqui fenómenos que se produzem desde os primeiros séculos da história. Eles são comprovados experimental e cientificamente desde há cerca de cem anos e, ainda assim alguns acham que as nossas conclusões são prematuras! Mas em mil anos, ainda haverá os retardatários que acharão que é muito cedo para os concluir. A humanidade experimenta uma necessidade imperiosa de saber e, a desordem moral que castiga a nossa época é devida, em grande parte, à incerteza que reina ainda sobre esta questão essencial da sobrevivência.

Quando, na minha distante juventude, vi um dia, numa montra de uma livraria as duas primeiras obras de Allan Kardec, logo as adquiri e absorvi o seu conteúdo. Nelas encontrei uma solução clara, completa, lógica do problema universal e, a minha convicção ficou assegurada.

Entretanto, apesar de minha juventude, já havia passado pelas alternativas da crença católica e do cepticismo materialista, mas em parte alguma encontrei a chave do mistério da vida. A teoria espírita dissipou a minha indiferença e as minhas dúvidas. Como tantos outros, pesquisei as provas, os factos exactos que viessem a apoiar a minha fé; mas esses factos demoraram a aparecer. No início, insignificantes, contraditórios, mesclados de fraudes e de mistificações, eles estavam longe de me satisfazer e, eu teria renunciado, mais uma vez, a toda a investigação, se não fosse sustentado por uma teoria sólida e por princípios elevados.

Parece, de facto, que o invisível nos queria experimentar, medir o grau de perseverança, exigir uma certa madureza de espírito, antes de nos dar os seus segredos. Todo o bem moral, toda a conquista da alma e do coração parece que deve ser precedida por uma iniciação dolorosa. Enfim, os fenómenos chegaram, comprováveis e notórios. Foram as aparições materializadas, na presença de muitas testemunhas, cujas sensações concordavam; os casos de escrita directa, em plena luz, chegando do Alto, fora do alcance dos assistentes e, que continham predições que foram, desde então, realizadas.

Depois, foram as entidades de valor que se manifestaram por todos os meios à sua disposição, inicialmente pelas mesas, depois pela escrita automática, enfim, e sobretudo pelas incorporações, processo com o auxílio do qual eu converso com os meus guias espirituais, assim como com os homens. A sua colaboração foi preciosa para a redacção das minhas obras, pelas informações recolhidas sobre as condições de vida no Além e sobre todos os problemas que abordei.

Esses espíritos se comunicaram por diversos médiuns, que não se conheciam. Qualquer que fosse o intermediário escolhido, eles apresentavam sempre caracteres pessoais muito contrastantes, alguns de uma originalidade notável, se bem que de uma grande elevação, com detalhes psicológicos, provas de identidade que constituíam o critério de certeza dos mais absolutos. Como é que esses médiuns, que se ignoravam entre si, ou mesmo os seus subconscientes, poderiam ter-se entendido para imitar e reproduzir caracteres tão distintos e, portanto, sempre idênticos a si mesmos, com uma constância e uma fidelidade que persistem há cinquenta anos? Pois, há quase meio século que esses fenómenos se desenrolam à minha volta com uma regularidade matemática, salvo em casos de algumas lacunas, como, por exemplo, quando um dos médiuns desaparece e é preciso um certo tempo para se encontrar um outro sensitivo apropriado.

Eu possuo sete grandes volumes de comunicações recebidas no grupo que por muito tempo dirigi e que respondem a todas as questões que a inquietude humana apresenta à sabedoria dos invisíveis. Ora, todos aqueles que consultaram posteriormente esses arquivos ficaram impressionados pela beleza do estilo, assim como pela profundidade das ideias apresentadas. Talvez, um dia, essas mensagens sejam publicadas. Então, ver-se-á que nas minhas obras, eu não fui inspirado somente pelas minhas próprias vistas, mas sobretudo por aquelas do Além. Reconhecer-se-á, sob a variedade das formas, uma grande unidade de princípios e uma perfeita analogia com os ensinos obtidos dos espíritos guias, por todos os meios e, nos quais Allan Kardec se inspirou para traçar as grandes linhas da sua doutrina.

Depois da guerra (a 1ª Guerra Mundial) os nossos instrutores continuaram a manifestar-se por vários médiuns. Através desses diversos mediadores, a personalidade de cada um deles se confirmou pelo seu carácter próprio, de modo a afastar toda a possibilidade de simulação. Pode acompanhar-se, de ano a ano, na La revue Spirite, a quintessência dos ensinos que nos foram dados sobre assuntos sempre substanciais e elevados.

Então, ao aproximar-se o Congresso de 1925, foi o grande Iniciador, ele mesmo, que nos veio certificar do seu concurso e nos esclarecer com os seus conselhos. Actualmente ainda é ele, Allan Kardec, quem nos anima a publicar este estudo sobre o génio céltico e a reencarnação, como se poderá verificar pelas mensagens publicadas mais adiante.

Peço desculpas aos meus leitores por fazer intervir tanto a minha própria personalidade, mas como poderia dedicar-me a uma análise dessa natureza senão sobre mim mesmo e sobre os meus trabalhos? 

Chego, agora, a viver com os espíritos quase tanto quanto com os homens, a sentir a sua influência e distinguir a sua presença pelas sensações fluídicas que experimento. Sei que essas almas constituem a minha família espiritual. Liames bem antigos me unem a elas, liames que se fortificam todos os dias, pela protecção que elas me concedem e o reconhecimento que lhes consagro.

O peso dos anos se faz sentir e a minha cabeça branca se inclina em direcção ao túmulo, mas sei que a morte é apenas uma saída que se abre para a vida infinita. Atravessando esse limiar, estou certo de encontrar essas queridas almas protectoras, assim como os numerosos amigos com os quais lutei aqui por uma causa sagrada. Iremos juntos visitar esses mundos maravilhosos que contemplei e admirei frequentemente no silêncio das noites e que são, para mim, testemunhos do poder, da sabedoria e do génio do Criador.

Na sua obra Evolução Biológica e Espiritual do HomemOliver Lodge fala com entusiasmo “dessas grandes estrelas que são um milhão de vezes maiores do que o Sol e cenários de fenómenos prodigiosos”.

Mais tarde, reviveremos juntos, nesses mundos, a fim de continuar os nossos trabalhos, a nossa ascensão comum em direcção às regiões serenas de paz e de luz.

E quando relembro todas as belezas dessa revelação, todas as promessas de um futuro sem-fim, sinto-me tomado por uma imensa piedade por todos aqueles que, nas suas provas, não são sustentados pela perspectiva das vidas futuras e, cujo estreito horizonte se limita ao nosso mundo de sangue, de lama e de lágrimas.

/...
(i) Ver o meu livro No Invisível, Espiritismo e Mediunidade.


Léon Denis, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Terceira Parte – O mundo invisível, Capítulo XI – A experimentação espírita (I de II), 1º fragmento da terceira parte última desta obra.
(imagem de contextualização: Serenite | 1912, detalhe, pintura de Edgard Maxence)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

as vidas sucessivas | os elementos ~


Experiências magnéticas – Regressão da memória e previsão – Caso nº 3 – Eugénie, 1904

Na época em que eu fazia experiências em Voiron com Joséphine, encontrei em Grenoble um outro sujet que estudei com a mesma ordem de reflexões com o Dr. Bordier, director da Escola de Medicina e de Farmácia, bastante materialista por educação, porém de espírito aberto a modificar a sua opinião mediante a evidência dos factos.

Esse sujet era uma mulher de trinta e cinco anos chamada Eugénie, viúva com dois filhos, que ganhava a vida fazendo tarefas domésticas. Enquanto o seu marido era vivo, ela trabalhava numa fábrica de luvas e os dois ganhavam bons salários, sem necessidade de economias. A sua natureza é apática, muito franca e pouco curiosa. A saúde, excelente.

Eis o resumo de algumas sessões que tivemos na Escola de Medicina:

Quando se desprende sob a influência dos passes, Eugénie vê formarem-se sucessivamente: um fantasma azul à direita e, em seguida, um outro vermelho à esquerda; esses dois fantasmas reúnem-se a seguir num só, que apresenta a mesma forma do seu corpo físico e que se liga a este através de um laço luminoso. No meio desse laço há uma espécie de bola mais luminosa do que o restante e com a ajuda da qual ela vê simultaneamente os seus dois corpos separados. Ela acredita que se trata do seu espírito. (i)

(i) Obtive a mesma constatação em Paris com Laurent e relatei a observação nos Annales des Sciences Psychiques em setembro de 1895. Isso não se reproduz sempre; a bola brilhante (o corpo mental?) permanece algumas vezes num dos outros dois corpos e então Laurent apenas vê aquele corpo no qual ele não se encontra. (Albert de Rochas)

Ela está adormecida há alguns minutos com o auxílio de passes longitudinais aplicados de cima para baixo. Já a fiz recuar alguns anos. Ela só responde quando é interrogada e não responde se a pergunta é feita durante uma fase de letargia. É preciso, então, aprofundar o sono ou proceder a um despertar parcial para conduzi-la a uma das fases vizinhas, ao sonambulismo.

Continuo os passes longitudinais. Vejo uma lágrima cair-lhe dos olhos. Diz-me que tem vinte e cinco anos e que acaba de perder um filho.

Continuação dos passes – Surge-me a ideia de ver em que dará o instinto do pudor. Levanto levemente o seu vestido; ela o abaixa com vivacidade: “Não, agora não; não é conveniente durante o dia”. Ela me toma por seu marido, tem dezassete anos e casou-se há alguns meses.

Continuação dos passes – Sobressalto brusco com um grito de pavor. Ela viu aparecerem a seu lado os fantasmas da avó e de uma tia, falecidas havia pouco tempo e com alguns dias de intervalo. (ii) Tem agora catorze anos. Novamente levanto a sua saia; ela defende-se e comprime os joelhos. Pergunto-lhe de que tem medo e ela me responde que sabe que não se deve brincar assim com os rapazes.

(ii) Esta aparição, que ocorreu na idade à qual a levei, causou-lhe impressão bastante profunda. (A. de Rochas)

Ei-la agora com onze anos. Vai fazer a primeira comunhão. Os seus maiores pecados foram ter algumas vezes desobedecido à avó e sobretudo ter tirado um soldo (iii) do bolso de seu pai. Sentiu muita vergonha disso e pediu-lhe desculpas. Interrogada se preferia morrer a renunciar à sua religião, ela não responde, porém, a expressão do seu rosto mostra que não aspira ao martírio.

(iii) Soldo – moeda de cobre francesa equivalente à vigésima parte do franco. (N.T.)

Com nove anos – A sua mãe faleceu há oito dias; ela está bastante triste. O seu pai acaba de fazê-la deixar Vinay, onde é tintureiro, para mandá-la para Grenoble para casa do seu avô, a fim de que lá aprenda costura. Ela não tem mais necessidade de ir à escola: sabe ler, escrever e contar. Faço-a escrever.

Nova tentativa com o seu vestido. Ela me dá uma tapa dizendo: “Garoto vilão! Pare com isso!”

Com seis anos – Frequenta a escola em Vinay e já sabe escrever bem.

Com quatro anos – Toma conta de sua irmãzinha quando não está na escola. Começa a fazer exercícios gráfico-motores e a escrever algumas letras: aeiou. Não reage mais ao toque no seu vestido; o seu pudor não foi ainda desperto.

Agora ela é muito pequena. Não sabe a idade que tem, não fala ainda, diz apenas “papa”, “mamã”. Mais adiante falarei sobre as suas impressões durante os seus primeiros anos.

Passes transversais, despertando-a, fazem-na passar exactamente pelas mesmas fases e os mesmos estados de consciência.

Na sessão precedente, deixamos Eugénie na fase de bebé sendo amamentada por sua mãe. Aprofundando bastante o seu sono, determinei uma mudança de personalidade. Ela não estava mais viva, flutuava numa semiobscuridade, não tendo nem pensamento, nem necessidades, nem comunicação com ninguém.

Novos passes determinam um novo estado. Ela se vê dentro de um berço muito pobre. Chamam-na Ninie ou Apollonie. (iv)

(iv) Em poucas sessões, sobretudo no início das nossas experiências, apresentou-se, entre a personalidade actual e a de Apollonie, a de uma criança chamada como ela Eugénie Delpit, falecida muito jovem. A sua mãe teve doze filhos, dos quais a maioria morreu muito cedo; seria ela a reencarnação de um desses filhos que deixou poucos vestígios na sua memória ou seria um simples erro devido à sua imaginação actual? Ver-se-á um caso de intercalação análogo no caso nº 15. (Albert de Rochas)

Ainda mais distante no passado, ela está novamente a flutuar no espaço, num estado de calma comparável à experiência do limbo da igreja católica.

Não ousei levar mais longe o sono, pois a magnetização já durava mais de 45 minutos e ambos, Eugénie e eu, nos sentíamos esgotados; porém, pressionando o ponto frontal da memória sonambúlica, fiz aflorarem-lhe recordações ainda mais remotas. Ela tinha sido anteriormente uma menina, falecida muito jovem, em consequência de uma febre ocasionada pela dentição; vê os pais a chorar junto do seu corpo, do qual se desligou bastante rapidamente.

Procedi em seguida ao despertar, através de passes transversais.

Despertando, ela percorre em sentido contrário todas as fases assinaladas anteriormente e me dá novos detalhes provocados pelas minhas perguntas. Algum tempo antes de sua última encarnação, ela sentiu que era preciso reviver noutra família, aproximou-se daquela que deveria vir a ser sua mãe e que acabava de concebê-la; não entrou no feto, porém ficou à volta de sua mãe até ao momento em que a criança veio ao mundo. Então entrou pouco a pouco, “por ímpetos”, no pequenino corpo e só ficou completamente ligada a ele por volta dos sete anos. Até esse momento viveu parcialmente fora do seu corpo carnal, que ela via nos primeiros meses de sua vida como se estivesse colocada fora dele. (v) Não distinguia bem nessa época os objectos materiais que a cercavam, mas, por outro lado, percebia espíritos a flutuar à sua volta. Alguns, muito luminosos, protegiam-na contra outros, sombrios e maléficos, que procuravam influenciar o seu corpo fluídico; quando estes últimos o conseguiam, provocavam esses acessos de raiva que as mães chamam de pirraça.

(v) As minhas mais antigas recordações remontam a uma cena da qual participei aos dezoito meses; vejo ainda a cena que muito me impressionou e vejo-me a mim mesmo em parte. De uma investigação feita com pessoas das minhas relações, concluo que esse fenómeno é bastante frequente. Como apoio para esta afirmação, citarei um trecho de uma carta que o Dr. Maxwel, então advogado geral em Bordeaux, me escreveu com a data de 18 de janeiro de 1905:

“Conheço uma sensitiva que educa um filho. Ela é um sujet bastante notável e vê naturalmente. A criança não é sua, mas foi-lhe confiada desde o nascimento. Ela, sobretudo na obscuridade, vê ao lado da criança uma sombra luminosa, de traços mais formados do que os da criança e um pouco maior do que esta. Essa sombra, quando a criança nasceu, estava mais afastada dela do que o está agora. Parece penetrar pouco a pouco dentro do corpo. A criança tem catorze meses e a penetração é de cerca de dois terços. Esta sensitiva frequentemente via o corpo astral dos moribundos desprender-se. Parece-lhe acinzentado, estendido acima do corpo e parece flutuar.” (A. de Rochas)

Após uma impressão bastante violenta, (vi) produzida na Escola de Medicina quando de sua passagem casual enquanto estava exteriorizada a um metro de uma estante em que havia um pires com uma quantidade bem pequena de sulfureto de cálcio fosforescente, Eugénie já não quis ir a esse estabelecimento e não pude continuar as minhas experiências com ela a não ser acidentalmente, quando a encontrava em casa de uma familiar sua, Sra. Besson. Foi então que, instruído pelas minhas sessões com Joséphine, a conduzi um dia em direcção ao futuro, através de passes transversais suficientemente prolongados, depois de alguns passes longitudinais destinados a adormecê-la.

(vi) Ela teve uma perna completamente paralisada e já não podia andar. (Albert de Rochas)

Eu a fiz envelhecer pouco a pouco. Com a idade de trinta e sete anos (ela na realidade tinha trinta e cinco), manifestou todos os sintomas do parto e a vergonha desse acontecimento, pois não se havia casado novamente. Isto devia passar-se em 1906. Alguns meses mais tarde ela parece afogar-se. Fi-la envelhecer dois anos; novos sintomas de parto. Pergunto-lhe onde está nesse momento. “Sobre as águas”, diz-me. Essa estranha resposta fez-me supor que ela divagava e reconduzi-a ao estado normal.

Ora, tudo o que ela havia predito realizou-se. Tornou-se amante de um operário da fábrica de luvas, com quem teve uma criança em 1906. Pouco depois, desesperada, atira-se ao rio Isère, e salvam-na, agarrando-a por uma perna. Enfim, em janeiro de 1909, deu à luz uma segunda vez, sobre uma das pontes do rio Isère, onde foi tomada subitamente pelas dores do parto quando voltava dos trabalhos domésticos.

Este caso seria verdadeiramente admirável se eu pudesse afirmá-lo de forma absoluta. Infelizmente, na casa da Sra. Besson, eu me contentava em produzir rapidamente alguns fenómenos, sem tomar nenhuma nota, e nem sequer me impressionei com as suas predições, que eu considerava ou incoerências ou previsões justificadas pela sua nova vida. Foi apenas quando os acontecimentos se produziram que as recordações da Sra. Besson e as minhas nos voltaram; porém, o quanto é preciso desconfiar das lembranças que despertam depois dos acontecimentos!

/…


Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte Experiências magnéticas, Capítulo II – Regressão da memória e previsão / Caso nº 3 – Eugénie, 1904, 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A aurora dos transatlan, pintura em acrílico de Costa Brites

sábado, 26 de outubro de 2024

o grande desconhecido ~


O Espírito como Elemento da Natureza |

Os conceitos de naturalidade e normalidade decorrem das experiências da Cultura Empírica e subsistem na Cultura Científica como resíduos daquela fase primária. Esses resíduos emocionais foram alimentados ao longo de todo o processo religioso, por enquadrarem-se na concepção mágica e mística do Universo Misterioso, inacessível à compreensão humana normal. As Religiões ligaram estreitamente esses conceitos aos do sagrado e do profano e não tiveram condições para superá-los. O misticismo é uma forma de alienação, de fuga necessária do homem à dureza da realidade objectiva, onde as leis da estruturação sensorial agem de maneira inflexível. O místico é um desertor do real. O anseio de transcendência no homem, não esclarecido na sua motivação, leva-o a rejeitar o real e buscar o sucedâneo de uma suposta realidade, imaginada como refinamento do real-sensível. Surgem daí as categorias do espiritual e do material, que se mostram confusas na fase mitológica e posteriormente geram a divisão arbitrária e misteriosa das concepções teológicas. Os principais factores desse processo são:

a intuição da indestrutibilidade do ser;
o medo da morte como aniquilamento total;
o desejo de libertação do condicionamento material.

O ser é o que é e recusa-se a deixar de ser. Ele se reconhece como forma existencial subjectiva integrada na estrutura objectiva da realidade material, mas sabe por experiência empírica que esse condicionamento material é efémero e terá fatalmente de se desfazer na morte. O instinto de conservação leva-o a reagir contra essa fatalidade. As provas de sobrevivência dadas pelos fenómenos mediúnicos não o satisfazem, pois essa sobrevivência espiritual o desliga do sensível, a única que lhe parece natural. Ele se apega a essa realidade através de uma concepção mística indefinida, que lhe permite aceitar a possibilidade de uma continuidade natural após a morte. As múmias e os mausoléus egípcios, o paraíso sensorial dos árabes e os dogmas religiosos da ressurreição no próprio corpo carnal atestam essa esperança no próprio processo histórico. Há pessoas cultas, ainda hoje, que não conseguem conceber a sobrevivência humana após a morte em termos espirituais. Condicionaram a sua mente, de tal maneira, ao mundo tridimensional, assustadas com os delírios da cultura religiosa, que temem afastar-se da segurança sensorial da matéria. A concepção materialista do mundo, tão absurda como a concepção mística, nasce da frustração do ser ante o pandemónio das alucinações do fabulário religioso. Kardec teve de agir com prudência na divulgação do Espiritismo, para que a reacção violenta e fanática das religiões não asfixiasse no berço a nova mundividência que nascia das suas pesquisas mediúnicas. Mas no seu livro O Céu e o Inferno colocou o Cristianismo sincrético da igreja no banco dos réus e mostrou que a mitologia dos clérigos era mais absurda e mais cruel do que a do mundo clássico mitológico. A vida eterna oferecida pela Igreja depende de quinquilharias sagradas, de crendices simplórias, de condicionamento mental a um dogmatismo irracional, enquanto os mitos do paganismo se radicavam na realidade empírica, nas experiências naturais do homem no mundo e na lei universal da metamorfose, da incessante transformação das coisas e dos seres ao longo do tempo e do processo histórico racional. A indestrutibilidade do ser não se condicionava, no pensamento mitológico, às exigências de uma corporação religiosa artificial e autoritária, mas às condições visíveis e palpáveis da realidade natural. A simbologia mítica não criava a loja de bugigangas, não dependia de um comércio de contrabandistas nas fronteiras despoliciadas da morte, mas de representações emotivas da sensibilidade humana ante os mistérios do mundo ainda indevassável. A indestrutibilidade do ser, e, portanto, a sua imortalidade, decorria espontaneamente da indestrutibilidade do mundo, em que as coisas e os seres se transformam por lei natural, sem depender de bênçãos ou maldições sacramentais. Os deuses nasciam das águas e da terra, como nascem todas as coisas. Essa naturalidade do pensamento mitológico foi rejeitada pela cultura teológica, que fugiu do real para o irreal, do natural para o imaginário.

O medo da morte como destruição total do ser humano tinha no paganismo a compensação da continuidade da alma além das dimensões da matéria. Sócrates expôs bem esse problema ao defender-se no tribunal de Atenas. Segundo a apologia que Platão lhe dedicou, Sócrates considerou a morte como natural e até mesmo conveniente na idade em que se encontrava. Lembrou que os juízes que o condenaram também já estavam condenados e analisou as duas alternativas da morte: sobreviver a ela e encontrar os sábios do passado no plano espiritual, o que seria uma felicidade, ou não sobreviver e dissolver-se no todo, o que seria o descanso total. De nenhum modo a morte o preocupava. A lei humana que o condenara apenas apressava o cumprimento inevitável da lei natural a que todos estão sujeitos. Ele era médium vidente e audiente, consultava sempre o seu daimon ou espírito protector, conhecia o problema da sobrevivência espiritual, mas falava a homens que não tinham essa experiência e usava o raciocínio mais apropriado ao momento. Esse episódio nos mostra que o medo da morte não era tão angustiante entre os gregos pagãos, que encontravam no pensamento dos filósofos uma consolação racional que a Igreja Cristã jamais ofereceu aos seus adeptos, sempre aterrorizados com o julgamento final, a ira de Deus e as crueldades eternas a que estariam sujeitos se caíssem nas garras do Diabo. Entre os celtas, nas Gálias devastadas pela brutal conquista romana, os bardos cantavam nas tríades druídicas, a felicidade dos que sobreviviam após uma existência dedicada ao cumprimento dos deveres humanos. A morte não os assustava. Mas o terror cristão da morte, na era teológica de deformação do Cristianismo, revestiu a morte com todos os aparatos trágicos de uma civilização insegura e angustiada, semeando o terror na mente popular. A pressão excessiva dessa forma coercitiva de terrorismo mental. Como em todos os excessos, a pressão esmagadora gerou a revolta e a descrença, levando os cristãos a optar pela segunda alternativa de Sócrates: o materialismo inconsequente, mas pelo menos racional.

Era natural e inevitável. Só a volta à experiência empírica poderia sustar a evasão mística, reconduzir os homens ao bom-senso, às medidas controladoras do pensamento racional. O desejo de libertação do condicionamento material, provocado pelo êxtase místico, pelos delírios da imaginação excitada, tinha de chocar-se com a dúvida metódica de Descartes e logo mais com o cepticismo desolador e o materialismo árido. Era necessário esvaziar o mundo das alucinações teológicas para que o homem voltasse a pisar o chão, a apalpar a terra. Kardec assinalaria, mais tarde, que a finalidade do Espiritismo era transformar o mundo, afastando o homem do egoísmo e do materialismo. Mas isso porque, no seu tempo, a vitória da razão já se definia, através das conquistas científicas de três séculos, do XVI ao XVIII, preparando o século XIX para a Renascença Cristã através do Espiritismo. Nessa fase, tão próxima da nossa, urgia restabelecer no homem a fé em termos de razão, mostrar-lhe que a insensatez mística devia ser corrigida pela experiência não menos insensata do materialismo. Se a mística levara o homem a querer fugir das limitações corporais através de cilícios e isolamentos negativos, que o afastavam das experiências da relação humana, o materialismo o levava a agarrar-se ao corpo, perdendo a visão espiritual da sua realidade subjectiva. A grande tarefa do Espiritismo se definia com clareza: era conter a emoção e a imaginação, ligar a fé à razão, unificar o psiquismo humano nos quadros da realidade terrena.

Era o que Jesus havia feito na Palestina, combatendo os excessos do misticismo judeu e as misérias do materialismo saduceu. O Espiritismo dava continuidade, quase dois mil anos depois, ao pensamento cristão desfigurado pelo sincretismo religioso dos clérigos ambiciosos, que não vacilavam em trocar o Reino de Deus pelos reinos da Terra. Kardec podia então proclamar a verdade simples que não havia sido aceite, por falta de condições culturais válidas: o espírito não era sobrenatural, mas natural, o parceiro da matéria na constituição de uma realidade única, a realidade espiritual e material do mundo e do homem. A conclusão de Kardec é límpida e simples: os espíritos são uma das forças da Natureza. Sem compreendermos isso não poderemos compreender o Espiritismo. Espírito e matéria são os elementos constitutivos de toda a realidade. Esses elementos são dimensionais, constituem dimensões diversas da realidade única. Não podemos dividi-los em natural e sobrenatural, pois ambos se fundem na unidade real da Natureza, como a Ciência actual o demonstra, sem ainda compreender as suas conexões profundas e subtis.

Léon Denis, discípulo e continuador de Kardec, considerou o Espiritismo como a síntese conceptual de toda a realidade. O mistério da Trindade, que se manifesta em forma mitológica ou mística em todas as grandes religiões do mundo, define-se na racionalidade espírita nos termos da explicação kardeciana:

Deus
Espírito
Matéria

Deus é a Inteligência Suprema, a Consciência Cósmica de que tudo deriva e que a tudo controla. Só Ele é sobrenatural, pois sobrepõe-se a toda a Natureza. É a Unidade Solitária da concepção pitagórica, que paira no Inefável. Esse é o seu aspecto transcendente. Mas Pitágoras nos fala de um estremecimento da Unidade que desencadeou a Década, gerando o Universo. E temos, assim, o aspecto imanente de Deus, que se projecta na sua criação e a ela se liga, fazendo-se espontaneamente a sua alma e a sua lei: Dessa maneira, o próprio Sobrenatural se torna Natural. A consciência Cósmica impregna o Cosmos e imprime-lhe o esquema infinito dos seus desígnios. Leibniz desenvolveu a teoria da mónada para explicar filosoficamente o processo da criação. As mónadas seriam partículas infinitesimais do pensamento divino que, como as sementes, trazem em si mesmas o plano secreto daquilo que vai ser criado. Da dinâmica das mónadas invisíveis aos nossos olhos formam-se os reinos naturais:

Mineral
Vegetal
Animal
Hominal
Espiritual.

Esse processo criador é explicado por Kardecsob orientação do Espírito de Verdade, como um desenvolvimento incessante das potencialidades monádicas, num fluxo evolutivo que sobe sem cessar dos reinos inferiores aos reinos superiores. Léon Denis explica esse fluxo numa expressão poética: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Deus, a Lei Suprema, controla todo esse processo nos seus mínimos detalhes. A alma é a mónada, princípio individualizador que se caracteriza como princípio inteligente n’O Livro dos Espíritos. É assim que o espírito estrutura a matéria dispersa no espaço infinito. As hipóteses científicas do Universo Finito decorrem da incapacidade da Ciência para abranger a infinitude cósmica. Kardec adverte que, por mais que ampliemos os limites supostos do Universo, sempre haverá na nossa imaginação uma infinita continuidade do espaço cósmico. A consideração científica dos limites é puramente metodológica, determinada pela necessidade de ordenação na nossa mente. A própria Criação é infinita, incessante. Gustave Geley, metapsíquico francês, considera a mónada como um dínamo-psiquismo-inconsciente que dirige a constante metamorfose das coisas em seres, até chegar ao homem, que por sua vez, tomando consciência do seu destino, se transforma em anjo, integrando o reino espiritual da Angelitude, dos espíritos superiores.

Nessa cosmogonia dinâmica vemos que nada escapa do plano natural. Os espíritos nascem das entranhas da matéria, inseridos nela e nela se metamorfoseando. Os filósofos existenciais do nosso tempo referendam nas suas teorias essa concepção naturalista do espírito. Pois o que é o espírito senão a própria criatura humana? A morte nos mostra que o corpo perece, mas o espírito não. Ensinava o Padre Vieira: Quereis saber o que é a alma? Olhai um corpo sem alma. A Filosofia Existencial proclama: A existência é subjectividade pura. E a existência, no caso, é o espírito, que faz do homem um existente, um ser que existe, sabe que é e por que existe e busca a sua transcendência. A Vida é comum a todas as coisas e todos os seres, mas a Existência é a condição específica do homem, que não se limita a viver, mas luta por transcender-se. Nessa transcendência o homem passa da humanitude (do reino hominal) para a Angelitude (o reino espiritual). Sendo o espírito a nossa própria essência, o que somos realmente, com toda a nossa personalidade, é evidente que o espírito não é sobrenatural, mas natural, um elemento vivo e dinâmico da Natureza. Quando tomamos consciência dessa concepção espírita do mundo e do homem, a realidade se impõe à nossa mente, afugentando as confusas e incongruentes fabulações teológicas.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 2 – O Espírito como Elemento da Natureza, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O monge estuda as Escrituras | 1877, lápis e giz-estudo ao painel “A Educação de São Luís” Panteão, Paris (a mesma imagem, do monge, aos pés de Branca de Castela e de São Luís, nesse painel, óleo sobre tela) ambos de Alexandre Cabanel

sábado, 5 de outubro de 2024

O Homem e a Sociedade numa nova Civilização ~ do Materialismo histórico a uma Dialéctica do espírito ~


Capítulo VII ~

~~ Rumo ao Estado Metapsíquico ~

Se é possível que o espiritual exista na natureza humana, a sua descoberta só poderá obter-se mediante a exploração extrassensorial, segundo a prática da parapsicologia. O raciocínio metafísico e teológico já não convence o espírito crítico da idade actual. Daí que Lecomte du Nouy expressava acertadamente: “Não podemos combater os tanques com a cavalaria, nem os aviões com arcos e as flechas. Utilizou-se a ciência para solapar os fundamentos da religião. Devemos empregar a ciência para consolidá-la.” (i)

A parapsicologia não é uma evasão da realidade material; pelo contrário, é uma tomada de posse dessa realidade, para transformá-la noutra, mais lógica e firme, mediante a descoberta do númeno que a anima. É indubitável que esse espírito que rege a realidade visível será conquistado pela investigação parapsicológica e mediúnica, desde que, por medo às conclusões da verdade espiritual, não se detenha na periferia do Ser.

Apesar das reservas que se adoptem, para que a parapsicologia se abstenha de toda a hipótese que transcenda o domínio estritamente científico(ii) abre-se perante ela uma zona extracientífica que tem relação com o que se pode chamar o ser transcendente do homem. De maneira que manter a parapsicologia nessa ordem psíquica que se assenta apenas em actividades e funções do psiquismo humano, segundo deseja Robert Amadou, é não reconhecer a possível razão que assiste ao filósofo parapsicológico, em favor da imortalidade da alma, quando se defronta com essas tremendas realidades metapsíquicas que apresentam os fenómenos supranormais, como são as materializações de seres vivos, comprovadas e admitidas pelos maiores sábios da humanidade.

O experimentalismo crítico e analítico das ciências parapsicológicas será o único factor positivo que deterá a acção demolidora do materialismo. Não nos esqueçamos de que o chamado realismo marxista é mais poderoso que os milagres e as apelações da teologia. Acreditamos que os únicos elementos espirituais, que poderão salvar o sentido religioso do homem são as realidades do fenómeno espiritista, acompanhadas pelos esforços experimentais da parapsicologia. (iii)

Nos tempos novos, já não se trata de conformismo nem de crenças sem provas: esta atitude será agora a de uma parte mínima da humanidade, mas nunca a dessa maioria ateísta e antiespiritualista que nega enfaticamente hoje o que aceitou até ontem de maneira cândida. Se é certo que existe uma necessidade de acreditar, o desenvolvimento mental do homem exige novo modo de aceitar as crenças: aspira a crer sobre as bases de um seguro realismo religioso, sem medo de se enganar.

Contudo, os chefes das diversas igrejas existentes, em vez de acatarem como uma realidade escatológica o espiritismo, combatem-no em nome do Diabo, sem perceber que estão a desperdiçar uma das melhores oportunidades para refutar com ele as consequências do materialismo.

Se é certo que o período actual da parapsicologia é o que corresponde à era biológica, segundo o critério de Joseph B. Rhine, a partir de agora devíamos considerar a necessidade de inaugurar a era ontológica da parapsicologia. O problema do Ser, tão estudado no presente, através do que a filosofia denomina Conhecimento do homem, exige do trabalho parapsicológico a demonstração de novas noções ontológicas, que possam tapar a brecha, segundo Rhine, observada na natureza. Essa brecha é, indubitavelmente, o mistério do homem, isto é, a dramática questão apresentada pela filosofia existencial com respeito ao sentido do Ser, relegado apenas à náusea, à angústia, ao nada e à morte.

Que é o homem? Que somos? De onde viemos? E para onde vamos?

Eis aqui as apaixonantes questões que merecem uma resposta categórica.

Francisco Romero, um dos maiores filósofos argentinos, referindo-se ao tema do homem e à posição da filosofia em face desses problemas, escreveu o seguinte:

“O que a presente situação carece exigir da filosofia é uma definição precisa e concreta do homem, uma especificação nítida da sua posição no conjunto e do sentido da sua vida, de acordo com os mais firmes resultados do pensamento e da experiência psicológica e histórica: em suma, uma noção do homem, mais minuciosa, exaustiva e terminante do que as proporcionadas até agora.” (iv)

Como vemos, a necessidade espiritual de um conhecimento definitivo do homem está no íntimo de todos. A filosofia, mais do que em nenhuma outra época, aspira a solucionar o problema do homem. O Ser continua a ser um problema metafísico e religioso, apesar de tudo o que foi dito até agora. A situação dramática em que se encontra a filosofia torna-se mais desesperadora à medida que as teorias, hipóteses e petições de princípio se vão acumulando. Não nos esqueçamos que são numerosos os sistemas e as ideologias filosóficas e religiosas que pretendem interpretar o homem. Não obstante, nenhuma dessas formulações se mostrou capaz de derrotar esta sinistra concepção materialista do mundo: a filosofia do nada. Por outras palavras, o fúnebre sentido desta definição do existencialismo niilista: o homem, é um ser para a morte eterna.

O filósofo alemão Fritz J. Von Rintelen, num belo trabalho, exprimiu-se assim: “Nenhum sentimento já evoca a Deus, mas tão-somente ao Nada.” (v)

Esta conclusiva afirmação reflecte o verdadeiro sentir dos tempos novos. Já não se trata de afirmar a realidade espiritual do homem e da existência, mas procura matar-se o homem, levá-lo ao suicídio, através de um existir fundado no nada. A impressão que se poderia ter é a de que um demónio negador se alojara na mente humana, procurando apenas destruir o Ser espiritual que a anima.

De acordo com o sector materialista da humanidade é mais racional e, até mais científico, dizer que o homem morre para sempre, do que supor que viverá eternamente, na vida do espírito. Parece que, para o homem moderno, seria preferível ser pó ou nada a ser espírito imortal. E, segundo outros argumentos, é mais moral e até mais natural morrer para sempre do que viver eternamente.

A disputa suscitada pelo existencialismo, entre essência e existência, seria facilmente resolvida se a filosofia e a religião levassem em conta as manifestações espirituais dos fenómenos metapsíquicos e parapsicológícos.

Jean-Paul Sartre, em O Ser e o Nada, esforça-se por fazer prevalecer o Nada sobre o Ser ou a essência espiritual do homem.

Vemos nas suas páginas que o nada foi convertido em valor filosófico, para sustentar a morte eterna e definitiva do indivíduo. Mas não devemos espantar-nos com essa valorização do nada, já que, segundo a bíblia, Deus fez o homem do nada. Consequentemente, esse instinto do nada existencial ressurge com o existencialismo ateu, em forma catastrófica, do inconsciente da espécie, levando de roldão o ético e toda a finalidade transcendente do homem e do Universo.

O Nada, para Deus, era um valor criador; por isso, diz a bíblia que o Criador fez o mundo surgir do nada. Daí se conclui que o Ser e o mundo, como afirma o existencialismo niilista, estão condenados ao nada, o que vale dizer que esse existencialismo, não obstante o seu rigoroso ateísmo, é uma filosofia vinculada a Deus e à bíblia.

metapsíquica e a parapsicologia descobriram, entretanto, que o nada não é verdadeiro; comprovaram que na vida social existe o que Richet chamou de inabitual e, que os fenómenos transcendentais desse campo revelam uma teleologia, tanto para o Ser como para a civilizaçãoA metapsíquica prova que o mundo objectivo pode descentralizar-se, para que a essência psíquica se manifeste na vida espiritual da humanidade. Além disso, estabeleceu que a existência não é atributo exclusivo do homem e do seu mundo, mas que o existir é próprio de outros seres e entidades inteligentes, situados no mundo invisível que nos circunda.

A decadência espiritual do homem e da cultura contemporânea reclamam a colocação de problemas metafísicos e sociais, com o objectivo de alcançar novas interpretações da existência mais edificantes para o destino do espírito encarnado. Chegou a hora de uma metapsíquica existencialresistir a isso é deter a marcha das verdades espirituais. Charles Richet, provando este facto singular e dramático da evolução, declarou: “Amanhã, talvez, a metapsíquica terá o direito de elevar-se mais alto, nos rumos de uma moral, uma sociologia e uma teodiceia novas.” (vi)

Com efeito, a lei dos três estados, de Auguste Comteo teológico, o metafísico e o positivo, permite-nos acrescentar agora um quarto estado: metapsíquicoDesta maneira poderíamos inaugurar uma nova forma de conhecer as três grandes manifestações da história: a sociedade, o Espírito e a divindade. Acreditamos que o melhor campo de investigação metafísica é o próprio homem, porque nele está presente esse quarto estado, que Comte não chegou a conhecer: o estado metapsíquicoMas esse campo, para ser efectivo, deverá entrosar-se com a interpretação espírita do homem e da vida, já que nesta se encontra o fundamento filosófico, teosófico e religioso da continuidade do Ser. (vii)

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(i) Leconte du Nouy, O Destino Humano.
(ii) Revue Metapsychique, R. P. Reginaldo Omez, 1950.
(iii) O facto básico de deixar estabelecida a realidade de psi envolve um princípio de grande significação, aplicável a este problema da sobrevivência espiritual. Pois se não houvesse nenhuma evidência de algo que transcenda as leis físicas, se não houvesse nada que desafiasse os limites da interpretação mecanicista do homem e do mundo vivente, não valeria a pena pensar ainda no problema da sobrevivência. (Revista de Parapsicologia, n° 2 - ano 1955).
(iv) Miradas Sobre el Hombre, La Nación - Buenos Aires, 1950. (Edição de 21 de março).
(v) Lá Mística de Ia Muerte y Ia Filosofia Contemporanea, Critério, Buenos Aires, n.° 1.117.
(vi) Tratado de Metapsíquica, Charles Richet, pág. 37, edição espanhola, 1925.
(vii) Na Revista Espírita, de abril de 1858, Kardec aceitou a sugestão de um correspondente de acrescer à lei dos três estados, de Comte, o estado psicológico da evolução humana, iniciado com o espiritismo. O autor renova essa proposição, como vemos, com outra denominação. Essa coincidência e o desenvolvimento actual das pesquisas psíquicas, mostram que Kardec e o correspondente da “Revista” estavam certos. O leitor pode verificar o facto no volume I da colecção da “Revista”, lançada pela Edicel. É o editorial do número de abril, intitulado: “Período Psicológico”. (Nota de J.H.Pires).

Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo VII Rumo ao Estado Metapsíquico, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali

terça-feira, 17 de setembro de 2024

O Mundo Invisível e a Guerra ~


~ A Justiça Divina e a Actual Guerra ~

|14 de julho de 1915|

Deus podia, do ponto de vista material, evitar a guerra, entretanto, do ponto de vista moral não podia fazê-lo, visto que uma das suas supremas leis exige que todos nós, individual ou colectivamente, soframos as consequências dos nossos actos.

Todas as nações empenhadas na presente guerra são culpadas, em diversos graus. A Alemanha levantou contra si as forças vingadoras, pelo seu orgulho insensato, o culto da força bruta, o desprezo ao direito, as suas mentiras e os seus crimes.

O orgulho excessivo acarreta sempre a queda e o fracasso: foi a sorte de Napoleão e será a de Guilherme II. As responsabilidades deste último são tremendas, porque a sua atitude não produz apenas hecatombes sem precedentes na História; ela poderia também retirar da Europa a coroa da civilização. Ele conseguiu iludir a opinião pública durante muito tempo, mas não enganará a justiça eterna.

Já o dissemos que, relativamente à França, a leviandade, a imprudência, o amor descontrolado dos prazeres deveriam atrair-lhe inevitavelmente duras provas. Assinalemos que foi um dia depois de um processo, onde a podridão nacional se destacava claramente, que a guerra explodiu.

O que existia de pior entre nós não eram os nossos defeitos, porém um estado de consciência que já não distinguia o bem do mal: é a pior das condições morais.

Os laços de família estavam afrouxados de tal modo que um filho era considerado como uma carga, daí o despovoamento que, como consequência dos nossos vícios, nos tornou fracos e diminuídos diante de um temível adversário; mas a alma francesa ainda conservava enormes recursos, podendo sair retemperada desse banho de sangue.

Diante da justiça divina, não são apenas a Alemanha e a França as nações responsáveis por enormes dívidas, pois entre os males que destacamos há muitos que se estendem por toda a Europa.

Encontramos por toda a parte criaturas semelhantes àquelas que existem em volta de nós, cujas consciências desapareceram e fizeram do bem-estar o objecto exclusivo das suas existências, como, aliás, certos políticos e estadistas que pretenderam dirigir os destinos de nosso país.

Deus permitiu que as calamidades tivessem um carácter geral, a fim de reagir contra essas doenças da consciência e esse baixo materialismo. Caso fossem apenas parciais, muitos teriam assistido com indiferença aos sofrimentos dos outros.

Para tirar as almas da letargia moral e do profundo mergulho na matéria era preciso que esse raio abalasse a sociedade até nos seus alicerces.

Já será suficiente a terrível lição que nos foi reservada? Se resultar inútil, se as causas morais da decadência e dos fracassos continuassem em nós, então os seus efeitos continuariam a produzir-se, reaparecendo a guerra com o seu cortejo de males.

É necessário, pois, que a vida nacional recomece em bases morais e que, terminando a tormenta, a alma humana aprenda a desfazer-se dos bens materiais, compreendendo-lhe o seu desvalor. Sem o que foram estéreis todos os sofrimentos e a nossa bela juventude foi ceifada sem benefícios para a França.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, V – A Justiça Divina e a Actual Guerra (2 de 4), 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

pensamento espírita argentino ~


Capítulo II

Espiritismo dialéctico ~

Espiritismo dialéctico é a concepção científica, dínamo-genético da evolução, que explica as coisas, seres e fenómenos do Universo, no seu movimento causal e dinâmico e nas suas necessárias contradições, sucedendo-se e transformando-se, lenta e gradualmente ou por mutações bruscas, em virtude de uma lei natural, selectiva e finalista, sob a acção psicodinâmica do espírito, nas suas diversas formas e manifestações. Não é, como poderia supor-se, uma inovação sistemática, fundamental, da filosofia espírita: é a mesma doutrina (pelo que respeita os seus princípios fundamentais), tratada dialecticamente à luz da ciência moderna e em concordância com os fenómenos da natureza e da vida e, muito especialmente, com os da Psicologia e da História.

A dialéctica espírita é um método discursivo, aplicado às coisas no processo indefinido do seu desenvolvimento ou, melhor dito, induzido deste processo indefinido; é uma lógica superior, para elevar-se à concepção dínamo-genética da vida em todas as ordens e manifestações, indo do simples ao complexo, do particular ao geral e dos termos opostos à sua síntese, a fim de estabelecer a lei ou o princípio que rege cada ordem de coisas e o que é essencial em todas e em cada uma delas.

Elevar-se da realidade sensível à verdade inteligível é o objecto da verdadeira dialéctica; é a “viagem”, segundo o dizer de Platão, que nos eleva à região luminosa das verdades superiores, viagem que empreendeu Heráclito, pela primeira vez na história da Filosofia, afirmando que nada é, que tudo chega a ser na corrente incessante da vida.

Ter um conceito dínamo-genético do Universo e da vida é pensar a evolução com um critério dialéctico, considerando as coisas, não no repouso em que se apresentam, mas em movimento, como na realidade estão; não num lugar fixo do espaço, nem num determinado momento do tempo, mas num contínuo suceder, num perpétuo câmbio de formas e de qualidades, sem jamais serem coisas perfeitas; é considerar os factos da vida e da história, não isolados e sem conexão, mas nas suas relações e no seu encadeamento causal; é ver nos indivíduos, não agentes desvinculados completamente uns dos outros, mas unidos por vínculos afectivos específicos, relacionados entre si pelo meio social e geográfico, por factores externos, tanto de ordem material como espiritual; não é crer que a sociedade, com o seu determinismo económico e histórico, marche por um lado e o espírito humano com o seu determinismo psicológico, com a sua causalidade moral e espírita, por outro, sem engrenar este com aquela, nem aquela com este, mas considerar as suas influências respectivas numa constante reciprocidade de efeitos e causas, de acções e reacções, de impulsos e resistências, de contradições que se resolvem no tempo, na luta constante de interesses e ideais, com o triunfo das tendências revolucionárias, individuais e, por afinidade, colectivas, que por lei da mesma evolução se apartam das tendências gerais e conservadoras; é crer enfim que, se no processo incessante da História (dentro do limite da existência humana) os indivíduos formam a sociedade, esta, por sua vez, forma os indivíduos e os sujeita às condições de vida estabelecidas, ainda que novas tendências e iniciativas individuais apontem mais tarde novos rumos à sociedade e modifiquem as condições existentes com o máximo de progresso alcançado. Esta concepção dínamo-genética que o Espiritismo dialéctico oferece e que consideramos do mais alto valor filosófico, para melhor compreensão da evolução e da vida, não forma, todavia, um sistema de doutrina completamente separado de elementos estranhos e contrários, em muitos casos, a sua verdadeira essência. Ela se deduz logicamente dos factos e manifestações espíritas, tanto quanto dos fenómenos naturais e históricos. Os elementos doutrinários que a constituem encontram-se disseminados nas obras dos seus mais ilustres mestres.

O método dialéctico, mesmo com alguma diferença no modo de expressão, é que tem sido seguido pelos grandes filósofos espiritualistas, desde Sócrates e Platão até Hegel, e empregado por alguns autores espíritas, ainda que sem uniformidade de critério e sem a precisão e extensão devidas. Daí que o Espiritismo se ressinta no seu valor filosófico e que a sua interpretação doutrinária, no que concerne à evolução e ao modo em que esta se efectua, dê margem a opiniões diversas e contrapostas, a atitudes desde a mais revolucionária até à mais recalcitrante e conservadora, não obstante ser uma doutrina clara nos seus postulados, quando estudados sem preconceitos.

Se Alexandre Herzen pôde dizer, com razão, que a filosofia de Hegel, longe de ser conservadora, é a álgebra da revolução; se Marx e Engels, aproveitando-se do método dialéctico de Hegel, no sentido materialista (que, por ser assim, abrange um só aspecto da verdade) puderam dizer que a sua dialéctica é a álgebra prática que “não se inclina diante de nada e é, por sua essência, crítica e revolucionária”, também podemos afirmar que o Espiritismo, com os seus fenómenos de uma realidade superior, demolidores de velhos preconceitos em todas as ordens da vida, com o seu conceito palingenésico da evolução e a sua moral dinâmica e perfectível, é profundamente mais revolucionário, posto que aprofunda o problema do ser e do destino e o aclara à luz dos factos, assinalando ao espírito humano novas e mais prolongadas actividades, novos e mais dilatados horizontes aos seus ideais, que não ficam truncados com as conquistas (muito justas, sem dúvida) económicas e sociais, dentro do marco estreito da existência humana sobre o planeta que habita. A dialéctica espiritista neste caso vem a ser a álgebra superior, que ninguém poderá aprender definitivamente, mas que vai descobrindo novas equações, novos problemas, em progressão constante de vidas sucessivas, que produz uma revolução mais profunda e de mais vastas projecções, que abrange o espírito e a matéria (sem reduzi-los a termos unitários, como fazem respectivamente o idealismo e o materialismo) numa síntese geral, considerando-se estreitamente unidos e necessários para todas as manifestações da vida e do pensamento. (i)

Poucas pessoas ignoram o que é o Espiritismo na sua essência vulgar e simplista; mas é escassíssimo o número dos que têm estudado a causa dos factos e dos princípios filosóficos que eles encerram, arrastando pela borda o pesado lastro de preconceitos que nele infiltraram as religiões positivas.

Empregado o Espiritismo para resolver somente problemas metafísicos, próprios da velha escolástica, apenas à investigação do mais além, preso à velha moral das religiões, que ensina a respeitar falsos direitos e privilégios injustos, como coisas absolutamente necessárias e conformes à justiça divina e à causalidade moral de cada ser, perde o seu carácter de ciência integral e progressiva, e em vez de ser um ideal humano, propulsor do progresso e das causas nobres, aberto a toda a iniciativa de bem-estar social, a toda tendência renovadora e libertária, torna-se, nas mãos de espíritos mesquinhos, uma doutrina atrasada e conservadora, uma arma formidável para esmagar consciências e conter todo o impulso generoso que tenda a estabelecer um novo regime social, mais justo e conforme com as exigências do progresso.

Para despojar o Espiritismo das influências conservadoras, dos preconceitos retrógrados que o desvirtuam e lhe tiram vigor como força social, como ideologia chamada a influir na marcha ascendente da humanidade, nada melhor do que abrir o livro da natureza e o da história e interpretar as suas lições à luz da ciência moderna e das manifestações espíritas: neles aprenderemos melhor que nos livros dos filósofos a verdadeira dialéctica dos factos e conheceremos o valor dos factores que os produzem e determinam e formaremos o nosso conceito espírita dínamo-genético da evolução, biológico e histórico. Assim saberemos, no final, como o Espiritismo deve orientar a conduta dos homens para que as consciências se fortifiquem frente aos factos que a vida oferece nas suas múltiplas e variadas manifestações.

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(i) O Espiritismo não considera o espírito absolutamente independente de toda a forma de matéria, nem tem a pretensão de saber o que é a matéria nem o espírito na sua essência; considera-os nas suas manifestações e estabelece as diferenças que são próprias de cada um. As manifestações dos espíritos vão sempre acompanhadas de formas subtis que, como já temos indicado, se chamam corpo etéreo, perispírito, etc.


Manuel S. PorteiroEspiritismo Dialéctico, Capítulo II – Espiritismo dialéctico, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Personajes, Pintura de Josefina Robirosa