Sem dúvida que muitos dos meus leitores se irão sentir incomodados com os
fenómenos estranhos e aparentemente sobrenaturais aqui trazidos ao
conhecimento. Eles irão exigir que, se realmente devam ser aceites como factos,
deve ser demonstrado que formam uma parte do sistema do universo ou pelo menos
devem ser colocados sob algumas hipóteses plausíveis.
Há uma hipótese – velha no seu princípio fundamental, nova em muitos
dos seus detalhes – que agrupa todos estes fenómenos como uma parte da
natureza, até ao momento completamente ignorados pela ciência e talvez
vagamente especulados pela filosofia, tratando-os sem qualquer conflito com a
ciência mais avançada e a mais alta filosofia. De acordo com esta hipótese, o
que, na falta de um nome melhor, chamaremos de espírito é a parte
essencial de todos os seres sensíveis, cujos corpos não são mais que máquinas e
instrumentos por meio dos quais ele age sobre os outros seres e a matéria. É o
espírito que sente, sozinho, e percebe, e pensa – adquire conhecimento, e
raciocina, e anseia –, embora só possa fazê-lo, por meio do organismo e, na
exacta proporção em que este esteja ligado àquele. O homem é o espírito do
homem. E o espírito é a mente. O cérebro e os nervos não são mais que a bateria
magnética e o telégrafo por meio dos quais o espírito se comunica com o mundo
exterior.
Embora o espírito seja em geral inseparável do corpo vivente que lhe fornece a
vida animal e intelectual (para as funções vegetativas do organismo, poderia,
eventualmente, prosseguir sem espírito), acontece, não raramente, haver indivíduos
de tal forma constituídos que o espírito pode
perceber sem o auxílio dos órgãos normais dos sentidos, ou hipoteticamente
deixar total ou parcialmente o corpo por algum tempo e retornar a ele
novamente. Na morte, ele abandona o corpo para sempre. O espírito, assim como o
corpo, possui leis e limites definidos para as suas capacidades. Ele comunica-se
com espíritos mais facilmente que com a matéria e em muitos casos só
pode perceber a matéria e agir nela por meio de um médium, que é um espírito
encarnado. O espírito que viveu e desenvolveu as suas capacidades vestido com
um corpo humano continuará mantendo o seu modo de pensar quando deixar o corpo,
os seus gostos anteriores, os seus sentimentos e afeições. O novo estado de
existência é uma continuação natural do antigo. Não há nenhuma súbita aquisição
de novas inclinações mentais, nenhuma revolução da natureza moral. Aquilo
que o espírito encarnado fez de si ou se tornou, é o espírito desencarnado no
começo de sua vida sob novas condições. Ele possui o mesmo carácter de
antes mas adquiriu novas capacidades físicas e mentais, novos modos de
manifestar os sentimentos morais, capacidade mais ampla para adquirir
conhecimento físico e espiritual. A grande lei de ‘continuidade’ tão habilmente
mostrada por falta por Sir William Groves na
sua campanha para a presidência da Associação Britânica em Nottingham, permeia
todo o domínio da natureza e esta, pois de acordo com a teoria espiritualista,
amplamente aplicável às nossas passagens e ao progresso em direcção a um estado
mais avançado da existência – uma visão que deveria ser recomendada aos homens
de ciência como sendo provável em si e, em formidável contraste com as
doutrinas dos teólogos, que colocam um grande golfo entre a natureza mental e
as demais naturezas humanas no seu presente e no seu futuro estado de
existência.
Esta hipótese, considerada uma mera especulação, é tão coerente e
inteligível quanto pode ser qualquer especulação sobre qualquer assunto.
Mas ela exige ser considerada como algo mais que uma especulação, já que serve
para explicar e interpretar aquele vasto conjunto de factos dos quais apenas
alguns poucos exemplos foram dados aqui e fornece sobre o estado futuro do
homem, uma teoria mais inteligível, consistente e harmoniosa que qualquer
religião ou filosofia já ofereceu.
Primeiramente, vamos à interpretação dos factos. Nos mais simples fenómenos do magnetismo animal,
quando os músculos, os sentidos e as ideias dos pacientes estão sujeitos ao
desejo do operador, o espírito age sobre o espírito, com a intermediação de uma
peculiar relação entre a capacidade magnética ou biológica (*) dos
dois organismos. Então o magnetizador é habilitado, à sua vontade, a afectar a
mente e o corpo do paciente e induzir nele, por alguns instantes, um mundo
imaginário. Nos fenómenos maiores de ‘clarividência simples’, o espírito parece
estar, de alguma forma, liberto dos laços do corpo e pode perceber por outros
meios além dos cinco sentidos. No estado ainda maior de clarividência
denominado ‘viagens mentais’, (**) o espírito parece deixar o
corpo (ainda ligado a ele, contudo, por uma ligação etérea); percorrer alguma
distância pelo planeta, comunicando-se com pessoas em países remotos quando
haja algum indício pelo qual se possa distingui-lo; (com a mediação de seu
organismo) perceber e descrever eventos que estão acontecendo à sua volta.''
Sob certas condições, o espírito fora do corpo é capaz de formar para
si mesmo um corpo visível a partir das emanações de corpos vivos numa relação
magnética consigo e, em condições ainda mais favoráveis, este corpo
pode tornar-se tangível. Desta forma, todos os fenómenos de mediunidade acontecem.
A gravidade é superada por uma forma de magnetismo biológico, induzido pelo
espírito sobre o médium.
Mãos visíveis ou corpos visíveis são produzidos, algumas vezes escrevem, ou
desenham, ou até falam. Desta maneira, amigos que partiram vêm se comunicar com
os que continuam vivos ou, no momento da morte, o espírito aparece
visivelmente, algumas vezes de forma tangível, aos seres amados de uma terra
distante. Todos estes fenómenos aconteceriam com maior frequência se as
condições que permitem as comunicações fossem mais cultivadas.
Parece, então, que todos os factos estranhos, denominados assim porque são
considerados ‘sobrenaturais’, podem ser creditados à actuação de seres de uma
natureza mental semelhante à nossa – que são, de facto, como nós somos –, mas
um passo à frente na longa jornada através da eternidade. A natureza
trivial e fantástica dos actos de alguns destes espíritos incorpóreos não deve
causar espanto, quando consideramos a miríade de seres humanos fantásticos e
triviais que estão diariamente se transformando em espíritos e que mantêm, pelo
menos por algum tempo, a sua natureza humana numa nova condição. Mas a
natureza geralmente trivial dos actos e comunicações dos espíritos
(admitindo-os como tal) pode ser totalmente refutada. Se nós víssemos
duas ou três pessoas fazendo gestos estranhos em perfeito silêncio,
provavelmente pensaríamos que elas deveriam ser idiotas; mas se nós descobrimos
que dois deles são surdos-mudos, e que os três estão conversando na linguagem
dos sinais, nós nos consciencializamos de que a gesticulação dos seus
corpos não seria mais intrinsecamente absurda que os movimentos de nossos
lábios e da nossa face durante a fala. Então, se sabemos que os espíritos só se
podem comunicar connosco de forma muito limitada, nós veremos que a
‘trivialidade’ consiste na desaprovação de qualquer forma de conversa mental
por considerá-la trivial ou indigna. Então, de novo, como geralmente se diz que
os assuntos das comunicações são "indignos de um espírito", a questão
real é se eles são de tal forma indignos, como seriam se o mesmo espírito
estivesse no corpo? Devemos também nos lembrar de que, na maioria dos casos, o
espírito precisa primeiro satisfazer o seu inquiridor sobre a sua existência e
em muitos casos tem de o fazer frente a um forte preconceito contra a
possibilidade da comunicação dos espíritos ou até mesmo da existência dos espíritos.
O facto indubitável de que milhares de pessoas têm sido de tal forma
convencidas pelos fenómenos que elas testemunharam na presença de médiuns
mostra que, embora possam ser triviais, estes fenómenos são apropriados para
satisfazer a muitas mentes e então levá-las a aceitar e a inquirir os fenómenos
de mais elevado grau, aos quais, de outra forma, jamais poderiam ter sido
levadas a examinar.
/…
(**) – Nota do tradutor: Denominado por kardec de ‘mediunidade sonambúlica’ e, pela influência da obra de Aksakof e Bozzano, como desdobramento.
Alfred
Russel Wallace, O Aspecto Científico Sobrenatural, VIII – A
TEORIA ESPIRITUALISTA (1 de 2), 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)