A Força e a Matéria;
I Posição do Problema (III)
I Posição do Problema (III)
No conjunto de um sistema em movimento, toda a peça que se
obstinasse em estacionar recuaria realmente. Nos nossos dias, já não é
admissível dizer-se, dogmaticamente, que tal ou tal noção é perfeita e deve
guardar o ataque da infalibilidade: ou se faz, ou se não faz parte da marcha
progressiva do espírito. No primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente
e, no segundo, há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem
claro.
Digamo-lo francamente: em ciência experimental, Deus não pode
ser admitido à priori e muito menos a destinação, ou finalidade, que presumimos
apreender nas obras da Natureza.
As doutrinas apriorísticas caducaram, já se não admitem.
Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se os que
tomaram Deus e não a Natureza como ponto de partida explicaram, algum dia, as
propriedades da matéria ou as leis que governam o mundo. Puderam eles dizer-nos
da mobilidade ou imobilidade do Sol? – se a Terra era plana ou esférica? –
quais os desígnios de Deus, etc.? Absolutamente. Mesmo porque, seria
impossível. Partir de Deus para a investigação e o exame da Criação é processo
baldo de nexo e de sentido. Esse precário método para estudar a Natureza e
inferir consequências filosóficas, no pressuposto de poder, com uma simples
teoria, construir o Universo e fixar as verdades naturais, desacreditou-se,
felizmente, há muito tempo.
Mas, pelo facto de havermos substituído a hipótese
precedente pelos resultados do exame a posteriori, segue-se que
devamos fechar os olhos e negar a inteligência, a sabedoria, a harmonia
reveladas pela própria observação? Haverá motivo para repudiar toda e qualquer
conclusão filosófica e ficar a meio caminho, temerosos de atingir o fim? E
deveremos, por isso, rendermo-nos aos cépticos contemporâneos que, não obstante
a evidência, rejeitam toda a luz e toda a conclusão?
Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que
preconizam, constatamos as suas recusas e inconsequências.
Antes de qualquer controvérsia, importa determinar as
posições recíprocas, para evitar mal-entendidos, esperando nós que as
declarações precedentes bastem para esclarecer categoricamente a nossa atitude.
Combateremos francamente o materialismo, não com as armas da
fé religiosa, não com os argumentos da fraseologia escolástica, não com as
autoridades tradicionais, mas pelos raciocínios que a contemplação
científica do Universo inspira e fecunda.
Examinemos preliminarmente, num olhar, de conjunto, o
processo geral do ateísmo hodierno.
Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que se
utilizou o barão
d'Holbach, nos fins do século passado, para fundamentar o seu famoso
Sistema da Natureza, obra de um materialismo vulgar, para a qual achava Goethe não
haver suficiente desprezo e costumava averbar de – “legítima quintessência da
senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais exclusivamente científico,
todavia, consiste principalmente em declarar que as forças que dirigem, não
dirigem o mundo, isto é: que em vez de governarem a matéria, antes se lhe
escravizam e que é a matéria (inerte, cega, desprovida de inteligência) que,
movendo-se de si mesma, se governa mediante leis, cujo alcance ela não pode,
todavia, apreciar.
Pretendem os nossos materialistas actuais que a matéria
existe de toda a eternidade, revestida de umas tantas propriedades, de certos
atributos e que essas propriedades qualificativas da matéria bastam para
explicar a existência, estado e conservação do mundo.
Dessarte, substituem um Deus-espírito por um Deus-matéria.
Ensinam que a matéria governa o mundo e que as forças
químicas, físicas, mecânicas, não passam de qualidades.
Para refutar um tal sistema, há que tomar, por conseguinte,
o partido contrário e demonstrar um Deus-espírito, antes que um Deus-matéria,
incompreensível, a reger a matéria; estabelecer que a substância é escrava
antes que proprietária da força; provar que a direcção do mundo não
cabe às moléculas cegas que o constituem, mas às forças sob cuja acção
transparecem as leis supremas.
Fundamentalmente, o problema resume-se nesta demonstração e
nós esperamos que ela ressaltará brilhante dos estudos objectivados neste nosso
trabalho.
E uma vez que os adversários se apoiam em legítimos factos
científicos para estabelecer o erro, cumpre-nos contrabatê-los com esses mesmos
factos.
A bem dizer, ainda que se demonstrasse que o Universo não é
mais que um mecanismo material, cujas forças não se conjugam a um motor, mas
remontam à matéria, subindo e descendo incessantes num sistema de motilidade
perpétua, nem por isso a causa divina estaria perdida.
Contudo, desde os primórdios da Filosofia, a partir de Heráclito e Demócrito, o
sistema mecânico do mundo constituiu-se o refúgio e o argumento dos ateus, enquanto
o sistema dinâmico albergava e escorava os espiritualistas.
Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica e
combatemos o sistema incompleto de um mecanismo sem construtor. Muito
judiciosamente, diz Caro: (i) – por um lado o mecanismo tudo
explica, mediante combinações e agrupamentos de átomos eternos. Todas as
variedades de fenómenos, o nascimento, a vida, a morte, mais não são que o
resultado mecânico de composições e decomposições, a manifestação de sistemas
atómicos que se reúnem e se separam.
O dinamismo, ao contrário, subordina todos os fenómenos e
todos os seres à ideia de força.
O mundo é a expressão, seja de forças opostas e
harmoniosas entre si, seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua
engendra a universalidade dos seres.
Pode constatar-se que, não obstante ser a explicação
secundária das coisas, até certo ponto, independente da primária, ou
metafísica, a História atesta o facto constante de uma afinidade
natural: de um lado, entre a explicação mecânica e a hipótese supressiva de
Deus; e, de outro lado, entre a teoria dinâmica e a hipótese que diviniza o
mundo no seu princípio.
/…
(i) La Philosophie de Goethe, capítulo 6º.
Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A
Força e a Matéria I – Posição do Problema 3 de 6, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)