a Silva Pinto
(II)
Quando li ao Ex.mo Senhor Silva Pinto a segunda
carta a ele dirigida, este grande espírito, disse, profundamente comovido, que
se era bem Camilo
que se lhe dirigia, como parecia ser, visto não poder admitir que houvesse
quem escrevesse aquela carta senão Camilo, lhe dissesse o que havia de fazer;
que o acompanhasse; porque ele era ainda obra sua; o seu modo de pensar, a sua
descrença, eram ainda produto das suas lições; porque nunca lhe ouvira coisa
que se parecesse com o que lhe dizia agora.
Outras coisas disse mais sob penosa e estranha impressão,
a que Camilo respondeu simplesmente:
– Responderei.
Dias depois escreveu a comunicação inserta na página 81. (Comunicação
transcrita imediatamente a seguir)
Camilo Castelo Branco
(18 de Novembro de 1906)
Meu querido médium:
Ainda não pude falar depois da tua comunicação ao Silva
Pinto. Eu estava presente quando a fizeste. Em frente dos dois
examinava, comovido, as impressões que se iam produzindo na alma iluminada
daquele amargurado sonhador.
Com a sua face parada; o seu olhar vagueando pelo infinito, dando a impressão
de duas lentes quais procurassem perscrutar o mistério,
parecia a estátua da Atonia.
Entretanto, no fundo impenetrável da sua grande Alma
tumultuava um mundo novo de paixões, de crenças e de desenganos.
Acima de tudo, a querer subjugar a lucidez daquele generoso
espírito o orgulho maldito e torturante arremessava-lhe ao
cérebro irritantes prejuízos infantis, apertando-o na férrea coroa
inquisitorial da vaidade e do preconceito.
O seu talento enorme batia-se a largas rajadas de bom senso.
Via bem que o que lhe lias, era meu e bem meu. Que era eu que lhe falava daqui,
a gritar-lhe, na aflitiva ânsia de um irmão quase perdido a
que se não perdesse também.
Ele via-o, ele sentia-o. O seu coração dizia-lhe alto,
apressado, apelante, que era bem a alma de Camilo quem lhe falava assim; que ele,
Silva Pinto, ermo de afectos, órfão da amizade, desenganado do mundo,
não podia ter outro que assim o advertisse e acompanhasse senão eu.
A sua razão e a sua lógica procuravam convencê-lo,
demonstrando-lhe, com a tenacidade matemática de um pêndulo e com a força
perfurante de um parafuso mecanicamente comprimido, que tu mal o conheces para
que pusesses toda a tua alma nas palavras magoadas como gritos de dor de mãe,
que constituíam a carta que ele ouvia ler, assombrado, perplexo; mas o
orgulho gritava-lhe: – Olha que tens que aniquilar a tua obra de riso e de
ódio; olha que tens de destruir o teu bloco de egoísmo e de aborrecimento; olha
que tendo que perdoar, humilhas-te; tendo de esquecer, aniquilas-te; olha que
se crês, subordinas-te e, um homem nem a um Deus deve ser subordinado… Eu
também ouvi durante muitos anos esses gritos horrorosos como berros de precito;
eu também os ouvi por meu mal; e por mal maior até deliciosos cantos de sereia
pareciam à minha consciência pela vaidade obcecada.
Eu também os ouvi; e por bem os conhecer os quis pôr de
atalaia contra eles.
Louvores a Deus, muito consegui!
Naquela alma confrangida pela dor sem refrigério, as minhas
palavras puseram a dúvida. É a primeira alavanca para derruir
o edifício. A primeira e a mais poderosa.
A sua razão sente-se abalada. Ele vê oscilar todo o edifício
de dor e ódio levantado pelo sofrimento com sanguinolentos materiais que a
desilusão e a ingratidão carregaram dedicadamente.
Vê que tudo oscila e treme e, a fraqueza da sua força
apavora-o com a lembrança egoísta de que tem de refundir toda a sua
vida, num esforço titânico e supremo. Esquece de que um outro grande
espírito ao chegar-se ao umbral misterioso e terrível do desconhecido, renegou
num grito toda a sua vida de erro, dizendo ao mundo e ao futuro que «sabia
morrer quem viver não tinha sabido».
Não viste nunca, amigo, como um cabouqueiro arranca um bloco
que destruiria um regimento na passagem e arrasaria uma povoação?
Vai o pobre miserável cabouqueiro armado da sua marreta e de
uma cunha férrea.
Olha a rocha que parece desafiar os elementos e os séculos.
Mísero verme de quem a sombra mal se projecta no sopé! Rodeia-a, bate-a,
sonda-a, examina-a. Descobre-lhe a fenda. É o calcanhar daquele colossal Aquiles
de granito. Mete a cunha. Insignificante ponto na monstruosa pedra! Bate-a,
aprofunda-a, arranca-a. Mete-a noutro sítio. A ajudá-lo tem dois grandes
obreiros, os maiores de todos os tempos: – a paciência e a persistência.
Insiste. Fere novos golpes pequeníssimos. A sequência desses golpes abre fendas
maiores.
Insiste mais. A rocha parece que se ri dos esforços máximos
daquele minúsculo lutador. Prossegue, golpeia, bate, luta, insiste, durante
horas sucessivas até que consegue aluir um pouco o colosso.
Insiste mais, insiste ainda, insiste sempre, sem afrouxar,
sem desfalecer com a inteira certeza de que vencerá. As brechas aumentam; os
golpes do camartelo são mais certeiros; o ruído menos firme e, a rocha parece
tremer. Mais um esforço, mais outro; a rocha alui-se nos fundamentos
seculares; e um impulso mais desliga-a da terra mãe. Ei-la a vencida,
subjugada, partida! O mísero cabouqueiro fez o que não fez o
tempo, supremo destruidor; lento corrosivo; o raio, a mais fulminante força.
Sejamos nós o cabouqueiro.
Metamos a pequena cunha da dúvida na rocha do
orgulho de Silva Pinto.
Persistamos pacientemente, tenazmente. Desfaçamos naquela
alma amargada o que o mundo tem feito. O mundo e ele. Façamos luz naquela alma
entenebrecida pelo sofrimento que ela mesma acalenta e em que voluptuosamente
se compraz.
Façamos-lhe sentir que não há maior fraqueza do que a
fraqueza de opinião. Que não há mais condenável obsessão do que a do
vidente que fecha os olhos para não ver a claridade. Digamos-lhe que há alguma
coisa superior à coragem de sustentar o erro a todo o transe: – é a de
confessá-lo e destruí-lo.
Tem alguma coisa de maior, de mais belo e de mais altruísta
e exemplar que conservar uno, compacto, inquebrado e inquebrável o bloco da sua
obra: é o quebrá-lo, deixando dele só o quartzo aurífero e
arremessando fora a lama, o lodo, a vasa, o excremento, o fel, secos,
solidificados, que por desgraça nesse bloco possam existir.
Ficou pequeno? Não, ficou grande, ficou maior,
descomunalmente maior, porque ficou purificado, porque ficou brilhante
como o sol, como que um pedaço do luminoso astro, a ele arrancado pelo
talento e pela bondade.
A persistência no erro conhecido é dos fátuos e
imbecis e, será o mais fátuo e o mais pícaro imbecil de todos os que a
idiotia humana possa ter produzido o que por longínquas suspeitas se lembre da
possibilidade de que o Silva Pinto seja um imbecil!
Na minha e na vida dele há um fundo, um
sangrento, um luminoso exemplo da grandeza que existe na confissão do
erro e na abjuração da mentira e no desprezo da
vaidade…
E desse exemplo quanta alegria, quanta felicidade, quanta
amizade e reconhecimento íntimo e mútuo brotou… Quanta seiva pujante e generosa
brota dele ainda para me incitar à luta que venho mantendo para que a sua vista
exausta e cansada veja agora o que não soube ver quando era nova e de
lince; para que se deixe iluminar pelo raio divino, pela claridade
celestial da fé, da resignação e da piedade; para que o seu coração, tão grande
como o seu cérebro, faça quebrar o férreo arganel do preconceito e expelir o
fel do azedume paciente e longamente segregado pelas atribulações da
sua vida sempre incerta, sempre martirizada, deixando que aquele hercúlio
músculo onde a convenção humana localizou a bondade, se mostre
grande, radiante, feliz e doce, como Deus lho entregou; para
que o seu cérebro tão grande e tão belo como o seu coração deixe irradiar,
liberto e brilhante, as ondulações luminosíssimas do prodigioso talento que
Deus lhe deu e, vá acariciar consoladamente, como a benéfica luz do sol, as
chagas pustulentas e carbunculosas que a sua análise e a sua dor têm posto a nu no
esquelético e sifilítico corpo da sociedade.
Assim, livre do orgulho, da vaidade, da prevenção, que
constituem a fraqueza doble do seu alquebradíssimo cavername de lutador do
pensamento, poderá morrer tranquilo, confiado, sem sofrimento e sem remorso e,
entrar na grande vida onde há a suprema paz e a suprema angústia, o supremo
amor e o martírio supremo, sereno e consciente, de ter cumprido o seu dever.
E quando não existisse essa vida?
Eu, menos do que ninguém, quero fazer a Silva Pinto o
gravame injusto de supor que a sua consciência esteja tão cega e tão
desequilibrada, que lhe não tenha feito ver nos seus longos momentos de
cogitação, que mesmo que a morte o conduzisse ao aniquilamento, era bem mais
digno da sua envergadura de lutador e mais belo, mais grande e generoso descer
à terra-mater, ao refúgio último, com a serenidade no olhar, a paz no
íntimo, o sorriso nos lábios, fazendo pairar por todo o seu ser em evolução
derradeira a doce unção que se exala da bondade e da generosidade e nimba os
humildes e os santos, do que desaparecer com o ódio a fulminar dos olhos e
a torturar o coração; o ríctus contorcendo-se na raiva como a
serpente no fogo, a fisionomia a convulsionar-se no esgare macabro da dúvida e
do pavor, que não deixaria de permitir convulsionar o próprio Ateísmo,
a própria Negação, se esses dois dilectos filhos do orgulho e do egoísmo da
humanidade se pudessem personificar na hora última da vida carnal.
Amigo Silva Pinto: alija de ti essa horrorosa túnica de
Nessus! Sou eu, o grande Camilo, como me chamavas, que entrou na
imortalidade envolvido nessa tortura, que te grita como se gritasse ao ver um
filho querido, com os olhos vendados, à orla extrema de um abismo insondável: –
Recua! Recua! Salva-te! Salva-te! Que a teus pés está o abismo pavoroso,
onde o teu corpo ao cair pode fragmentar-se em esquírolas insignificantes e em
que cada esquírola pode condensar-se numa dor de todas aquelas que na tua vida
inteira te trucidaram e trituraram pavorosamente!
Recua, amigo, recua, que Deus te estenderá a mão!
Recuar será avançar para a luz; avançar será cair nas
trevas.
E que trevas, meu Deus! Que trevas!!!...
A ti, Fernando, instrumento boníssimo das minhas súplicas e
do meu desejo, o meu perdurável reconhecimento.
Camilo Castelo Branco
/…
Fernando
de Lacerda,
Do País da Luz, Comunicações mediúnicas recebidas
por este médium
(i) – Camilo Castelo Branco
(18 de Novembro de 1906) a Silva
Pinto, Volume I, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel, detalhe, de Edgard Maxence)